12.4 - UMA ÍNTIMA ESCALADA AOS COGITOS SUPERIORES: O MENINO DO CAMPO NA GRANDE CIDADE
NEUZA MACHADO
Na primeira narrativa de Primeiras Estórias, "As margens da alegria", Guimarães Rosa inicia o seu processo de elevação psíquica ao âmbito da criação literária: sua imaginação voa livremente, intimamente ligada aos devaneios da vontade, distanciando-se cada vez mais do domínio da forma constituída eruditamente. Totalmente distenso, narra a aventura do menino do campo na grande cidade em construção, colocando em relevo a poesia que surge do nada, apreendida somente pelo olhar da criança, normalmente atenta aos convites da imaginação. Comodamente instalado nesse plano elevado, no cogito(3) de sua individualidade, ele agora possui o poder de duplicar e recriar literariamente a pureza de seus primeiros anos de vida, socialmente rejeitada nos anos de mocidade.
Nesta fase, aérea, o escritor aqui realçado está tomado pela vertigem das alturas e não é sem razão que o título de sua primeira narrativa seja "As margens da alegria". Ele descobriu a linha divisória que separa a realidade comum da realidade dinâmica do mundo da pura intuição e procura criativamente transpô-la para a ficção. Por ora, vislumbra essas margens inóspitas aos não-iniciados, mas muito em breve, narrativas adiante, provará que alcançou o outro lado da terceira margem, surreal, na narrativa "A terceira margem do rio", sob o patrocínio da água dinamizada, situada no infinito dos sonhos primordiais, materializada e eternizada pelo seu poder de criação. Nesse momento, sob o domínio do ar, procura intuitivamente se desligar das coordenadas do espaço e do tempo linear; procura ultrapassar os limites do regionalismo, em direção ao autenticamente universal.
A sua íntima ligação com a matéria água não foi rejeitada. A água aqui se desprende da terra e se une ao ar. Eis agora o momento das imagens voláteis da água evaporada. As cores, por exemplo, em algumas narrativas de Primeiras Estórias, já não estão submetidas às imagens estáveis, refletoras do intenso colorido das matas e rios do sertão. As cores, agora, obedecem à ação imaginante do Artista, livres das intuições primeiras, ligadas à memória familiar. A cor azul, em "As margens da alegria", é o azul que se localiza na essência do ar.
“Seu lugar era o da janelinha, para o móvel do mundo. Entregavam-lhe revistas de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul só de ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente” (“As margens da alegria”, Primeiras Estórias).
O azul só de ar é a água evaporada, a água em suspenso, além dos outros elementos: oxigênio, nitrogênio, gás carbônico; é o azul, quase branco, que se localiza na essência do ar.
O sonhador do sertão está vivendo agora os ousados devaneios de uma nova e original tintura íntima. Esta nova tintura valoriza as substâncias do sertão, impregna-as de virtudes derramadas: o azul é diferente, porque é só de ar; as roças e campos, vistos de cima (ou do plano do cogito(3)), apresentam uma coloração diferente (um verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde), ou seja, apresentam o verde e suas gradações, incluindo a cor vermelha (essencialmente diversa do verde), para reforçar o poder de transformação de sua ficcional tintura íntima.
Ao longo de sua criação literária, o Artista sertanejo passou por quatro fases, correspondentes a sua escalada mental: do cogito(1), vital, até o cogito(3) (plano da individualidade consciente) e o cogito(4), plano espiritual.
No início, em Sagarana, ligado à imaginação formal e às matérias terra e água amalgamadas, o Artista apresentou apenas o colorido exterior do sertão, já que se encontrava submetido temporariamente à sedução da superfície. A água, nessa primeira fase, era um elemento ainda frágil, ainda passivo, não possuindo a gota de tintura e sua virtude tingidora de que fala Bachelard, ao caracterizar os pensamentos submetidos aos devaneios da vontade.
Na segunda fase, A Hora e Vez de Augusto Matraga (fase de transição para uma futura retomada dos elementos terra e água), o Artista elege o fogo em seu aspecto passivo como matéria central, propiciadora de renovação discursiva. Mas o fogo, nessa pequena narrativa, enquanto elemento, é fugaz e não lhe permite atingir verticalmente os valores supremos do colorido do sertão.
Na terceira fase, em Grande Sertão: Veredas, o fogo surge dinâmico, impulsionado pelas perspectivas dialética e maravilhada, iluminando e consumindo a tintura íntima do sonhador, ligada à água e à terra, ou seja, às cores da terra e dos rios sertanejos. O fogo das paixões bélicas e amorosas transforma o cenário, oferece um novo colorido às lembranças do sertão, engrandece um espaço singelo, aquece e dinamiza as matérias terra e água amalgamadas, remodelando-as para a eternidade. A partir dessa fase, o Artista modifica e tinge o sertão, dá-lhe um novo colorido, um poder atemporal, saído do poder de transformação da imaginação criadora bem direcionada, ligada indiscutivelmente aos devaneios da vontade.
