11.7 – ASCENSÃO AO CONCRETO: UMA PERSPECTIVA SUBSTANCIAL INFINITA
NEUZA MACHADO
Retomando algumas assertivas anteriores, a matéria primordial de Grande Sertão: Veredas é o fogo, iluminando e enriquecendo os elementos terra e água amalgamadas; o sertão, com seus rios míticos e veredas misteriosas. Mas é perceptível em alguns momentos e em menor escala o elemento ar, ainda não dinamizado.
Lembro-me por exemplo da fala de Riobaldo: o diabo na rua, no meio do redemunho. A palavra redemunho (redemoinho, remoinho) obriga-me a lembrar do elemento em questão; redemoinho ligado ao vento, ao cheiro de terra e enxofre, ao ser imaginado e amedrontador, portanto, alado. O elemento ar está pré-anunciado em Grande Sertão: Veredas.
Já em "Darandina" (Primeiras Estórias), o ar é o elemento principal. O acontecimento ― desta incomum narrativa de Guimarães Rosa ― se materializa por meio de um vendaval de emoções, abalando a pacata cidadezinha. Se o acontecimento (marca do padrão narrativo ficcional do século XX) se encontra sob as ordens da imaginação aérea, nada mais natural do que o personagem, perseguido, subir facilmente a lisa palmeira-real, instalada quase no meio da praça, como se fosse um ato comum.
“Ora, quase no meio da praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível, ascensionalíssimo. — Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? — inquiria um filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se.” (“Darandina”, Primeiras Estórias).
A ação de subir a palmeira compara-se ao vôo onírico de que fala Bachelard. O personagem é aéreo, possui substância aérea, porque se encontra nos domínios da imaginação aérea de seu criador, simbolizando os seus sonhos de altura.
Os sapatos do personagem casual são a asa onírica, as sandálias de Hermes, e repetem o mítico e milenar desejo de ascensão inserido na história literária do Homem. A imaginação dinâmica do Artista, no instante da criação literária, permitiu a subida ao incrível, e permitiu também todos os posteriores procedimentos do personagem suspenso no páramo empírio, comodamente instalado na morada dos deuses, distanciado de seus perseguidores e muito próximo a um céu de safira. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os Artistas brasileiros do século XX, com bases de vida precárias, que conseguem atingir espontaneamente e criativamente os planos superiores da "consciência pura".
O Artista, narrando as aventuras do homem ignaro, revela a sua ascensão ao plano mais elevado de sua escalada ao imaginário-em-aberto.
Reafirmo que, agora, ele se encontra no plano do cogito(3) da individualidade consciente, desejoso de se libertar dos dogmas vitais que o acorrentam. Sua imaginação dinâmica tem o poder de elevar o homem da palmeira ao infinito, por meio de um discurso insólito, diferente, difícil de ser alcançado. O discurso diferente produz imagens aéreas, transporta o leitor para o alto da palmeira, fá-lo compactuar com a imaginação móbil do escritor, liberto agora das imagens primeiras do Sertão.
Aqui, para finalizar este capítulo, farei minhas as palavras de Bachelard, quando apresenta os sonhos aéreos do escritor Jean-Paul Richter: "Quem leu e sonhou acima da terra, na forquilha de uma velha nogueira, reencontrará o devaneio de Jean-Paul”. Assim, refortalecida filosoficamente, posso dizer: quem leu e sonhou acima da terra, na forquilha de uma velha árvore brasileira, seja do campo ou da cidade, reencontrará o devaneio aéreo do Artista brasileiro. A partir daí, compreenderá o desnudamento do personagem “provisoriamente impoluto”, compreenderá a palmeira como um verdadeiro páramo empírio, espécie de morada acessível apenas a poucos privilegiados.
Retomando algumas assertivas anteriores, a matéria primordial de Grande Sertão: Veredas é o fogo, iluminando e enriquecendo os elementos terra e água amalgamadas; o sertão, com seus rios míticos e veredas misteriosas. Mas é perceptível em alguns momentos e em menor escala o elemento ar, ainda não dinamizado.
Lembro-me por exemplo da fala de Riobaldo: o diabo na rua, no meio do redemunho. A palavra redemunho (redemoinho, remoinho) obriga-me a lembrar do elemento em questão; redemoinho ligado ao vento, ao cheiro de terra e enxofre, ao ser imaginado e amedrontador, portanto, alado. O elemento ar está pré-anunciado em Grande Sertão: Veredas.
Já em "Darandina" (Primeiras Estórias), o ar é o elemento principal. O acontecimento ― desta incomum narrativa de Guimarães Rosa ― se materializa por meio de um vendaval de emoções, abalando a pacata cidadezinha. Se o acontecimento (marca do padrão narrativo ficcional do século XX) se encontra sob as ordens da imaginação aérea, nada mais natural do que o personagem, perseguido, subir facilmente a lisa palmeira-real, instalada quase no meio da praça, como se fosse um ato comum.
“Ora, quase no meio da praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível, ascensionalíssimo. — Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? — inquiria um filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se.” (“Darandina”, Primeiras Estórias).
A ação de subir a palmeira compara-se ao vôo onírico de que fala Bachelard. O personagem é aéreo, possui substância aérea, porque se encontra nos domínios da imaginação aérea de seu criador, simbolizando os seus sonhos de altura.
Os sapatos do personagem casual são a asa onírica, as sandálias de Hermes, e repetem o mítico e milenar desejo de ascensão inserido na história literária do Homem. A imaginação dinâmica do Artista, no instante da criação literária, permitiu a subida ao incrível, e permitiu também todos os posteriores procedimentos do personagem suspenso no páramo empírio, comodamente instalado na morada dos deuses, distanciado de seus perseguidores e muito próximo a um céu de safira. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os Artistas brasileiros do século XX, com bases de vida precárias, que conseguem atingir espontaneamente e criativamente os planos superiores da "consciência pura".
O Artista, narrando as aventuras do homem ignaro, revela a sua ascensão ao plano mais elevado de sua escalada ao imaginário-em-aberto.
Reafirmo que, agora, ele se encontra no plano do cogito(3) da individualidade consciente, desejoso de se libertar dos dogmas vitais que o acorrentam. Sua imaginação dinâmica tem o poder de elevar o homem da palmeira ao infinito, por meio de um discurso insólito, diferente, difícil de ser alcançado. O discurso diferente produz imagens aéreas, transporta o leitor para o alto da palmeira, fá-lo compactuar com a imaginação móbil do escritor, liberto agora das imagens primeiras do Sertão.
Aqui, para finalizar este capítulo, farei minhas as palavras de Bachelard, quando apresenta os sonhos aéreos do escritor Jean-Paul Richter: "Quem leu e sonhou acima da terra, na forquilha de uma velha nogueira, reencontrará o devaneio de Jean-Paul”. Assim, refortalecida filosoficamente, posso dizer: quem leu e sonhou acima da terra, na forquilha de uma velha árvore brasileira, seja do campo ou da cidade, reencontrará o devaneio aéreo do Artista brasileiro. A partir daí, compreenderá o desnudamento do personagem “provisoriamente impoluto”, compreenderá a palmeira como um verdadeiro páramo empírio, espécie de morada acessível apenas a poucos privilegiados.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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