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segunda-feira, 26 de abril de 2010

2.3 – GUIMARÃES ROSA: UMA PERSPECTIVA DIALÉTICA


2.3 – GUIMARÃES ROSA: UMA PERSPECTIVA DIALÉTICA

NEUZA MACHADO



As lembranças íntimas do passado sertanejo possuem o valor de uma felicidade primitiva e perdida, simbolizam o retorno ao berço, aos primeiros passos protegidos em direção ao futuro.

“Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol” (Bachelard).

Aumentado pelas recordações da infância, o sertão real vai se transformar aos poucos em sertão roseano pelo prisma da perspectiva dialética do Criador. Graças a esta questionadora lente de aumento, o minúsculo se dilatará, modificando o sentido da narrativa. O personagem Nhô Augusto, nas páginas finais, retornando ao arraial do Murici, "achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas nos caminhos do sertão” (A Hora e Vez de Augusto Matraga). Guiado pelo narrador, totalmente submetido aos devaneios de felicidade do Artista, pára, a cada passo, para espiar/revelar cada milímetro de intimidade da caminhada.

“Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d'arco florido e de um solene pau-d'óleo, que ambos conservavam muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.

E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.

Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de tecto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros lhe davam comida, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).


Sonhando intimamente o sertão da infância e revelando substancialmente suas imagens, sem abandonar as imagens poéticas, o Artista passa a aliar as duas forças imaginantes (formal e material) de que dispõe. Nas fases seguintes, deixou que as duas forças atuassem conjuntamente, mas houve um aprimoramento realçando a imaginação material associada à imaginação criadora, valorizando mais os aspectos íntimos do sertão ligados a uma atividade material infinita; uma imaginação saída dos devaneios infinitos (Bachelard), possuindo uma riqueza inesgotável, muito próxima do autêntico lirismo.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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