“(...) Uma teoria do conhecimento do real que se desinteressa dos valores oníricos se priva de alguns interesses que impelem ao conhecimento” (Gaston Bachelard).
Bachelard refere-se ao método da filosofia contemporânea que rejeita a ciência da matéria. Critica a adoção de um único método em detrimento dos outros; fala da importância de se estar aberto a outros tipos de experiência; lamenta que espíritos lúcidos neguem "os múltiplos vislumbres formados em zonas psíquicas mais tenebrosas”; enfim, demonstra a validade de se ocupar com os valores oníricos, pouco dialetizados pelos filósofos atuais.
Os teóricos literários (Teoria Literária ≠ Teoria da Literatura) compreendem a importância das outras ciências para o desvelamento do texto literário. Eduardo Portela, no seu livro Teoria Literária observa que a teoria da literatura, apesar de se posicionar como disciplina autônoma, necessita do apoio de disciplinas como a sociologia, antropologia, história, psicologia e outras. A colaboração evidentemente é indispensável, mas somente o texto indicará os métodos a serem utilizados.
Os textos de Guimarães Rosa por exemplo impulsionam a uma abordagem filosófica. Ele foi leitor de grandes filósofos, e isto se evidencia em sua obra. Em sua ENTREVISTA a Günter Lorenz fala de seu convívio com a filosofia e de sua admiração por Unamuno; enfim, não descarta a possibilidade de se posicionar como filósofo do sertão.
Ao atingir a segunda fase de sua trajetória literária, Guimarães Rosa penetra na intimidade de sua matéria ficcional. Por isto, o retorno de Nhô Augusto ao arraial do Murici é um poema de amor ao sertão. Submetido ao seu papel de ficcionista, o narrador observa as minúcias da caminhada, por intermédio da perspectiva dialetizada já quase maravilhada, com os olhos do coração. Impregnado de matéria lírica interagindo com a matéria de narrativa em prosa, recorda pequeninas belezas de sua terra natal (florezinhas, abelhas trabalhadoras, miúdas árvores, minúsculas formigas); apresenta ao leitor a sua intimidade com o sertão; realça seus próprios sonhos de infância.
Bachelard é um conhecedor de palavras sonhadas:
“Assinalamos que todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema. Como indica claramente Francis Ponge, ao trabalhar oniricamente no interior das coisas nos dirigimos à raiz sonhadora das palavras” (Bachelard).
O objetivo de Bachelard, ao desenvolver suas considerações filosóficas sobre a água e os sonhos, foi "tentar mostrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens que se ocultam", ou seja, "ir à própria raiz da força imaginante”. Para o filósofo, a raiz da força imaginante só se exterioriza por intermédio da imaginação que dá vida à causa material, das imagens que se ocultam.
A imaginação que dá vida à causa formal, ao contrário, se exterioriza a partir das imagens que se mostram, em outras palavras, mediante um discurso objetivo, metonímico, significador, intelectualmente falando, dos aspectos palpáveis da natureza, mesmo os aspectos internos.
No primeiro capítulo de A Terra e os Devaneios do Repouso, Bachelard cita Hans Carossa: "O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra”. Com base nesta citação, passa a desenvolver suas idéias sobre os devaneios da intimidade material. Assim ressalta que, orientado por esta vontade, a visão do homem torna-se aguçada, penetrante, detectando a passagem para a descoberta do que se oculta nas coisas. Para ele, esta vontade não propicia ver realmente; apenas permite formar estranhos devaneios tensos.
Guimarães Rosa, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, procurou olhar o sertão de sua infância com os olhos da recordação (matéria lírica interagindo com a matéria ficcional), ressaltando os aspectos ocultos do lugar, resgatando o além do vivenciado com a ajuda dos devaneios poéticos aliados à ficção.
Evidentemente, nesta primeira fase ficcional, não se aprofunda nos devaneios da intimidade material, porque se encontra submetido aos dogmas das experiências comunitárias, norteadoras de seu aprendizado sertanejo. Mesmo assim, começou, servindo-se de uma linguagem primitiva, a remexer uma camada singela da terra sertaneja, revelando-a, detectando pequenos detalhes, que geralmente passam despercebidos a um olhar casual. Nesse estágio, faz um burrinho velho entrar triunfalmente no mundo da reprodução ficcional. É o início da re-descoberta e do envolvimento sentimental com um espaço, visto muitas vezes no passado, voltando à cena por intermédio de fragmentos da memória, das lembranças do que foi bem visto, e que será posteriormente bem sonhado.
Contando a estória do burrinho, revela o poder encantatório das palavras, desfiando os nomes pelos quais são conhecidas as diversas raças de bois no sertão. Reproduz, assim, a criatividade do homem sertanejo, a sua riqueza vocabular, ultrapassando os limites da língua socialmente imposta. Este início (Sagarana) é realmente um detectar superficial do sertão, mas posteriormente ele obriga o leitor a repensar o princípio do ato de ver, pelo prisma da perspectiva dialética, o que levará à visão em profundidade das fases seguintes.
