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domingo, 25 de abril de 2010

2.2 – GUIMARÃES ROSA: UMA PERSPECTIVA DIALÉTICA


2.2 – GUIMARÃES ROSA: UMA PERSPECTIVA DIALÉTICA

NEUZA MACHADO



No primeiro segmento do ato de recontar o sertão, o narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga se encanta com suas descobertas, realçando ficcionalmente apenas imagens superficiais. Isto acontece, porque o plenipotenciário do modo de narrar (o Ficcionista) se encontra submetido aos sonhos profundos, "onde germinam virtudes de origem” (Bachelard); encontra-se no "centro da noite", sob a inspiração apenas do relaxamento dos olhos. Sonha o sertão da infância, vai ao centro de suas próprias recordações em movimentos circulares, retirando de lá sua própria segurança psíquica, para enfrentar os inesperados da modernidade. As narrativas de Sagarana, com a exceção de A Hora e Vez de Augusto Matraga, simbolizaram o momento da busca do sertão minúsculo em seu sentido geográfico. Os contos reunidos no corpus de Sagarana se manifestaram em espaços estreitos e limitados, porque foram concebidos sob as ordens do discurso linear, ligado aos sonhos fechados e circulares do sono profundo (cf. Bachelard). Assim, reafirmando o que foi dito, A Hora e Vez de Augusto Matraga é o momento do sertão miniaturizado, diferente da idéia de minúsculo como espaço estreito.

“Liberto dos mundos longínquos, das experiências telescópicas, devolvido pela noite íntima e concentrada a uma existência primitiva, o homem em seu sono profundo reencontra o espaço carnal formador. Tem os mesmos sonhos de seus órgãos: seu corpo vive na simplicidade dos germes espaciais reparadores, com vontade de restaurar as formas fundamentais” (Bachelard).

O Artista da primeira fase reencontra seu espaço carnal formador graças à intevenção das lembranças profundas (sonhos profundos); cada personagem e cada coisa representando uma partícula de seu eu sertanejo. Assim, traz à luz "raízes, vermes, bichinhos”, pássaros, sementinhas, mariposas, sapos, destacando o plano das imagens formais e sentimentais, confortavelmente instalado em seus sonhos seguros e repousantes.

Mas há um momento de aguda reflexão: que sertão é este que agora povoa seus sonhos com seres imaginários? É realmente o pequeno lugar da infância? "Os fenômenos do infinitamente pequeno assumem um aspecto cósmico” (Bachelard). A Hora e Vez de Augusto Matraga é o marco dessa fase dialética, em que o sertão miniaturizado alcança uma grandeza diferente. Rompendo com a perspectiva anulada (Bachelard), marca principal das narrativas de Sagarana, repensa o princípio do ato de ver, desenvolvendo questionamentos e reflexões; aberto à curiosidade de entender e alcançar o interior da matéria. Dialetizando o seu próprio ato de ver e criar o mundo sertanejo, passa também a remexer a terra, ainda fofa, do sertão.

Por meio da perspectiva dialética, transpõe os limites visíveis de sua matéria ficcional, miniaturizando-a, olhando os tesouros de sua intimidade, apoderando-se daquele espaço, amparado pelo poder da imaginação questionadora. Consequentemente, faz o personagem Augusto sonhar com um "deus valentão", astucioso, "que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo” (A Hora e Vez de Augusto Matraga) porque será a partir de então que o seu narrador terá condições de mudar os rumos da narrativa, sob a imposição de seu próprio ato de criar.

A narrativa assinalada se modifica também graças ao elemento fogo, como marca de mudança irreversível, e à "dialética do externo e interno” de que fala Bachelard e, assim, visualiza-se o narrador se contagiando pelas minúcias do sertão, mas que na verdade são os devaneios íntimos do Criador, os fragmentos de suas lembranças buscando recuperar os pequenos detalhes de um lugar do passado, detalhes irrecuperáveis ao nível substancial.

Graças à ficção, o Artista visita os recantos do sertão, revê aspectos que normalmente são olhados com pouca atenção, reflete sobre o bem e o mal, acompanha o personagem em seu retorno ao arraial do Murici, como se estivesse seguindo "a Fada das Migalhas em sua carruagem grande como uma ervilha, com todas as cerimônias dos velhos tempos” (Bachelard) revelando um universo de intimidade bem protegida.

“Se consentimos dar uma realidade primária à imagem, se não limitamos as imagens a simples expressões, sentimos subitamente que o interior (...) possui o valor de uma felicidade primitiva. Viveríamos felizes se reencontrássemos aí os sonhos primitivos da felicidade, da intimidade bem protegida. Decerto, a felicidade é expansiva, tem necessidade de expansão. Mas também tem necessidade de concentração, de intimidade. Assim, quando a perdemos, quando a vida proporcionou "maus sonhos", sentimos saudade da intimidade da felicidade perdida. Os primeiros devaneios ligados à imagem íntima do objeto são devaneios de felicidade. Toda a intimidade objetiva seguida em um devaneio natural é um germe de felicidade” (Bachelard).

Para o homem que venceu os obstáculos de origem, submetido às imposições da vida moderna, as recordações do sertão da infância são devaneios de felicidade. Por isto, como assinalo no capítulo "Sertão: cenário da verdadeira representação do Artista", o narrador (alter ego do Artista) mostra apenas um determinado sertão, definindo poeticamente a situação desse espaço. Em seus devaneios felizes não há lugar para discutir a decadência do sertão geográfico, subserviente às imperfeições do mundo moderno; quando muito, essas imperfeições são detectadas por um leitor-crítico, quase que intuitivamente, graças às pequenas referências sócio-ideológicas, difíceis de serem eliminadas totalmente do texto.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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