10.12 - A TEMÁTICA DA ÁGUA
NEUZA MACHADO
“Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. (...) Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. (...) Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. (...) Não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. (...) E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma” (“A terceira margem do rio”, Primeiras Estórias).
Submetido ao domínio profundo das águas do sonho (das recordações poéticas), o sonhador pode materializar o Impossível. O sentido de solidão (o Ficcionista da Era Moderna ilhado no patamar dos pensamentos reflexivos) está refletido na figura solitária do pai, imobilizado no tempo, suspenso entre o antes e o depois. Realidade e sonho se equilibram ante os reflexos dessa terceira margem. O leitor acredita na palavra do narrador, no aspecto sobrenatural da narrativa; aceita a estranheza do relato; penetra no núcleo onírico da incomum Intuição Ficcional, "comungando com a vontade de criação” (Bachelard) de quem narra.
As águas de "A terceira margem do rio" não são as águas do "Burrinho pedrês", primeira narrativa de Sagarana. Em "A terceira margem do rio", é o plano profundo do pensamento que está em questão; não mais o aspecto superficial, que pouco revela.
“Diante da água profunda, escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem ou o infinito”, diz Bachelard. O Ficcionista de origem sertaneja escolheu ver a margem irreal de um definido rio de seu passado, situada no infinito de seus sonhos, propiciando, com esta escolha, uma vida eterna para o pai/sertão. Assim como o pai, desta narrativa, o sertão de Minas Gerais sobreviverá nas recordações do filho ausente.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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