O desejo de uma futura transposição da crosta do sertão inicia-se a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Daí em diante, o Artista passa a revolver a terra sertaneja (incluindo Grande Sertão: Veredas), posteriormente penetra-a de maneira mais íntima, sob o predomínio do elemento ar, nas narrativas da coletânea Primeiras Estórias, para apresentar na última fase um espaço ilimitado, submetido a um discurso insólito e emaranhado.
A partir da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, dialetiza o sertão, transforma-o em objeto, coloca-se em seu interior por meio do devaneio possessivo. Em Grande Sertão: Veredas, apodera-se de sua matéria ficcional, ainda dialetizando-a, mas também engrandecendo-a e, na fase final, transforma e recria a própria criação, sob os incitamentos da imaginação material dinâmica, sem limites visíveis.
A Hora e Vez de Augusto Matraga exemplifica o primeiro momento de passagem para o segundo cogito, notadamente dialético: o pequeno sertão da infância começa seu processo de grandeza para o âmbito da universalidade. Nessa fase, o Artista miniaturiza o sertão, para penetrar nele, questioná-lo, transformá-lo. O fato de miniaturizá-lo não o diminui. Bachelard, citando Max Jacob, ressalta: "O minúsculo é enorme, basta ir em imaginação habitá-lo”.
Para que houvesse essa passagem, fez seu narrador romper com a perspectiva anulada das narrativas iniciais de Sagarana, que ressaltava apenas os aspectos exteriores do sertão e tolhia "toda a curiosidade voltada para o interior das coisas” (Bachelard). Depois da cisão, passa a desenvolver pensamentos questionadores e a satisfazer sua profunda curiosidade em relação às minúcias ocultas de um lugar até então, socialmente, pouco admirado. O Artista sonha (recria), a partir desta mudança, o sertão regional de sua infância, procurando descobrir o processo que o transformará num espaço diferente, visto ainda pelo ângulo da perspectiva dialética associada à perspectiva maravilhada (Grande Sertão: Veredas) e, posteriormente, recria um novo espaço, captado pelo ângulo da perspectiva de intensidade substancial infinita (Bachelard), espaço este encontrado em todas as narrativas sonhadas a partir de Primeiras Estórias, livro cujo título impõe a pensar e repensar a questão.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
Bachelard refere-se ao método da filosofia contemporânea que rejeita a ciência da matéria. Critica a adoção de um único método em detrimento dos outros; fala da importância de se estar aberto a outros tipos de experiência; lamenta que espíritos lúcidos neguem "os múltiplos vislumbres formados em zonas psíquicas mais tenebrosas”; enfim, demonstra a validade de se ocupar com os valores oníricos, pouco dialetizados pelos filósofos atuais.
Os teóricos literários (Teoria Literária ≠ Teoria da Literatura) compreendem a importância das outras ciências para o desvelamento do texto literário. Eduardo Portela, no seu livro Teoria Literária observa que a teoria da literatura, apesar de se posicionar como disciplina autônoma, necessita do apoio de disciplinas como a sociologia, antropologia, história, psicologia e outras. A colaboração evidentemente é indispensável, mas somente o texto indicará os métodos a serem utilizados.
Os textos de Guimarães Rosa por exemplo impulsionam a uma abordagem filosófica. Ele foi leitor de grandes filósofos, e isto se evidencia em sua obra. Em sua ENTREVISTA a Günter Lorenz fala de seu convívio com a filosofia e de sua admiração por Unamuno; enfim, não descarta a possibilidade de se posicionar como filósofo do sertão.
Ao atingir a segunda fase de sua trajetória literária, Guimarães Rosa penetra na intimidade de sua matéria ficcional. Por isto, o retorno de Nhô Augusto ao arraial do Murici é um poema de amor ao sertão. Submetido ao seu papel de ficcionista, o narrador observa as minúcias da caminhada, por intermédio da perspectiva dialetizada já quase maravilhada, com os olhos do coração. Impregnado de matéria lírica interagindo com a matéria de narrativa em prosa, recorda pequeninas belezas de sua terra natal (florezinhas, abelhas trabalhadoras, miúdas árvores, minúsculas formigas); apresenta ao leitor a sua intimidade com o sertão; realça seus próprios sonhos de infância.
Bachelard é um conhecedor de palavras sonhadas:
“Assinalamos que todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema. Como indica claramente Francis Ponge, ao trabalhar oniricamente no interior das coisas nos dirigimos à raiz sonhadora das palavras” (Bachelard).
