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sábado, 12 de junho de 2010

10.9 - A TEMÁTICA DA ÁGUA


10.9 - A TEMÁTICA DA ÁGUA

NEUZA MACHADO


“Diante da água profunda, escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem ou o infinito; tens o direito ambíguo de ver e de não ver; tens o direito de viver com o barqueiro ou de viver com "uma nova raça de fadas laboriosas, dotadas de um bom gosto perfeito, magníficas e minuciosas". A fada das águas, guardiã da miragem, detém em sua mão todos os pássaros do céu. Uma poça contém um universo. Um instante de sonho contém uma alma inteira” (Bachelard).

O Artista Literário oriundo do Sertão das Gerais, no entanto, historicamente, um escritor ficcionista do século XX, escolheu interagir com o infinito, escolheu viver com as fadas laboriosas do imaginário-em-aberto; preferiu deter, em seus instantes de sonhos, todas as riquezas visíveis e invisíveis do sertão; desejou desbravar oniricamente e criativamente uma região suprafísica, composta de trilhas de terra batida e afluentes de rios eternais.

Em "Terceira margem do rio", a angústia do filho e o viver insólito do pai representam o ponto de interseção entre as duas margens reais, representadas pelo filho-narrador, e a terceira margem, estranha, diferente, refletida por uma imaginação sem fronteiras. O pai pode se instalar numa canoa de nada, adquirir uma existência inconcebível para os padrões da realidade social; pode desafiar a fúria dos elementos (raios, ventos, inundações); transformar-se em bicho, por meio do poder da imaginação que dá vida à causa material dinamizada pela imaginação criadora, porque o Artista Ficcional encontrou sua matéria específica ao longo da narrativa, ou seja, o elemento material de sua matéria literária específica.

“Poderíamos realmente descrever um passado sem imagens da profundidade? E jamais teremos uma profundidade plena se não tivermos meditado à margem de uma água profunda? O passado de nossa alma é uma água profunda” (Bachelard).

Esta terceira margem da narrativa é a imagem literária da profundidade plena de um passado sertanejo: imagem íntima, essência poética, elaborada por um indivíduo que meditou muitas vezes às margens dos rios de seu sertão de origem.

Os reflexos das águas permaneceram suspensos no tempo do pensamento, tempo superior ao tempo vital; tempo superior que comanda o repouso dos olhos e a ação da mão. Os reflexos assinalados foram recuperados pela atitude pensante do Ficcionista moderno (pós-moderno?), unida às recordações (essência poética) de um passado jamais esquecido.

O que se observa especificamente nesta escrita ficcional é a poesia da matéria água: a subjetividade poética contrapondo-se à objetividade da matéria, sob as ordens da imaginação criadora.

Esta terceira margem se materializa, porque o rio da narrativa reproduz um rio do mundo real, não faz parte do plano do não-dito. O que provém do plano do não-dito são as imagens duplicadas desse mesmo rio, produzidas pela imaginação literária. O sonhador sonhou-o materialmente, objetivamente (cor), ao se reportar aos rios de sua infância; consequentemente aprofundou-se criativamente no elemento água, por meio da gota de tintura de seus devaneios ousados, e retirou de lá uma margem inexistente no plano vital. Os leitores a formalizam no decorrer da leitura, transformando-a em substância visível.

Depois da formalização do insólito, compreende-se melhor a atitude do pai e as culpas do filho. A atitude do pai, retirando-se para as águas do rio, reflete as imagens primordiais do ser humano, submetido ao sonho material da água. No caso de "A terceira margem do rio", a atitude do pai reflete as imagens primordiais do filho do sertão. As águas do rio imaginado preenchem "uma função psicológica essencial” (Bachelard): absorver as sombras do passado sertanejo e oferecer um túmulo cotidiano a um sertão diariamente prestes a ser esquecido pela vida citadina.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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