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segunda-feira, 14 de junho de 2010

10.11 - A TEMÁTICA DA ÁGUA


10.11 - A TEMÁTICA DA ÁGUA

NEUZA MACHADO


Gaston Bachelard, refletindo filosoficamente sobre a obra de Edgard Alan Poe, fala de uma água elementar, ligada ao ideal do devaneio criador, por ele denominada absoluto do reflexo.

O filósofo vê no reflexo das águas da criação literária de Poe uma realidade mais verdadeira do que a própria realidade: o que ele chama de realidade absoluta. Em suas considerações, se a vida é um sonho dentro do sonho, o reflexo do reflexo é mais real. Contemplando as águas dinâmicas, já no âmbito da Ficcional Literatura-Arte, o escritor vê com nitidez, observa o invisível da realidade.

Ao seguir em seus detalhes a água imaginada por Guimarães Rosa, em "A terceira margem do rio", vê-se que a sua poderosa imaginação não reúne os esqueletos da vida atraída pela morte, como se observa na obra de Poe. Ao contrário, a morte cotidiana do Pai, longe de seus conceitos iniciais de existência, se revela atraída pela vida, silenciosa e em permanente renovação, dos rios de uma infância sertaneja singular, situados no plano da imaginação criadora.

A imaginação criadora, em "A terceira margem do rio", ao invés de se ligar ao plano da memória (lembrança), se liga ao plano da poesia (recordação), ressurreição (um corpo renasceu perfeito) de velhas vivências. Conscientemente, parodiando aqui Gaston Bachelard, posso dizer que a água desse rio roseano de três margens fornece o símbolo de uma morte especial, atraída por uma vida diferente, imortal, possível apenas no plano da consciência singular. Essa incomum terceira margem só é apreendida quando se alcança o absoluto do reflexo da memória (do que se desejou lembrar). A vida do pai, dentro da canoa, era uma atitude estranha aos conceitos de realidade do filho, e só pode ser alcançada pelo narrador no plano das probabilidades da ficção.

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia” (“A terceira margem do rio", Primeiras Estórias).

O pai, nesta narrativa ímpar, passou a viver no plano da imaginação dos sonhos bem sonhados. "O infinito, em nossos sonhos, é tão profundo no firmamento quanto sob as ondas” (Bachelard), não importando que a matéria do sonhador seja água ou ar. A verdadeira realidade para o filho sertanejo: o pai entrou em uma canoa, remou anos seguidos, e não foi a lugar algum. "Aquilo que não havia, acontecia" (op. cit.) e no entanto não há dúvidas quanto a veracidade do relato. O rio sertanejo é real, a estória é verossímil, mas a existência do pai ultrapassa os limites da vida ordinária.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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