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sábado, 24 de abril de 2010

2.1 – GUIMARÃES ROSA: UMA PERSPECTIVA DIALÉTICA


2.1 – GUIMARÃES ROSA: UMA PERSPECTIVA DIALÉTICA

NEUZA MACHADO



“(...) Uma teoria do conhecimento do real que se desinteressa dos valores oníricos se priva de alguns interesses que impelem ao conhecimento” (Gaston Bachelard).

Bachelard refere-se ao método da filosofia contemporânea que rejeita a ciência da matéria. Critica a adoção de um único método em detrimento dos outros; fala da importância de se estar aberto a outros tipos de experiência; lamenta que espíritos lúcidos neguem "os múltiplos vislumbres formados em zonas psíquicas mais tenebrosas”; enfim, demonstra a validade de se ocupar com os valores oníricos, pouco dialetizados pelos filósofos atuais.

Os teóricos literários (Teoria Literária ≠ Teoria da Literatura) compreendem a importância das outras ciências para o desvelamento do texto literário. Eduardo Portela, no seu livro Teoria Literária observa que a teoria da literatura, apesar de se posicionar como disciplina autônoma, necessita do apoio de disciplinas como a sociologia, antropologia, história, psicologia e outras. A colaboração evidentemente é indispensável, mas somente o texto indicará os métodos a serem utilizados.

Os textos de Guimarães Rosa por exemplo impulsionam a uma abordagem filosófica. Ele foi leitor de grandes filósofos, e isto se evidencia em sua obra. Em sua ENTREVISTA a Günter Lorenz fala de seu convívio com a filosofia e de sua admiração por Unamuno; enfim, não descarta a possibilidade de se posicionar como filósofo do sertão.

Ao atingir a segunda fase de sua trajetória literária, Guimarães Rosa penetra na intimidade de sua matéria ficcional. Por isto, o retorno de Nhô Augusto ao arraial do Murici é um poema de amor ao sertão. Submetido ao seu papel de ficcionista, o narrador observa as minúcias da caminhada, por intermédio da perspectiva dialetizada já quase maravilhada, com os olhos do coração. Impregnado de matéria lírica interagindo com a matéria de narrativa em prosa, recorda pequeninas belezas de sua terra natal (florezinhas, abelhas trabalhadoras, miúdas árvores, minúsculas formigas); apresenta ao leitor a sua intimidade com o sertão; realça seus próprios sonhos de infância.

Bachelard é um conhecedor de palavras sonhadas:

“Assinalamos que todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema. Como indica claramente Francis Ponge, ao trabalhar oniricamente no interior das coisas nos dirigimos à raiz sonhadora das palavras” (Bachelard).

O objetivo de Bachelard, ao desenvolver suas considerações filosóficas sobre a água e os sonhos, foi "tentar mostrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens que se ocultam", ou seja, "ir à própria raiz da força imaginante”. Para o filósofo, a raiz da força imaginante só se exterioriza por intermédio da imaginação que dá vida à causa material, das imagens que se ocultam.

A imaginação que dá vida à causa formal, ao contrário, se exterioriza a partir das imagens que se mostram, em outras palavras, mediante um discurso objetivo, metonímico, significador, intelectualmente falando, dos aspectos palpáveis da natureza, mesmo os aspectos internos.

No primeiro capítulo de A Terra e os Devaneios do Repouso, Bachelard cita Hans Carossa: "O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra”. Com base nesta citação, passa a desenvolver suas idéias sobre os devaneios da intimidade material. Assim ressalta que, orientado por esta vontade, a visão do homem torna-se aguçada, penetrante, detectando a passagem para a descoberta do que se oculta nas coisas. Para ele, esta vontade não propicia ver realmente; apenas permite formar estranhos devaneios tensos.

Guimarães Rosa, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, procurou olhar o sertão de sua infância com os olhos da recordação (matéria lírica interagindo com a matéria ficcional), ressaltando os aspectos ocultos do lugar, resgatando o além do vivenciado com a ajuda dos devaneios poéticos aliados à ficção.

Evidentemente, nesta primeira fase ficcional, não se aprofunda nos devaneios da intimidade material, porque se encontra submetido aos dogmas das experiências comunitárias, norteadoras de seu aprendizado sertanejo. Mesmo assim, começou, servindo-se de uma linguagem primitiva, a remexer uma camada singela da terra sertaneja, revelando-a, detectando pequenos detalhes, que geralmente passam despercebidos a um olhar casual. Nesse estágio, faz um burrinho velho entrar triunfalmente no mundo da reprodução ficcional. É o início da re-descoberta e do envolvimento sentimental com um espaço, visto muitas vezes no passado, voltando à cena por intermédio de fragmentos da memória, das lembranças do que foi bem visto, e que será posteriormente bem sonhado.

Contando a estória do burrinho, revela o poder encantatório das palavras, desfiando os nomes pelos quais são conhecidas as diversas raças de bois no sertão. Reproduz, assim, a criatividade do homem sertanejo, a sua riqueza vocabular, ultrapassando os limites da língua socialmente imposta. Este início (Sagarana) é realmente um detectar superficial do sertão, mas posteriormente ele obriga o leitor a repensar o princípio do ato de ver, pelo prisma da perspectiva dialética, o que levará à visão em profundidade das fases seguintes.

O desejo de uma futura transposição da crosta do sertão inicia-se a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Daí em diante, o Artista passa a revolver a terra sertaneja (incluindo Grande Sertão: Veredas), posteriormente penetra-a de maneira mais íntima, sob o predomínio do elemento ar, nas narrativas da coletânea Primeiras Estórias, para apresentar na última fase um espaço ilimitado, submetido a um discurso insólito e emaranhado.

A partir da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, dialetiza o sertão, transforma-o em objeto, coloca-se em seu interior por meio do devaneio possessivo. Em Grande Sertão: Veredas, apodera-se de sua matéria ficcional, ainda dialetizando-a, mas também engrandecendo-a e, na fase final, transforma e recria a própria criação, sob os incitamentos da imaginação material dinâmica, sem limites visíveis.

A Hora e Vez de Augusto Matraga exemplifica o primeiro momento de passagem para o segundo cogito, notadamente dialético: o pequeno sertão da infância começa seu processo de grandeza para o âmbito da universalidade. Nessa fase, o Artista miniaturiza o sertão, para penetrar nele, questioná-lo, transformá-lo. O fato de miniaturizá-lo não o diminui. Bachelard, citando Max Jacob, ressalta: "O minúsculo é enorme, basta ir em imaginação habitá-lo”.

Para que houvesse essa passagem, fez seu narrador romper com a perspectiva anulada das narrativas iniciais de Sagarana, que ressaltava apenas os aspectos exteriores do sertão e tolhia "toda a curiosidade voltada para o interior das coisas” (Bachelard). Depois da cisão, passa a desenvolver pensamentos questionadores e a satisfazer sua profunda curiosidade em relação às minúcias ocultas de um lugar até então, socialmente, pouco admirado. O Artista sonha (recria), a partir desta mudança, o sertão regional de sua infância, procurando descobrir o processo que o transformará num espaço diferente, visto ainda pelo ângulo da perspectiva dialética associada à perspectiva maravilhada (Grande Sertão: Veredas) e, posteriormente, recria um novo espaço, captado pelo ângulo da perspectiva de intensidade substancial infinita (Bachelard), espaço este encontrado em todas as narrativas sonhadas a partir de Primeiras Estórias, livro cujo título impõe a pensar e repensar a questão.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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