1.11 – GUIMARÃES ROSA: A ESTÓRIA DO BAMBUZAL
NEUZA MACHADO
“Tiro o relógio. Só o tique-taque, claro. Experimento um cigarro — não presta, não tem gosto, porque não posso ver a fumaça. Espera, há alguma coisa... Passos? Não. Vozes? Nem. Alguma coisa é; sinto. Mas, longe, longe... O coração está-me batendo forte. Chamado de ameaça, vaga na forma, mas séria: perigo premente. Capto-o. Sinto-o direto, pessoal. Vem do mato? Vem do sul. Todo o sul é o perigo. Abraço-me com a suinã. O coração ribomba. Quero correr.
Não adianta. Longe, no sul. Que será? "Quem será?"... É meu amigo, o poeta. Os bambús. Os reis, os velhos reis assírio-caldaicos, belos barbaças como reis de baralho, que gostavam de vazar os olhos de milhares de vencidos cativos? São meros mansos fantasmas, agora; são meus. Mas, então, qual será a realidade, perigosa, no sul? Não, não é perigosa. É amiga. Outro chamado. Uma ordem. Enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência:
― Guenta o relance, Izé!” (“São Marcos”, Sagarana).
As imagens literárias, agora, saem do mistério da matéria. O Artista abandona temporariamente (observar que, nesta narrativa, ele ainda não assume a total desorientação verbal tão nítida em Grande Sertão: Veredas e nas narrativas seguintes, apesar do aparente fio narrativo que as estruturam) a descrição de belezas já instituídas e passa a agir ativamente sobre a matéria; ele está no momento sob o encantamento da própria energia, e esta não se preocupa com o linear.
No início da narrativa, ele estava propenso a descrever a beleza exterior das formas da floresta e o encantamento exterior das superstições; agora, graças à cegueira e àquela sub-estória intuída, a estória do bambuzal e do poeta desconhecido,
"Foi quase logo que eu cheguei ao Calango-Frito, foi logo que eu me cheguei aos bambús. Os grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:
"Teus olho tão singular
Dessas trancinhas tão preta
Qero morer eim teus braço
Ai fermosa Marieta".
“E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:
Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar,
Salmanassar
Nabonid,
Nabopalassar,
Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib
E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, posto sobre as reais comas eriçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes” (“São Marcos”, Sagarana).
O "novo" ficcionista se propõe a mostrar seus próprios esforços para detectar as belezas escondidas na plenitude da forma.
Submetido aos acontecimentos insólitos, ele indaga o que está por vir, já que perdeu, momentaneamente, o controle do narrado. Os sentidos aguçados o alertam quanto ao Desconhecido. O Sul, aqui, representa o mundo da intuição, espaço de criação, da mesma forma que o Norte em A hora e vez de Augusto Matraga. Os reis assírio-caldaicos, historicamente ferozes, não passam de reis de baralho, porque agora estão submetidos ao poder da criação literária. Enfim, a realidade da criação não é perigosa, pois, após o medo inicial de seu narrador, vem-lhe a certeza de que é ele, o Artista, o senhor de tal mundo; os reis assírio-caldaicos são propriedade dele.
A ordem, enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência: ‘— Guenta o relance, Izé!’, sai do infinito de sua própria vontade de criação: ‘— Guenta o relance, João Guimarães Rosa’. Na ontologia de luta, em que o experiente narrador do sertão põe-se em guarda contra o narrador moderno, a vitória será incontestavelmente do Artista do século XX e seu narrador (de seu momento histórico). Não há como fugir de sua própria realidade estético-histórica.
“Guenta o relance, Izé!
Respiro. Dilato-me. E grito:
— E aguento mesmo!...
Eco não houve, porque a minha clareira tem boa acústica. Mas o tom combativo da minha voz derramou em mim nova coragem. E, imediatamente, abri a tomar ar fundo, movendo as costelas todas, sem pedir licença a ninguém. Vamos ver!” (“São Marcos”, Sagarana).
