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sexta-feira, 16 de abril de 2010

1.5 – GUIMARÃES ROSA: ENGERIZANDO O MANGOLÔ


1.5 – GUIMARÃES ROSA: ENGERIZANDO O MANGOLÔ

NEUZA MACHADO



Bem, ainda na data do que vai vir, e já eu de chapéu posto, Sa Nhá Rita Preta minha cozinheira, enquanto me costurava um rasgado na manga do paletó ("cozo a roupa e não cozo o corpo, cozo um molambo que está roto..."), recomendou-me que não engerizasse o Mangolô. Bobagem! No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul, glácio, emborcado, só na barra azul do horizonte estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de côco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido — um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a mexer (“São Marcos”, Sagarana).

A claridade da manhã impede o acesso visual às coisas secretas; o Artista Literário experiente ainda não possui poder para alcançar o além dos limites conceituais; necessita perder a visão, ouvir o inaudível; carece ser castigado com a cegueira, e o Calango-Frito (povoado sertanejo), com seus feiticeiros, simboliza um dos últimos redutos de magia no avançado mundo tecnológico. O Artista se traveste de caçador e incrédulo, para desafiar as leis do desconhecido; traveste-se de caçador, porque não quer dividir com o povo (com a massa, com os cegos adeptos do cogito(1)) suas futuras descobertas.

“Eu levava boa matalotagem na capanga, e também o binóculo. Somente o trambolho da espingarda pesava e empalhava. Mas cumpria com a lista, porque eu não podia deixar o povo saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí a medrar da terra de-dentro de um buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos guaxes, pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar sozinho no concurso de salto-a-vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhões cinzentos; para estudar o treino de concentração do jaburu acromegálico; e para rir-me, à glória das aranhas-d'água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima” (“São Marcos”, Sagarana).

A ultrapassagem do sensivelmente dado o guiará para um plano de autêntica solidão. No momento, o caminhante só visualiza uma saída: a adesão aos valores do Maravilhoso, ou seja, a submissão ao castigo do Mangolô, que o tornará momentaneamente cego. Para ficar sozinho no meio do mato (da gruta), é necessário abster-se da luz, o que proporcionará o ato de ouvir com atenção o rumor inicial da criação literária. A gruta selvagem é o reduto da pura intuição. O Artista Literário começa a intuir suas futuras formas de criação ficcional. A intuição provém de um Mundo ainda não-conceituado. E o xará do joão-de-barro, em sua caminhada para os cogitos superiores, procura zombar de João Mangolô, partícula das mil faces do Artista brasileiro: um somatório de raças, de crenças e de idades temporais.

“Hora de missa, não havia pessoa esperando audiência, e João Mangolô, que estava à porta, como de sempre sorriu para mim. Preto, pixaim alto, branco-amarelado; banguela; horrendo.

― Ó Mangolô!

— Senh'us'Cristo, Sinhô!

― Pensei que você era uma cabiúna de queimada...

— Isso é graça de Sinhô...

— ... com um balaio de rama de mocó, por cima! ...

— Ixe!

— Você deve conhecer o mandamento do negro ... Não sabe? "Primeiro: todo negro é cachaceiro..."

— Ôi, ôi!...

— "Segundo: todo negro é vagabundo".

— Virgem!

— "Terceiro: todo negro é feiticeiro..."

Aí, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à carranca de ódio, resmungou, se encolheu para dentro, como um caramujo à cocléia, e ainda bateu com a porta.

— Ó Mangolô: "negro na festa, pau na testa!...” (“São Marcos”, Sagarana)


MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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