O ato de descrever a natureza realmente sustenta o impacto do castigo; a morosidade do tempo também contribui para o realce do futuro acontecimento.
“Corre o tempo.
A lagoa está toda florida e nevada de penugens usadas que os patos põem fora. E lá está o joão-grande, contemplativo, no modo em que eu aqui estou, sob a minha corticeira de flores de crista-de-galo e coral. Só que eu acendo outro cigarro, por causa dos mil mosquitos, que são corjas de demônios mirins.
Do mais do povinho miúdo, por enquanto, apenas o eterno cortejo de saúvas, que vão sob as folhas secas, levando bandeiras de pedacinhos de folhas verdes, e já resolveram todos os problemas do trânsito. (...) Como será o deus das formigas? Suponho-o terrível. Terrível como os que o louvam... E isso é também com o louva-a-deus (...). E assim também o tempo foi indo — nada de novo no rabo da lagoa, e aqui em terra firme muito menos — e chegou um momento sonolento, em que me encostei para dormir. Fiquei meio deitado de lado. Passou ainda uma borboleta de páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas se sumiu, logo, na orla das turumãs e os sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava, movendo mesmo aqui em baixo as carapinhas dos capins e as mãos de sombra. E o mulungu rei derribava flores suas na relva, como se atiram fichas ao feltro numa mesa de jogo” (“São Marcos”, Sagarana).
O Artista Ficcional (Ficção-Arte) do século XX prepara o impacto de uma nova descoberta narrativa: seu narrador ouvirá os rumores da natureza ao invés de descrevê-la. O bosquete fechado (a gruta, o útero, o espaço primitivo) resguarda os sons profundos que nascem da imaginação transmutadora. Agora, o narrador ouvirá e alcançará aquilo que os olhos não visualizam, uma vez que o ouvido só alcança o rumor do silêncio se o sensitivo estiver envolto em profunda escuridão. O narrador está prestes a receber as mensagens do silêncio:
“E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau — um ponto, um grão, um besouro, um anú, um urubú, um golpe de noite... E escureceu tudo” (“São Marcos”, Sagarana).
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
“Corre o tempo.
A lagoa está toda florida e nevada de penugens usadas que os patos põem fora. E lá está o joão-grande, contemplativo, no modo em que eu aqui estou, sob a minha corticeira de flores de crista-de-galo e coral. Só que eu acendo outro cigarro, por causa dos mil mosquitos, que são corjas de demônios mirins.
Do mais do povinho miúdo, por enquanto, apenas o eterno cortejo de saúvas, que vão sob as folhas secas, levando bandeiras de pedacinhos de folhas verdes, e já resolveram todos os problemas do trânsito. (...) Como será o deus das formigas? Suponho-o terrível. Terrível como os que o louvam... E isso é também com o louva-a-deus (...). E assim também o tempo foi indo — nada de novo no rabo da lagoa, e aqui em terra firme muito menos — e chegou um momento sonolento, em que me encostei para dormir. Fiquei meio deitado de lado. Passou ainda uma borboleta de páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas se sumiu, logo, na orla das turumãs e os sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava, movendo mesmo aqui em baixo as carapinhas dos capins e as mãos de sombra. E o mulungu rei derribava flores suas na relva, como se atiram fichas ao feltro numa mesa de jogo” (“São Marcos”, Sagarana).
O Artista Ficcional (Ficção-Arte) do século XX prepara o impacto de uma nova descoberta narrativa: seu narrador ouvirá os rumores da natureza ao invés de descrevê-la. O bosquete fechado (a gruta, o útero, o espaço primitivo) resguarda os sons profundos que nascem da imaginação transmutadora. Agora, o narrador ouvirá e alcançará aquilo que os olhos não visualizam, uma vez que o ouvido só alcança o rumor do silêncio se o sensitivo estiver envolto em profunda escuridão. O narrador está prestes a receber as mensagens do silêncio:
“E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau — um ponto, um grão, um besouro, um anú, um urubú, um golpe de noite... E escureceu tudo” (“São Marcos”, Sagarana).
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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