Em "São Marcos", narrativa do corpus de Sagarana, Guimarães Rosa pré-anuncia as descobertas das perspectivas dialética e maravilhada, perspectivas estas que serão devidamente recriadas nas páginas de Grande Sertão: Veredas. Em "São Marcos", o narrador, sob a orientação mágica da feitiçaria (plano mítico-substancial) e da desautomatização da linguagem, e além disso, procurando reorganizar esteticamente o real sertanejo, passa a ressaltar as belezas das serras e grotas, quase entrevendo o mundo fechado e de formas vagas do imaginário criativo.
"São Marcos" é uma narrativa que mistura o gênero ensaístico (o narrador como repórter de um lugar primitivo, mostrando as ideologias e superstições de um povo) com a capacidade de desautomatizar a linguagem, ou seja, utiliza-se de um linguajar insólito para descrever a natureza, portanto, já entrevendo a sua imaginação criadora, que está a caminho. No entanto, sob o simples comando da descrição, a poética da água (Bachelard) já começa a se destacar, assim como o verde das folhas em meio ao colorido intenso e exterior de um mundo desconhecido e mítico.
“Do lado da encosta e do lado do vale, temos a mata: marmelinho, canela, jacarandá, jequitibá-rosa; a barriguda, armada de espinhos, de copa redonda; a mamica-de-porca — também de coluna bojuda, com outros espinhos; o sangue-de-andrade, que é "pau dereito"; o esqueleto de um deixa-falar, sem uma folha, guardada apenas a grade resseca; e os jacarés novos, absurdos, de folhinhas finas, em espiguilha, que nem folhas de sensitiva, enquanto a casca se eriça em tarjas, cristas, listéis e caneluras, como a crista do dorso de um caimão.(...) E nas ramas, rindo, cheirosos epidendros, com longos labelos marchetados de cores, com pétalas desconformes, franzidas, todas inimigas, encrespadas, torturadas, que lembram bichos do mar róseo-maculados, e roxos, e ambarinos — ou máscaras careteantes, esticando línguas de ametista.(...) Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo com espirais contrictas. De perto, na tectura sóbria — só três ou quatro galhos — as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato. (...) Pelas frinchas, entre festões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das Três-Águas. Três? Muito mais! A lagoa grande, oval, tira do seu pólo rombo dois córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado de poços e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. (...) E as superfícies cintilam, como raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabúas, taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquarassus. Outras imbuíbas mui tupis. E o buritizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos, flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques; de todas as alturas e de todas as idades, famílias inteiras, muito unidas; buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos” (“São Marcos”, Sagarana)
Por enquanto, o sonhador do sertão reproduz os sonhos retorcidos de sua meia-noite psíquica, imita o reflexo da paisagem sertaneja, saído das águas mágicas das lembranças. Ele reproduz linearmente as cores e as formas de uma natureza que sempre o encantou (aqui, o verbo encantar em seu sentido etimológico), pois a paisagem revisitada no decurso das lembranças (o reflexo da superfície da lagoa oval do brejo) "determina o devaneio que antecede a criação artística” (Bachelard).
A grande obra, saída dos devaneios da vontade (Grande Sertão: Veredas), está por ora no porvir e reclama ser apreendida.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
"São Marcos" é uma narrativa que mistura o gênero ensaístico (o narrador como repórter de um lugar primitivo, mostrando as ideologias e superstições de um povo) com a capacidade de desautomatizar a linguagem, ou seja, utiliza-se de um linguajar insólito para descrever a natureza, portanto, já entrevendo a sua imaginação criadora, que está a caminho. No entanto, sob o simples comando da descrição, a poética da água (Bachelard) já começa a se destacar, assim como o verde das folhas em meio ao colorido intenso e exterior de um mundo desconhecido e mítico.
“Do lado da encosta e do lado do vale, temos a mata: marmelinho, canela, jacarandá, jequitibá-rosa; a barriguda, armada de espinhos, de copa redonda; a mamica-de-porca — também de coluna bojuda, com outros espinhos; o sangue-de-andrade, que é "pau dereito"; o esqueleto de um deixa-falar, sem uma folha, guardada apenas a grade resseca; e os jacarés novos, absurdos, de folhinhas finas, em espiguilha, que nem folhas de sensitiva, enquanto a casca se eriça em tarjas, cristas, listéis e caneluras, como a crista do dorso de um caimão.(...) E nas ramas, rindo, cheirosos epidendros, com longos labelos marchetados de cores, com pétalas desconformes, franzidas, todas inimigas, encrespadas, torturadas, que lembram bichos do mar róseo-maculados, e roxos, e ambarinos — ou máscaras careteantes, esticando línguas de ametista.(...) Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo com espirais contrictas. De perto, na tectura sóbria — só três ou quatro galhos — as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato. (...) Pelas frinchas, entre festões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das Três-Águas. Três? Muito mais! A lagoa grande, oval, tira do seu pólo rombo dois córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado de poços e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. (...) E as superfícies cintilam, como raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabúas, taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquarassus. Outras imbuíbas mui tupis. E o buritizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos, flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques; de todas as alturas e de todas as idades, famílias inteiras, muito unidas; buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos” (“São Marcos”, Sagarana)
Por enquanto, o sonhador do sertão reproduz os sonhos retorcidos de sua meia-noite psíquica, imita o reflexo da paisagem sertaneja, saído das águas mágicas das lembranças. Ele reproduz linearmente as cores e as formas de uma natureza que sempre o encantou (aqui, o verbo encantar em seu sentido etimológico), pois a paisagem revisitada no decurso das lembranças (o reflexo da superfície da lagoa oval do brejo) "determina o devaneio que antecede a criação artística” (Bachelard).
A grande obra, saída dos devaneios da vontade (Grande Sertão: Veredas), está por ora no porvir e reclama ser apreendida.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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