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terça-feira, 22 de junho de 2010

11.3 – ASCENSÃO AO CONCRETO: UMA PERSPECTIVA SUBSTANCIAL INFINITA


11.3 – ASCENSÃO AO CONCRETO: UMA PERSPECTIVA SUBSTANCIAL INFINITA

NEUZA MACHADO


Enquanto esteve empoleirado na palmeira, o sujeito "insensato", acima da "sensatez" do povo (enquanto "o mundo inferior estalava” - “Darandina, Primeiras Estórias), esteve "em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado, com a cabeça comportada” (Guimarães Rosa, op. cit.). O homem da palmeira se manteve lúcido graças a seu demiurgo ficcional, já prestes a acordar, liberto das experiências comunitárias da existência histórica, agora com os olhos relaxados e as mãos ativadas, envolvido pelos sonhos ilimitados dos devaneios do ar. Assim, numa rápida duração, num rápido momento suspenso entre o antes e o depois, o sujeito se mescla à árvore do crescimento individual, também “florescendo e frutificando”, “irrealmente na ponta da situação”, dependendo única e exclusivamente dele, sujeito/indivíduo.

“Era meio-dia em mármore. Em que curiosamente não se tinha fome nem sede, de demais coisas qual que me lembrava. Súbita voz: "— Vi a Quimera!" — bradou o homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e que era? Por ora, agora, ninguém, nulo, joão, nada, sacripante qüidam. Desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo: o que provou, por sinais muito claros. Desadorava. Todavia, ao jeito jocoso, fazia-se de castelo-no-ar. Ou era pelo épico epidérmico? Mostrou — o que havia entre a pele e a camisa” (“Darandina”, Primeiras Estórias).

O personagem (ou o Artista?), do alto da palmeira (ou do cogito(3)?), vê a Quimera. Por ora, agora, (um) ninguém, (um) nulo, (um) joão atreve-se a proclamar que viu a Quimera. “E quem e que era”, para afirmar tal coisa? No entanto, o sujeito (às normas de bem narrar) se encontra no início de um processo de libertação, com probabilidades ficcionais de ter visto a Quimera (um produto da imaginação).

O narrador/Criador se descobriu um ser insignificante diante da Quimera. A partir de suas experimentações literárias, o que ele alcançou não se sustentava diante de uma realidade maior: ou ele se diluía totalmente na Quimera ou retornava à realidade da qual havia se afastado. Por isto, seu personagem irou-se, ou seja, o Artista Literário irou-se, imprensado entre dois mundos, pois a sua busca de transcendência narrativa não poderia afetar a sua própria necessidade de viver.

Nesse instante de inegável criação ficcional, a narrativa e o personagem fogem ao seu controle e ascendem a sua consciência particular. Por uma via diferenciada, questiona o que possuía até então como pessoa. Diante desse momento catártico, fica pressionado a escolher entre seguir (diluição total) ou retornar e recomeçar.

O Artista (humano) alcançou o plano da Quimera (seu personagem vê a Quimera) e seu lado de criador literário questiona a validade do que foi alcançado, assim como questiona a sua própria intuição demiúrgica. Quem é ele, um Artista do Sertão, para atingir o plano da Quimera? Quem é ele, um Artista sertanejo, para intuir o Vazio Criador, vislumbrado no momento em que seu personagem mostrou o que havia entre a pele e a camisa? Quem é ele, Artista do Mundo Ficcional, para negar a verdadeira dimensão de sua criação?

No entanto, nesta arena de emoções exaltadas, ao mesmo tempo engrandecendo-se e diminuindo-se, o escritor de origem sertaneja (aqui ─ só para lembrar-me de Roland Barthes ─, não existe a intenção de confundir o escritor com o narrador), humildemente obriga-se a reconhecer a sua elevada ascensão aos cogitos superiores da criação. Apenas na composição da narrativa, e dentro do contexto histórico-literário em que se acha inserido, é forçado a escolher entre diluir o personagem “provisiriamente impoluto”, ou seja, jogá-lo no Vazio da pura Criação Ficcional; ou retomar/retornar renovado ao convívio do mundo inferior, submetido ao plano da pouco valorizada linearidade.

O ato do personagem subindo a palmeira insólita permite esses questionamentos e promove esse novo olhar criativo. Liberto dos grilhões ideológicos, “desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo” (op. cit.), ele vê a Quimera no plano do infinitamente provável da imaginação singular. O agora Indivíduo renasce (não é mais Sujeito), servindo-se de seu personagem; agora, tudo se dilata, expondo à vista o Infinito, graças à insolidez da nova matéria que o impulsiona. O Indivíduo renasce, utilizando-se da momentânea loucura de seu personagem, pois este o faz despir-se também dos conceitos relativos. E eis aqui o Artista de matéria ficcional sertaneja quase desperto em seu sono de amanhecer, e eis o narrador, alter ego do Artista, submetido ao sonho que antecede ao despertar.

Enquanto o personagem se despe, liberta-se das "experiências telescópicas” da realidade ordinária. O narrador (observador atento) testemunha este entrechoque de realidades. A cena do desnudamento irrompe-se, saída de uma dimensão particular, saída do "olhar que ama a linha reta e de uma mão que fortifica tudo o que é reto” (Bachelard).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8.

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