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terça-feira, 1 de junho de 2010

9.1 - OS DIVERSOS GRAUS DA IMAGINAÇÃO NA OBRA ROSEANA


9.1 - OS DIVERSOS GRAUS DA IMAGINAÇÃO NA OBRA ROSEANA

NEUZA MACHADO



“O caráter sacrificado por uma psicologia da imaginação que se ocupa apenas da constituição das imagens é um caráter essencial, evidente, conhecido de todos: é a mobilidade das imagens. Existe uma oposição — no reino da imaginação assim como em tantos outros domínios — entre a constituição e a mobilidade. E, como a descrição das formas é mais fácil do que a descrição dos movimentos, fica explicado por que a psicologia se ocupa a princípio da primeira tarefa. No entanto, é a segunda que é mais importante. A imaginação para uma psicologia completa é, antes de tudo, um tipo de mobilidade espiritual, o tipo da mobilidade espiritual maior, mais viva, mais vivaz. Cumpre, pois, acrescentar sistematicamente ao estudo de uma imagem particular o estudo de sua mobilidade, de sua fecundidade, de sua vida” (Bachelard).

A imaginação, para Bachelard, é a faculdade que o homem possui de deformar as imagens estáveis que compõem o seu universo existencial. Esta deformação, produzida pela ação imaginante, leva-o a libertar-se das primeiras formas que seus olhos registram, ocasionando uma explosão de imagens que ultrapassa o sensivelmente dado da realidade. O escritor seria então aquele que aspira detectar imagens novas, espertando singularmente a imaginação fluida, e, com isto, criando imagens móveis a partir de imagens estáveis.

O filósofo francês, ao afirmar isto, procura questionar as pesquisas psicológicas sobre a imaginação que, ao invés de observar o aspecto móbil das imagens, fixam-se na etimologia da palavra, na qual se lê que imaginação é simplesmente a faculdade de formar imagens. Assim, os escritores e/ou o poetas da estética modernista estariam além da simples percepção do real ou mesmo além da memória familiar e dos hábitos cotidianos ligados às cores e às formas, criando imagens literárias sob o comando de seu próprio imaginário sem limites visíveis. A necessidade de permanente novidade produz o texto literário, repleto de formas em movimentos, ágeis, propiciadoras de inúmeras e diferentes imagens, a partir do princípio imaginário que as criou. O escritor do século XX, ao contrário do psicólogo, rejeita as imagens estáveis, prefere as imagens móveis e ocasionais, que conduzem a uma explosão de imagens tortuosas. O verdadeiro criador literário, aquele que se liberta da simples descrição das formas, consegue alcançar o cogito da complexa descrição dos movimentos, reduto exclusivo da espiritualidade.

A psicologia da imaginação puramente racional não compartilha dessas idéias do filósofo. Ocupada em constituir imagens, ao invés de observar seus aspectos móveis, distancia-se cada vez mais de uma compreensão salutar do assunto, o que possibilitaria a solução de vários problemas mentais que afetam o homem da atualidade. Uma psicologia da imaginação só seria completa, se estudasse a imaginação, observando sua mobilidade espiritual e, sobretudo, sabendo como determiná-la.

O filósofo refaz a idéia do mobilismo heraclitiano, em que a essência das coisas é una e múltipla ao mesmo tempo, transformando-se constantemente, indiferente às leis impostas, distanciadas da vontade de apreensão e organização da realidade, vontade esta ligada às idéias puramente racionais.

Assim, para Bachelard, a mobilidade de uma imagem não é indeterminada, ou seja, há a possibilidade de fixá-la, defini-la; há como determinar-lhe o aspecto móbil.

A mobilidade partiria então de uma mobilidade específica, propensa a uma descrição minuciosa de suas qualidades voláteis. Por este prisma, a psicologia da imaginação do movimento determinaria então a mobilidade das imagens. Esta determinação possibilitaria ao estudioso "traçar, para cada imagem, um verdadeiro hodógrafo que lhe resumiria o cinetismo” (Bachelard). O caminho de apreensão (hodo), tortuoso, em curva, não abalaria a validade do pensamento reflexivo, ao contrário, lhe resumiria seus aspectos energéticos, excitáveis, determinando os momentos de aceleração e retardamentos próprios da matéria em movimento.

Sob a proteção das imagens voláteis, o verdadeiro discurso literário transmite uma linguagem viva. O escritor determina esta vivacidade e os leitores a recebem renovada, indutora de esperanças e sentimentos especiais. As palavras, as frases, ou mesmo, os longos períodos infundem uma nova forma de viver, revelam novas possibilidades existenciais jamais pensadas.

Pensando na obra de Guimarães Rosa por este aspecto, é possível detectar, a partir de Grande Sertão: Veredas, estas imagens literárias repletas de vivacidade. Se antes o leitor de Sagarana se extasiava com a descrição do real (percepção do autor ligada à memória familiar), de ora em diante, e graças à ação imaginante do escritor, refletirá também as formas antes indefinidas. Caminheiro de uma via desconhecida para o homem comum, o escritor do século XX induz o leitor reflexivo a segui-lo nos meandros desse universo singular, obriga-o a perfazer um trajeto contínuo do real ao imaginário, transcendendo o pensamento ordinário.

Libertando-se da realidade opressiva, repensando a imaginação sem imagens (imaginação além das imagens usuais) a Literatura-Arte alcança o cogito(4) da pura espiritualidade. O escritor aqui realçado possui esta capacidade: alcança o cogito(4) criativamente, abstendo-se de tornar-se uma pessoa excêntrica socialmente; a excentricidade estaria contida apenas em sua capacidade de exprimir literariamente a novidade dos pensamentos incomuns.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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