O narrador abriu a tomar ar fundo, porque não é possível, ficcionalmente e poeticamente, permanecer para sempre ligado à matéria terra, tão estável. Para que haja uma literatura deformante e criadora (atenção: a palavra deformante, aqui, não poderá ser vista como expressão pejorativa) ligada ao elemento terra (a terra real do sertão), o Artista, para escrever, necessitará ter visto muito, precisará somar imaginação, fragmentos do real, lembranças e sentimentos. O bem ver é diferente do bem sonhar. O bem ver foi o objetivo central da estética realista; o bem sonhar é fenômeno da estética modernista (século XX) e exige trabalho criativo, busca penetrar na essência do elemento. Mesmo assim, o Artista moderno poderá ultrapassar a crosta da terra e penetrá-la criativamente, mas não ficará restrito a este ato criativo eternamente, pois o Ar é o elemento que o seduz, é o elemento da linguagem da criação. Assim, nesta narrativa, o ficcionista do século XX busca a profundidade do ar, a profundidade das palavras aladas.
“Porque, diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo — Ó colossalidade! — na direção da altura?
E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. (...) E que a gíria pede sempre roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cornetas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito só bi-dimensional, por meio de ensinar-lhe estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia, prosopose, amnemosínia, subliminal. E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo ("Ara, todo o mundo entende...") e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, "que tinha muito mais latim"... E que a frase "Sub lege libertas!", proferida em comício de cidade grande, pode abafar um motim potente, iminente. (...) E que o comando "Abre-te Sésamo etc" fazia com que se escancarasse a porta da gruta-cofre... E que, como ia contando, escrevi no bambu” (“São Marcos”, Sagarana).
O escritor busca a profundidade do ar e das palavras aladas (desconhecidas), ensaia um vocativo absurdo em direção às alturas, reconhece que as palavras têm canto e plumagem; reconhece que a gíria pede sempre roupa nova e escova; que as palavras pouco usadas e desconhecidas, multissignificativas, possuem um poder maior, possuem o poder de reduplicar o real e elevá-lo à instância do cosmodrama.
"Fundaríamos assim uma instância psíquica particular a que poderíamos muito bem chamar a instância do cosmodrama. O ser sonhante trabalharia o mundo, faria exotismo em casa, assumiria uma tarefa de herói nas batalhas da matéria, entraria na luta dos negrumes íntimos, tomaria partido na rivalidade das tinturas. Sairia vencedor no detalhe das imagens, de todo "choque negro" (Bachelard).
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
Não adianta. Longe, no sul. Que será? "Quem será?"... É meu amigo, o poeta. Os bambús. Os reis, os velhos reis assírio-caldaicos, belos barbaças como reis de baralho, que gostavam de vazar os olhos de milhares de vencidos cativos? São meros mansos fantasmas, agora; são meus. Mas, então, qual será a realidade, perigosa, no sul? Não, não é perigosa. É amiga. Outro chamado. Uma ordem. Enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência:
― Guenta o relance, Izé!” (“São Marcos”, Sagarana).
As imagens literárias, agora, saem do mistério da matéria. O Artista abandona temporariamente (observar que, nesta narrativa, ele ainda não assume a total desorientação verbal tão nítida em Grande Sertão: Veredas e nas narrativas seguintes, apesar do aparente fio narrativo que as estruturam) a descrição de belezas já instituídas e passa a agir ativamente sobre a matéria; ele está no momento sob o encantamento da própria energia, e esta não se preocupa com o linear.
No início da narrativa, ele estava propenso a descrever a beleza exterior das formas da floresta e o encantamento exterior das superstições; agora, graças à cegueira e àquela sub-estória intuída, a estória do bambuzal e do poeta desconhecido,
"Foi quase logo que eu cheguei ao Calango-Frito, foi logo que eu me cheguei aos bambús. Os grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:
"Teus olho tão singular
Dessas trancinhas tão preta
Qero morer eim teus braço
Ai fermosa Marieta".
“E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:
Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar,
Salmanassar
Nabonid,
Nabopalassar,
Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib
E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, posto sobre as reais comas eriçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes” (“São Marcos”, Sagarana).
