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sexta-feira, 23 de abril de 2010

1.12 – GUIMARÃES ROSA: A CEGUEIRA PROVIDENCIAL


1.12 – GUIMARÃES ROSA: A CEGUEIRA PROVIDENCIAL

NEUZA MACHADO



Em "São Marcos", no primeiro segmento da narrativa, o narrador reduplica o real, recopia-o, descreve as belezas exteriores desse real, coloca-se como herói e mártir de uma estória linear repleta de feiticeiros e magias. Mas, há um momento (idealizado por ele mesmo) de entrada na luta dos negrumes íntimos, no qual passa a tomar partido na rivalidade das tinturas. O reflexo exterior da matéria, ou seja, o simples colorido, começa a perder o encantamento que o seduzia até então. A cegueira providencial é a gota de tintura (temporária, diga-se de passagem, porque o Criador recuperará o fio sintagmático de sua estória) que o fará visualizar um certo princípio de densidade e dinamismo, qualidades da imaginação material dinâmica, as quais serão alcançadas a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga.

A cegueira providencial pré-anuncia as imagens dinâmicas da tintura; a cegueira do personagem-narrador revela as verdades das profundezas. A água e o ar são matérias frágeis, substâncias fracas e passivas que necessitam de um elemento alquímico/criativo que as elevem ao plano das emoções profundas. Assim, este "novo" ficcionista busca a profundidade do ar, abre a tomar ar fundo, movendo as costelas todas, sem pedir licença a ninguém; consequentemente, sua agitação íntima se fortalece ao entrar em contato com a pancada preta, que o torna cego por um longo tempo.

O Artista ouve (ou observa?) a escuridão secreta da gruta, pois está momentaneamente perturbado pelas suas descobertas de criador literário, ou seja, descobriu o poder de um mundo negro e sem forma, aquilo que os teóricos da literatura chamam de vazio criador. Para Bachelard, o choque negro "desperta emoções profundas”. De ora em diante, ele passará a comentar seus sonhos, procurará se interiorizar cada vez mais no cerne da matéria que o inspira.

O Criador Literário do século XX recebeu o apelo das trevas; ouviu a natureza, até então apenas visualizada; descobriu que "era possível distinguir o guincho do paturi do coincho do ariri, e até dissociar as corridas das preás dos pulos das cotias” (“São Marcos”, Sagarana); conseguiu ouvir o mundo desconhecido de um sertão também desconhecido.

“Jamais tivera eu notícia de tanto silvo e chilro, e o mato cochichava, cheio de palavras polacas e de mil bichinhos tocando viola no oco do pau” (“São Marcos”, Sagarana).

Mas, sobretudo, sentiu a ameaça do por vir, ou seja, percebeu que as futuras narrativas teriam de adotar este plano desconhecido de pura treva, e os personagens teriam (também eles) de assumir uma postura de desconhecimento do final narrativo, tomando as rédeas da própria materialização sem a onisciência do narrador.

Entretanto, por ora, graças aos elementos mágicos lineares, recupera-se diegeticamente;

“Mas, estremeço, praguejo, me horrorizo. O alhúm. O odor maciço, doce-ardido, do pau-d'alho! Reconheço o tronco. Deve haver uma aroeira nova, aqui ao lado. Está. Acerto com as folhas: esmagadas nos dedos, cheiram a manga. É ela, a aroeira. Sei desta aberta fria: tem sido o ponto extremo das minhas tentativas de penetração; além daqui, nunca me aventurei nos passeios de mato a dentro” (“São Marcos”, Sagarana).

recusa o insólito vislumbrado através da intuição;

“Então, e por caminhos tantas vezes trilhados, o instinto soube guiar-me apenas na direção do pior — para os fundões da mata, cheia de paludes de águas tapadas e de alçapões do barro comedor de pesos?!..." ("São Marcos", Sagarana)

reza a oração brava de São Marcos; enfrenta o ódio do Mangolô, surrando-o; recupera-se ao nível das coisas instituídas, recobrando a vista e deixando-se subjugar pela visão colorida de um mundo colorido e linear; intenso, exterior e mítico.

“Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul” (“São Marcos”, Sagarana).

No final da narrativa, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul que iriam adquirir qualidades inusitadas, de acordo com as futuras fases criativas do Artista transmutativo.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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