11.1 – ASCENSÃO AO CONCRETO: UMA PERSPECTIVA SUBSTANCIAL INFINITA
NEUZA MACHADO
“Ao lado desses devaneios de intimidade que multiplicam e magnificam todos os detalhes de uma estrutura, há um outro tipo de devaneios de intimidade material — o último dos quatro tipos que anunciamos — que valoriza a intimidade antes em intensidade substancial do que em figuras prodigiosamente coloridas. Aí começam os devaneios infinitos de uma riqueza infinita. A intimidade descoberta é menos um estojo com muitas jóias do que um poder misterioso e contínuo, que desce, como um processo sem limite, ao infinitamente pequeno da substância” (Bachelard).
Em Grande Sertão Veredas, sob a magia da perspectiva maravilhada (plano mítico substancial), o mineiro Guimarães Rosa descobriu o lado magnificente de seu sertão de origem, a matéria mítica ali conservada em estado primitivo, e impôs ao narrador-personagem ─ narrador em primeira pessoa ─ seus próprios devaneios luminosos. Por este aspecto, o sertão se dilatou e os pequenos detalhes se engrandeceram, porque o sonhador remexeu intimamente a poeira das lembranças, descobrindo as minúcias, desfossilizando, decifrando enigmas, submetendo-o a sua incansável curiosidade.
A partir daí, os devaneios do amanhecer impõem uma outra direção às futuras narrativas roseanas da última fase. O sertão já não é o mesmo das narrativas anteriores (Sagarana), agora, ele se dilata e se estende para o infinito. Como diz Bachelard, "os sonhos vão ser aumentadores”, e, por intermédio deles, o Artista pode criar uma palmeira infinita, uma "infinita palmeira-muralhavaz” (“Darandina”, Primeiras Estórias), atingir o ápice de seus diferentes sonhos do amanhecer, porque sua mão nesse momento é "um tufo vivo, um tufo de músculos, desejos, projetos” (Bachelard).
Depois das formas fundamentais, limitadoras e circulares, que o acompanharam até então, o narrador inicia, a partir de Primeiras Estórias, o processo que o levará ao despertar e à desmaterialização do sertão. Esse novo procedimento permiti-lhe a busca de planos retos e ilimitados. Livre dos sonhos de origem, liberto da meia-noite psíquica, que acrisola os fechados sonhos profundos, supervisiona seu próprio ato de sonhar, porque se encontra no espaço onírico próximo ao despertar. Há agora forças novas em seu mundo ficcional. O Artista pode modelar conscientemente a matéria que agora o seduz, buscar as dimensões preferidas, criar um sertão particular, diferente do antigo, não mais reproduzindo imagens substanciais.
“O espaço onírico do alvorecer foi mudado por uma súbita luz íntima. O ser que cumpriu seu dever de bom sono tem, de repente, um olhar que ama a linha reta e uma mão que fortifica tudo que é reto. É o dia que desponta a partir do próprio ser que desperta. A imaginação da concentração é substituída por uma vontade de irradiação” (Bachelard).
Este novo e ativo olhar intuiu a palmeira infinita, o “infausto'fantástico” da vida, “os portentosos fatos”, que encheram um dia moroso de uma cidadezinha do interior “– de chinfrim, afã e lufa-lufa” (“Darandina”, Primeiras Estórias).
Seguindo a imaginação criadora em suas fases anteriores, sua gradativa evidenciação das qualidades, procurando explicar os sonhos pelo sonho, vê-se o texto roseano, desta fase de pura criatividade ficcional, como produto do espaço onírico do despertar, ligado aos movimentos de transcendência, que saem do cerne do indivíduo. Portanto, realça-se, nesta narrativa incomum, um sertão muito íntimo (resgatado dos sonhos de origem) onde se instalam as virtudes, além de ser o invólucro da própria verdade. Este diferente sertão roseano sai literariamente de uma consciência singular, que já não se incomoda com os dogmas e as substâncias usuais, ocupada que está com seu dinamismo interior.
O texto agora não é mais uma apropriação da realidade histórica; não é mais a busca de valores de uso, em um mundo em que esses valores inexistem; não é a conversão em discurso ficcional da vivência do homem do sertão.
O sertão se instala no espaço dos sonhos dinâmicos do amanhecer, espaço intermediário, interiorizado, entre a noite e o dia, reflexo de anteriores experiências diurnas, misturadas às experiências oníricas.
Por isto, o sertão se transforma, e há a possibilidade de um personagem de ficção, como é o caso do senhor provisoriamente impoluto, do conto "Darandina", adquirir vida quase sobre-humana e escalar infinitamente uma palmeira real, lisa, "páramo empírio", "infinita palmeira-muralhavaz” (op. cit), plantada no meio de uma simples praça de um povoado do interior.
O Artista continua sonhando o sertão da infância. Agora, em sua literatura se misturam a reprodução da realidade, característica da imaginação falada, e a duplicação da realidade, característica da pura criação literária. Entra nesse sertão sob a influência do ar dinâmico, como se retornasse à casa primeira, de acordo com o idealizado anteriormente, reduplicando criativamente seu percurso de vida sob a nostalgia de uma casa idealizada e procurada nas diversas casas habitadas posteriormente. Este sentido de vida direciona seus sonhos e é o propulsor das etapas existenciais materializadas depois. A palmeira real representa suas mudanças íntimas, a escalada ao terceiro cogito, sua sábia individualidade, todas as suas fases de vida desenvolvidas pelo poder encantatório das palavras, nomeadas pelos ditames da imaginação criadora.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
NEUZA MACHADO
“Ao lado desses devaneios de intimidade que multiplicam e magnificam todos os detalhes de uma estrutura, há um outro tipo de devaneios de intimidade material — o último dos quatro tipos que anunciamos — que valoriza a intimidade antes em intensidade substancial do que em figuras prodigiosamente coloridas. Aí começam os devaneios infinitos de uma riqueza infinita. A intimidade descoberta é menos um estojo com muitas jóias do que um poder misterioso e contínuo, que desce, como um processo sem limite, ao infinitamente pequeno da substância” (Bachelard).