O objetivo de Bachelard, ao desenvolver suas considerações filosóficas sobre a água e os sonhos, foi "tentar mostrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens que se ocultam", ou seja, "ir à própria raiz da força imaginante”. Para o filósofo, a raiz da força imaginante só se exterioriza por intermédio da imaginação que dá vida à causa material, das imagens que se ocultam.
A imaginação que dá vida à causa formal, ao contrário, se exterioriza a partir das imagens que se mostram, em outras palavras, mediante um discurso objetivo, metonímico, significador, intelectualmente falando, dos aspectos palpáveis da natureza, mesmo os aspectos internos.
No primeiro capítulo de A Terra e os Devaneios do Repouso, Bachelard cita Hans Carossa: "O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra”. Com base nesta citação, passa a desenvolver suas idéias sobre os devaneios da intimidade material. Assim ressalta que, orientado por esta vontade, a visão do homem torna-se aguçada, penetrante, detectando a passagem para a descoberta do que se oculta nas coisas. Para ele, esta vontade não propicia ver realmente; apenas permite formar estranhos devaneios tensos.
Guimarães Rosa, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, procurou olhar o sertão de sua infância com os olhos da recordação (matéria lírica interagindo com a matéria ficcional), ressaltando os aspectos ocultos do lugar, resgatando o além do vivenciado com a ajuda dos devaneios poéticos aliados à ficção.
Evidentemente, nesta primeira fase ficcional, não se aprofunda nos devaneios da intimidade material, porque se encontra submetido aos dogmas das experiências comunitárias, norteadoras de seu aprendizado sertanejo. Mesmo assim, começou, servindo-se de uma linguagem primitiva, a remexer uma camada singela da terra sertaneja, revelando-a, detectando pequenos detalhes, que geralmente passam despercebidos a um olhar casual. Nesse estágio, faz um burrinho velho entrar triunfalmente no mundo da reprodução ficcional. É o início da re-descoberta e do envolvimento sentimental com um espaço, visto muitas vezes no passado, voltando à cena por intermédio de fragmentos da memória, das lembranças do que foi bem visto, e que será posteriormente bem sonhado.
Contando a estória do burrinho, revela o poder encantatório das palavras, desfiando os nomes pelos quais são conhecidas as diversas raças de bois no sertão. Reproduz, assim, a criatividade do homem sertanejo, a sua riqueza vocabular, ultrapassando os limites da língua socialmente imposta. Este início (Sagarana) é realmente um detectar superficial do sertão, mas posteriormente ele obriga o leitor a repensar o princípio do ato de ver, pelo prisma da perspectiva dialética, o que levará à visão em profundidade das fases seguintes.
O desejo de uma futura transposição da crosta do sertão inicia-se a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Daí em diante, o Artista passa a revolver a terra sertaneja (incluindo Grande Sertão: Veredas), posteriormente penetra-a de maneira mais íntima, sob o predomínio do elemento ar, nas narrativas da coletânea Primeiras Estórias, para apresentar na última fase um espaço ilimitado, submetido a um discurso insólito e emaranhado.
A partir da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, dialetiza o sertão, transforma-o em objeto, coloca-se em seu interior por meio do devaneio possessivo. Em Grande Sertão: Veredas, apodera-se de sua matéria ficcional, ainda dialetizando-a, mas também engrandecendo-a e, na fase final, transforma e recria a própria criação, sob os incitamentos da imaginação material dinâmica, sem limites visíveis.
A Hora e Vez de Augusto Matraga exemplifica o primeiro momento de passagem para o segundo cogito, notadamente dialético: o pequeno sertão da infância começa seu processo de grandeza para o âmbito da universalidade. Nessa fase, o Artista miniaturiza o sertão, para penetrar nele, questioná-lo, transformá-lo. O fato de miniaturizá-lo não o diminui. Bachelard, citando Max Jacob, ressalta: "O minúsculo é enorme, basta ir em imaginação habitá-lo”.
Para que houvesse essa passagem, fez seu narrador romper com a perspectiva anulada das narrativas iniciais de Sagarana, que ressaltava apenas os aspectos exteriores do sertão e tolhia "toda a curiosidade voltada para o interior das coisas” (Bachelard). Depois da cisão, passa a desenvolver pensamentos questionadores e a satisfazer sua profunda curiosidade em relação às minúcias ocultas de um lugar até então, socialmente, pouco admirado. O Artista sonha (recria), a partir desta mudança, o sertão regional de sua infância, procurando descobrir o processo que o transformará num espaço diferente, visto ainda pelo ângulo da perspectiva dialética associada à perspectiva maravilhada (Grande Sertão: Veredas) e, posteriormente, recria um novo espaço, captado pelo ângulo da perspectiva de intensidade substancial infinita (Bachelard), espaço este encontrado em todas as narrativas sonhadas a partir de Primeiras Estórias, livro cujo título impõe a pensar e repensar a questão.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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