Agora, em Primeiras Estórias, o azul é só de ar e o verde contém todas as cores em sua composição. A tintura íntima do sonhador, revigorada pelo elemento ar ativado, revaloriza o verde de um sertão diferente, pois este dito sertão, de ora em diante, será para sempre verde em sua essência.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
NEUZA MACHADO
Na primeira narrativa de Primeiras Estórias, "As margens da alegria", Guimarães Rosa inicia o seu processo de elevação psíquica ao âmbito da criação literária: sua imaginação voa livremente, intimamente ligada aos devaneios da vontade, distanciando-se cada vez mais do domínio da forma constituída eruditamente. Totalmente distenso, narra a aventura do menino do campo na grande cidade em construção, colocando em relevo a poesia que surge do nada, apreendida somente pelo olhar da criança, normalmente atenta aos convites da imaginação. Comodamente instalado nesse plano elevado, no cogito(3) de sua individualidade, ele agora possui o poder de duplicar e recriar literariamente a pureza de seus primeiros anos de vida, socialmente rejeitada nos anos de mocidade.
Nesta fase, aérea, o escritor aqui realçado está tomado pela vertigem das alturas e não é sem razão que o título de sua primeira narrativa seja "As margens da alegria". Ele descobriu a linha divisória que separa a realidade comum da realidade dinâmica do mundo da pura intuição e procura criativamente transpô-la para a ficção. Por ora, vislumbra essas margens inóspitas aos não-iniciados, mas muito em breve, narrativas adiante, provará que alcançou o outro lado da terceira margem, surreal, na narrativa "A terceira margem do rio", sob o patrocínio da água dinamizada, situada no infinito dos sonhos primordiais, materializada e eternizada pelo seu poder de criação. Nesse momento, sob o domínio do ar, procura intuitivamente se desligar das coordenadas do espaço e do tempo linear; procura ultrapassar os limites do regionalismo, em direção ao autenticamente universal.
A sua íntima ligação com a matéria água não foi rejeitada. A água aqui se desprende da terra e se une ao ar. Eis agora o momento das imagens voláteis da água evaporada. As cores, por exemplo, em algumas narrativas de Primeiras Estórias, já não estão submetidas às imagens estáveis, refletoras do intenso colorido das matas e rios do sertão. As cores, agora, obedecem à ação imaginante do Artista, livres das intuições primeiras, ligadas à memória familiar. A cor azul, em "As margens da alegria", é o azul que se localiza na essência do ar.
“Seu lugar era o da janelinha, para o móvel do mundo. Entregavam-lhe revistas de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul só de ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente” (“As margens da alegria”, Primeiras Estórias).
O azul só de ar é a água evaporada, a água em suspenso, além dos outros elementos: oxigênio, nitrogênio, gás carbônico; é o azul, quase branco, que se localiza na essência do ar.
O sonhador do sertão está vivendo agora os ousados devaneios de uma nova e original tintura íntima. Esta nova tintura valoriza as substâncias do sertão, impregna-as de virtudes derramadas: o azul é diferente, porque é só de ar; as roças e campos, vistos de cima (ou do plano do cogito(3)), apresentam uma coloração diferente (um verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde), ou seja, apresentam o verde e suas gradações, incluindo a cor vermelha (essencialmente diversa do verde), para reforçar o poder de transformação de sua ficcional tintura íntima.
Ao longo de sua criação literária, o Artista sertanejo passou por quatro fases, correspondentes a sua escalada mental: do cogito(1), vital, até o cogito(3) (plano da individualidade consciente) e o cogito(4), plano espiritual.
No início, em Sagarana, ligado à imaginação formal e às matérias terra e água amalgamadas, o Artista apresentou apenas o colorido exterior do sertão, já que se encontrava submetido temporariamente à sedução da superfície. A água, nessa primeira fase, era um elemento ainda frágil, ainda passivo, não possuindo a gota de tintura e sua virtude tingidora de que fala Bachelard, ao caracterizar os pensamentos submetidos aos devaneios da vontade.
Na segunda fase, A Hora e Vez de Augusto Matraga (fase de transição para uma futura retomada dos elementos terra e água), o Artista elege o fogo em seu aspecto passivo como matéria central, propiciadora de renovação discursiva. Mas o fogo, nessa pequena narrativa, enquanto elemento, é fugaz e não lhe permite atingir verticalmente os valores supremos do colorido do sertão.
Na terceira fase, em Grande Sertão: Veredas, o fogo surge dinâmico, impulsionado pelas perspectivas dialética e maravilhada, iluminando e consumindo a tintura íntima do sonhador, ligada à água e à terra, ou seja, às cores da terra e dos rios sertanejos. O fogo das paixões bélicas e amorosas transforma o cenário, oferece um novo colorido às lembranças do sertão, engrandece um espaço singelo, aquece e dinamiza as matérias terra e água amalgamadas, remodelando-as para a eternidade. A partir dessa fase, o Artista modifica e tinge o sertão, dá-lhe um novo colorido, um poder atemporal, saído do poder de transformação da imaginação criadora bem direcionada, ligada indiscutivelmente aos devaneios da vontade.
Agora, em Primeiras Estórias, o azul é só de ar e o verde contém todas as cores em sua composição. A tintura íntima do sonhador, revigorada pelo elemento ar ativado, revaloriza o verde de um sertão diferente, pois este dito sertão, de ora em diante, será para sempre verde em sua essência.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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