1.3 – GUIMARÃES ROSA: REGISTRANDO A INTIMIDADE DO SERTÃO
NEUZA MACHADO
“Bastam uns poucos minutos de permanência para que a imaginação comece a ajeitar a casa. (...) (O sonhador vê tudo) o recanto para o leito de samambaias, a guirlanda das lianas e das flores que decora e esconde a janela contra o céu azul. Essa função de cortina natural aparece com regularidade em muitas grutas literárias” (Bachelard)
O sonhador/narrador da narrativa "São Marcos" vê tudo: a mata e suas árvores, as ramas de epidendros e seus contornos poéticos, as imbaúbas jovens, tão femininas, tão verdes, tão moças cor de madrugada, encantadas; mas, é "pelas frinchas" (janelas?), "entre festões e franças" (cortinas?), que o narrador descortina, "lá em baixo, as águas das Três Águas".
Quando o Artista se deixa flagrar olhando a gruta, ele está contemplando o sertão de suas origens através da imagem da janela, que propicia "ver sem ser visto” (Bachelard). O que ele deseja é registrar sua curiosidade, seu desejo de conhecer o segredo da procriação. O sertão é momentaneamente o espaço do recato, e a floresta é a virgem que ali se refugia. O narrador, alter ego do Artista citadino do século XX, mas de procedência sertaneja, é o invasor, que vai macular aquele espaço de pureza. Ele registra despudoradamente esta intimidade, há séculos guardada a sete chaves. Pelas frinchas, entre festões e franças, ele se apodera da intimidade de uma família de buritis: buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras e buritis-meninos.
Por esta perspectiva anulada (o termo perspectiva anulada, aqui, não possui caráter depreciativo), mas extremamente pitoresca e sedutora, seria possível analisar todas as narrativas de Sagarana, anteriores a A Hora e Vez de Augusto Matraga. A partir de “O burrinho pedrês”, "A volta do marido pródigo", "Sarapalha" (em que o narrador experiente reproduz os sintomas da malária), "Duelo" (a estória de Turíbio Todo, seleiro, papudo, traído e vingativo, mas, além de tudo, vítima da própria vingança), "Minha gente" (retorno simbólico à terra natal), "Corpo fechado" (a estória das façanhas de Manuel Fulô, com certeza muito amigo do Doutor João Rosa, natural de Cordisburgo, pequena cidade incrustada nas Gerais, sertão de Minas) e "Conversa de bois" (graciosa fábula sertaneja), haveria possibilidade de reunir e apresentar argumentos comprovadores, tais como realçar a reunião de árvores e animais, flores coloridas, conhecimentos variados; todas estas focalizações da perspectiva assinalada ansiando ultrapassar os limites do sensivelmente dado, como por exemplo a "finlândia de lagoazinhas sem tampa" (que lembra o espaço geográfico da Finlândia) e os "festões" (que lembram a França, em plena mata), e, enfim, seria possível provar, com o apoio da filosofia bachelardiana evidentemente, que a samambaia cresce em todos os cantos do mundo, e que as reminiscências da Europa permanecem vivas em um povo terceiromundista ainda ligado à metrópole européia que o concebeu.
Neste trecho de minhas induções teórico-reflexivas, será lícito repensar a afirmativa de Rosa:
“Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele...” (Guimarães Rosa, ENTREVISTA ao crítico alemão Günter Lorenz)
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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