12.3 - UMA ÍNTIMA ESCALADA AOS COGITOS SUPERIORES
NEUZA MACHADO
Recuperando os pensamentos iniciais desta apreciação teórico-reflexiva, a imaginação literária (o que em Ciência da Literatura se conhece por Criação Literária), ligada à linguagem, possibilita ao Ficcionista do século XX se libertar da realidade propriamente dita (Cogito(1)), criando imagens diferentes das imagens usuais.
Examinando a continuidade da obra ficcional de Guimarães Rosa, já na primeira narrativa de Primeiras Estórias, "As margens da alegria", o Criador Literário, planando livremente no seu cogito particular (Cogito(3)), apodera-se da imaginação infantil, imita o pensamento da criança e cria um mundo diferente, renovado, só acessível a poucos leitores.
Nessa fase, o Artista vivencia o cogito(3), como indivíduo ainda ligado às normas do bom senso, mas, literariamente, penetra aos poucos na camada insólita do cogito(4), revolvendo o material amorfo que a compõe, retirando de lá um discurso instável, ainda não constituído, provocador, denunciador da “mobilidade das imagens” (Bachelard). Conhecedor desses dois cogitos superiores, o dono do ato de narrar está muito à vontade nesses planos distintos do pensamento. Graças a esses conhecimentos, é muito fácil para o indivíduo (indivíduo aqui em seu sentido etimológico) ver a realidade de acordo com o olhar da criança, perceber as nuanças mentais dos loucos, resgatar e renovar imagens antigas ou ultrapassar os limites do possível.
Os personagens da coletânea Primeiras Estórias convivem com o invisível, com a desordem, seja ela linguística ou social, porque agora aquele deus-que-garante-tudo, que se insinuou em A Hora e Vez de Augusto Matraga, está plenamente consciente de seu poder de criação. Nestes cogitos superiores, a poesia sem forma vaga fluidamente, propiciando ao ficcionista-poeta-do-sertão apreendê-la em sua essência. Nas narrativas de Primeiras Estórias e nas obras seguintes, é o Criador ficcional que manipula o próprio inconsciente e o inconsciente do leitor. O antigo sonhador de sonhos profundos da meia-noite psíquica (sonhos de origem, enovelados e vitais) está agora nos últimos estágios dos sonhos do amanhecer, buscando as linhas retas e verticais que o levarão ao infinito. Com o olhar semi-cerrado e as mãos firmes ele não se incomoda mais com as exigências substanciais da realidade vital.
O Artista de origem sertaneja retoma conscientemente a perspectiva dialética iniciada nas páginas de A Hora e Vez de Augusto Matraga, mas agora associa-a a uma nova perspectiva (não mais a maravilhada, ligada à matéria mítica), associa-a à perspectiva de intensidade substancial infinita. O ar, a substância que a compõe, é invisível, mas é cientificamente comprovado como matéria integrante dos quatro elementos que sustentam a vida.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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