10.10 - A TEMÁTICA DA ÁGUA
NEUZA MACHADO
“A água é assim um convite à morte; é um convite a uma morte especial que nos permite penetrar num dos refúgios materiais elementares” (Bachelard).
Bachelard, aqui, se refere à obra de Edgard Alan Poe, ressaltando a sedução contínua da morte em seus escritos, levando-o a uma espécie de suicídio permanente.
Em "A terceira margem do rio" (Primeiras Estórias), ao contrário, há o desejo de imortalizar o sertão: o pai-sertão não deve morrer. A canoa como um túmulo cotidiano especial, propiciadora de uma força mágica, ressuscitando permanentemente, ao anoitecer, durante os sonhos, o ser venerado.
Penso que o Artista Literário do século XX, nesta narrativa, meditou horas e horas o seu passado sertanejo, transformando cada momento em lágrimas vivas e lamentos dolorosos. Usando a voz do filho-narrador, reconta a morte psicológica do pai, ou seja, chora seu afastamento do sertão da infância, simbolizado na figura do pai. O sertão do passado jaz suspenso em seu devaneio, dentro de uma canoinha de nada, deslizando melancolicamente nas águas profundas do pensamento criador. O elemento água é um convite a uma morte especial, se pensar que o pai/sertão morre simbolicamente ao assumir o espaço da canoa, para continuar vivo, literariamente, nas recordações do filho. O pai/sertão entra na canoa/esquife, para-sempre-vivo, distante das leis naturais de vida e morte.
Nesta narrativa, especialmente, o elemento água significa eternidade, permanência, continuidade, ressurreição. O filho lamenta não possuir o dom de adquirir, como o pai, vida eterna sob o domínio da água. Mesmo assim, deseja que, no artigo da morte, o coloquem numa canoinha de nada, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro, rio eterno.
A água é o elemento das pessoas sensíveis. O filho-narrador é alter ego do filho do sertão. Ambos herdaram do pai (o Artista herdou características sertanejas) o aspecto fechado e misterioso dos seres sensíveis.
“Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai.(...) Sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade” (“A terceira margem do rio”, Primeiras Estórias).
O pai (taciturno), ao entrar na canoa, deslizando interminavelmente sobre as águas, reencontra sua profunda masculinidade e a profundidade do irreal.
O Artista, fiel às lembranças dos rios da infância, transforma essas imagens líquidas na substância paterna. O aspecto sensível da água, nesta narrativa, não se liga à figura da mãe. A mãe, criatura forte, pertencente ao elemento terra, era quem regia no diário. A água é fonte de morte e vida. Na narrativa, é fonte de morte procurada, produtora de vida eterna. Não se trata em absoluto da morte natural, humana, temida; a morte procurada ao nível da literatura desfaz o elo de ligação com a realidade diária. As águas do rio, desse rio específico, conduzem à eternidade, porque seus reflexos, já maculados pela tintura criadora, revelam o plano metafísico de uma terceira margem inexistente. O pai (o sertão) não morre, dissolve-se nas fantasias líquidas do filho sertanejo. O devaneio do filho não é fúnebre, porque as águas da narrativa propiciam a permanência do mito, em razão da ausência do pai.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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