Em Grande Sertão Veredas, sob a magia da perspectiva maravilhada (plano mítico substancial), o mineiro Guimarães Rosa descobriu o lado magnificente de seu sertão de origem, a matéria mítica ali conservada em estado primitivo, e impôs ao narrador-personagem ─ narrador em primeira pessoa ─ seus próprios devaneios luminosos. Por este aspecto, o sertão se dilatou e os pequenos detalhes se engrandeceram, porque o sonhador remexeu intimamente a poeira das lembranças, descobrindo as minúcias, desfossilizando, decifrando enigmas, submetendo-o a sua incansável curiosidade.
A partir daí, os devaneios do amanhecer impõem uma outra direção às futuras narrativas roseanas da última fase. O sertão já não é o mesmo das narrativas anteriores (Sagarana), agora, ele se dilata e se estende para o infinito. Como diz Bachelard, "os sonhos vão ser aumentadores”, e, por intermédio deles, o Artista pode criar uma palmeira infinita, uma "infinita palmeira-muralhavaz” (“Darandina”, Primeiras Estórias), atingir o ápice de seus diferentes sonhos do amanhecer, porque sua mão nesse momento é "um tufo vivo, um tufo de músculos, desejos, projetos” (Bachelard).
Depois das formas fundamentais, limitadoras e circulares, que o acompanharam até então, o narrador inicia, a partir de Primeiras Estórias, o processo que o levará ao despertar e à desmaterialização do sertão. Esse novo procedimento permiti-lhe a busca de planos retos e ilimitados. Livre dos sonhos de origem, liberto da meia-noite psíquica, que acrisola os fechados sonhos profundos, supervisiona seu próprio ato de sonhar, porque se encontra no espaço onírico próximo ao despertar. Há agora forças novas em seu mundo ficcional. O Artista pode modelar conscientemente a matéria que agora o seduz, buscar as dimensões preferidas, criar um sertão particular, diferente do antigo, não mais reproduzindo imagens substanciais.
“O espaço onírico do alvorecer foi mudado por uma súbita luz íntima. O ser que cumpriu seu dever de bom sono tem, de repente, um olhar que ama a linha reta e uma mão que fortifica tudo que é reto. É o dia que desponta a partir do próprio ser que desperta. A imaginação da concentração é substituída por uma vontade de irradiação” (Bachelard).
Este novo e ativo olhar intuiu a palmeira infinita, o “infausto'fantástico” da vida, “os portentosos fatos”, que encheram um dia moroso de uma cidadezinha do interior “– de chinfrim, afã e lufa-lufa” (“Darandina”, Primeiras Estórias).
Seguindo a imaginação criadora em suas fases anteriores, sua gradativa evidenciação das qualidades, procurando explicar os sonhos pelo sonho, vê-se o texto roseano, desta fase de pura criatividade ficcional, como produto do espaço onírico do despertar, ligado aos movimentos de transcendência, que saem do cerne do indivíduo. Portanto, realça-se, nesta narrativa incomum, um sertão muito íntimo (resgatado dos sonhos de origem) onde se instalam as virtudes, além de ser o invólucro da própria verdade. Este diferente sertão roseano sai literariamente de uma consciência singular, que já não se incomoda com os dogmas e as substâncias usuais, ocupada que está com seu dinamismo interior.
O texto agora não é mais uma apropriação da realidade histórica; não é mais a busca de valores de uso, em um mundo em que esses valores inexistem; não é a conversão em discurso ficcional da vivência do homem do sertão.
O sertão se instala no espaço dos sonhos dinâmicos do amanhecer, espaço intermediário, interiorizado, entre a noite e o dia, reflexo de anteriores experiências diurnas, misturadas às experiências oníricas.
Por isto, o sertão se transforma, e há a possibilidade de um personagem de ficção, como é o caso do senhor provisoriamente impoluto, do conto "Darandina", adquirir vida quase sobre-humana e escalar infinitamente uma palmeira real, lisa, "páramo empírio", "infinita palmeira-muralhavaz” (op. cit), plantada no meio de uma simples praça de um povoado do interior.
O Artista continua sonhando o sertão da infância. Agora, em sua literatura se misturam a reprodução da realidade, característica da imaginação falada, e a duplicação da realidade, característica da pura criação literária. Entra nesse sertão sob a influência do ar dinâmico, como se retornasse à casa primeira, de acordo com o idealizado anteriormente, reduplicando criativamente seu percurso de vida sob a nostalgia de uma casa idealizada e procurada nas diversas casas habitadas posteriormente. Este sentido de vida direciona seus sonhos e é o propulsor das etapas existenciais materializadas depois. A palmeira real representa suas mudanças íntimas, a escalada ao terceiro cogito, sua sábia individualidade, todas as suas fases de vida desenvolvidas pelo poder encantatório das palavras, nomeadas pelos ditames da imaginação criadora.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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