O "novo" ficcionista se propõe a mostrar seus próprios esforços para detectar as belezas escondidas na plenitude da forma.
Submetido aos acontecimentos insólitos, ele indaga o que está por vir, já que perdeu, momentaneamente, o controle do narrado. Os sentidos aguçados o alertam quanto ao Desconhecido. O Sul, aqui, representa o mundo da intuição, espaço de criação, da mesma forma que o Norte em A hora e vez de Augusto Matraga. Os reis assírio-caldaicos, historicamente ferozes, não passam de reis de baralho, porque agora estão submetidos ao poder da criação literária. Enfim, a realidade da criação não é perigosa, pois, após o medo inicial de seu narrador, vem-lhe a certeza de que é ele, o Artista, o senhor de tal mundo; os reis assírio-caldaicos são propriedade dele.
A ordem, enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência: ‘— Guenta o relance, Izé!’, sai do infinito de sua própria vontade de criação: ‘— Guenta o relance, João Guimarães Rosa’. Na ontologia de luta, em que o experiente narrador do sertão põe-se em guarda contra o narrador moderno, a vitória será incontestavelmente do Artista do século XX e seu narrador (de seu momento histórico). Não há como fugir de sua própria realidade estético-histórica.
“Guenta o relance, Izé!
Respiro. Dilato-me. E grito:
— E aguento mesmo!...
Eco não houve, porque a minha clareira tem boa acústica. Mas o tom combativo da minha voz derramou em mim nova coragem. E, imediatamente, abri a tomar ar fundo, movendo as costelas todas, sem pedir licença a ninguém. Vamos ver!” (“São Marcos”, Sagarana).
O narrador abriu a tomar ar fundo, porque não é possível, ficcionalmente e poeticamente, permanecer para sempre ligado à matéria terra, tão estável. Para que haja uma literatura deformante e criadora (atenção: a palavra deformante, aqui, não poderá ser vista como expressão pejorativa) ligada ao elemento terra (a terra real do sertão), o Artista, para escrever, necessitará ter visto muito, precisará somar imaginação, fragmentos do real, lembranças e sentimentos. O bem ver é diferente do bem sonhar. O bem ver foi o objetivo central da estética realista; o bem sonhar é fenômeno da estética modernista (século XX) e exige trabalho criativo, busca penetrar na essência do elemento. Mesmo assim, o Artista moderno poderá ultrapassar a crosta da terra e penetrá-la criativamente, mas não ficará restrito a este ato criativo eternamente, pois o Ar é o elemento que o seduz, é o elemento da linguagem da criação. Assim, nesta narrativa, o ficcionista do século XX busca a profundidade do ar, a profundidade das palavras aladas.
“Porque, diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo — Ó colossalidade! — na direção da altura?
E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. (...) E que a gíria pede sempre roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cornetas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito só bi-dimensional, por meio de ensinar-lhe estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia, prosopose, amnemosínia, subliminal. E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo ("Ara, todo o mundo entende...") e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, "que tinha muito mais latim"... E que a frase "Sub lege libertas!", proferida em comício de cidade grande, pode abafar um motim potente, iminente. (...) E que o comando "Abre-te Sésamo etc" fazia com que se escancarasse a porta da gruta-cofre... E que, como ia contando, escrevi no bambu” (“São Marcos”, Sagarana).
O escritor busca a profundidade do ar e das palavras aladas (desconhecidas), ensaia um vocativo absurdo em direção às alturas, reconhece que as palavras têm canto e plumagem; reconhece que a gíria pede sempre roupa nova e escova; que as palavras pouco usadas e desconhecidas, multissignificativas, possuem um poder maior, possuem o poder de reduplicar o real e elevá-lo à instância do cosmodrama.
"Fundaríamos assim uma instância psíquica particular a que poderíamos muito bem chamar a instância do cosmodrama. O ser sonhante trabalharia o mundo, faria exotismo em casa, assumiria uma tarefa de herói nas batalhas da matéria, entraria na luta dos negrumes íntimos, tomaria partido na rivalidade das tinturas. Sairia vencedor no detalhe das imagens, de todo "choque negro" (Bachelard).
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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