9.3 - OS DIVERSOS GRAUS DA IMAGINAÇÃO NA OBRA ROSEANA
NEUZA MACHADO
A sublimação discursiva relacionada ao ato de narrar as peripécias de vida do jagunço Riobaldo está em conflito com a sublimação dialética do escritor moderno. Enquanto o personagem procura um além em sua travessia de vida (as imagens mais inconsistentes de suas lembranças), ...
“Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. (...) mas, conforme eu vinha: (...). Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem ...
Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga” (Grande Sertão: Veredas).
... seu Criador procura alongar a narrativa submetido aos próprios questionamentos existenciais. O sertão de Grande Sertão: Veredas não é o sertão real de Minas Gerais, apenas conduz o psiquismo imaginante de quem o idealiza. A travessia de Riobaldo é uma incógnita. No momento da intuição (prenúncio da narrativa ou proposta de criação literária), o Criador de origem sertaneja (no entanto, por exigências históricas, já um intelectual citadino) possuía apenas algumas poucas certezas: uma pequena estrutura linear, o desenlace de Diadorim e a velhice do personagem narrador. O todo da narrativa foi acontecendo complexamente, subordinado aos pensamentos transmutativos. Em verdade, é o desenlace de Diadorim que sustenta o fio narrativo. Riobaldo cria sua estória de vida dentro da anterior história sertaneja (sócio-pessoal) de seu Criador. Assim, há coerência, regularidade, no aparente caos dialético, ou seja, o Artista define o seu desejo de mobilidade.
A imaginação dinâmica do Criador ficcional do século XX conduz os pensamentos de Riobaldo. O grande Urutu Branco é prisioneiro do Artista moderno.
“Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo ... Relembro Diadorim. (...) Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.
Mas aí, eu estava contando (...) Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? (...) Do sol e tudo, o senhor pode completar imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido”.
“Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me esquecendo: (...) Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo”.
“Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. (...). O que vale são outras coisas”.
“Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. (...) E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (...) Ao doido, doideras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim é como conto. (...) Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão. Não sei” (Grande Sertão: Veredas).
Por intermédio da indução da imaginação dinâmica, é o Artista que fala, aquele que possui a força de transcender o espaço do sertão. Quem tem consciência da desordem narrativa não é o personagem, é o escritor moderno, liberto dos grilhões das narrativas experientes do corpus de Sagarana.
O Ficcionista (único plenipotenciário desta incomum narrativa) conheceu o mundo antes de escrever sobre o sertão da infância, depois percebeu que o sertão continha o mundo e vice-versa. O sertão está em todos os lugares, é onde os espaços carecem de fechos. O sertão foi o ponto de partida para as longas reflexões sobre o ato de viver em sua totalidade. Em cada recanto do mundo, como cidadão do mundo, ele sonhou com aquele recanto do passado.
A estória de Riobaldo é uma travessia de vida, um convite a uma interação discursiva com o espaço ilimitado do imaginário-em-aberto; e, no entanto, no plano das probabilidades de vida, é uma estória verossímil. O amor e o ódio, a tristeza e a alegria, o bem e o mal, Deus e o diabo, são referentes da realidade cotidiana. A realidade semântica da imaginação dinâmica forma uma camada à parte que se distingue (há uma nítida separação) do aspecto linear que orienta o fio narrativo. O plano ficcional linear impõe limites à estória do jagunço Riobaldo (imaginação formal); a imaginação dinâmica (questionadora) abre o leque das profundas indagações de quem não conhece o porvir.
Depois de Grande Sertão: Veredas, o escritor rompe definitivamente com o narrador memorialista, aceitando a criação transgressora do psiquismo aéreo.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
NEUZA MACHADO
A sublimação discursiva relacionada ao ato de narrar as peripécias de vida do jagunço Riobaldo está em conflito com a sublimação dialética do escritor moderno. Enquanto o personagem procura um além em sua travessia de vida (as imagens mais inconsistentes de suas lembranças), ...
“Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. (...) mas, conforme eu vinha: (...). Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem ...
Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga” (Grande Sertão: Veredas).
... seu Criador procura alongar a narrativa submetido aos próprios questionamentos existenciais. O sertão de Grande Sertão: Veredas não é o sertão real de Minas Gerais, apenas conduz o psiquismo imaginante de quem o idealiza. A travessia de Riobaldo é uma incógnita. No momento da intuição (prenúncio da narrativa ou proposta de criação literária), o Criador de origem sertaneja (no entanto, por exigências históricas, já um intelectual citadino) possuía apenas algumas poucas certezas: uma pequena estrutura linear, o desenlace de Diadorim e a velhice do personagem narrador. O todo da narrativa foi acontecendo complexamente, subordinado aos pensamentos transmutativos. Em verdade, é o desenlace de Diadorim que sustenta o fio narrativo. Riobaldo cria sua estória de vida dentro da anterior história sertaneja (sócio-pessoal) de seu Criador. Assim, há coerência, regularidade, no aparente caos dialético, ou seja, o Artista define o seu desejo de mobilidade.
A imaginação dinâmica do Criador ficcional do século XX conduz os pensamentos de Riobaldo. O grande Urutu Branco é prisioneiro do Artista moderno.
“Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo ... Relembro Diadorim. (...) Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.
Mas aí, eu estava contando (...) Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? (...) Do sol e tudo, o senhor pode completar imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido”.
“Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me esquecendo: (...) Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo”.
“Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. (...). O que vale são outras coisas”.
“Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. (...) E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (...) Ao doido, doideras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim é como conto. (...) Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão. Não sei” (Grande Sertão: Veredas).
Por intermédio da indução da imaginação dinâmica, é o Artista que fala, aquele que possui a força de transcender o espaço do sertão. Quem tem consciência da desordem narrativa não é o personagem, é o escritor moderno, liberto dos grilhões das narrativas experientes do corpus de Sagarana.
O Ficcionista (único plenipotenciário desta incomum narrativa) conheceu o mundo antes de escrever sobre o sertão da infância, depois percebeu que o sertão continha o mundo e vice-versa. O sertão está em todos os lugares, é onde os espaços carecem de fechos. O sertão foi o ponto de partida para as longas reflexões sobre o ato de viver em sua totalidade. Em cada recanto do mundo, como cidadão do mundo, ele sonhou com aquele recanto do passado.
A estória de Riobaldo é uma travessia de vida, um convite a uma interação discursiva com o espaço ilimitado do imaginário-em-aberto; e, no entanto, no plano das probabilidades de vida, é uma estória verossímil. O amor e o ódio, a tristeza e a alegria, o bem e o mal, Deus e o diabo, são referentes da realidade cotidiana. A realidade semântica da imaginação dinâmica forma uma camada à parte que se distingue (há uma nítida separação) do aspecto linear que orienta o fio narrativo. O plano ficcional linear impõe limites à estória do jagunço Riobaldo (imaginação formal); a imaginação dinâmica (questionadora) abre o leque das profundas indagações de quem não conhece o porvir.
Depois de Grande Sertão: Veredas, o escritor rompe definitivamente com o narrador memorialista, aceitando a criação transgressora do psiquismo aéreo.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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