16.4 – SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO – PENSAMENTOS DE PURA ESTÉTICA
NEUZA MACHADO
As criaturas do sertão roseano das fases iniciais já estão temporalmente distantes na fase final, porque já não pertencem ao juízo valorizado do escritor; entraram no plano dos juízos de descoberta, singulares, plano este no qual o criador apenas “risca o fósforo de um pensamento para perceber que é só em certas horas de incertos dias que se tem tino para tirar das coisas corriqueiras um juízo novíssimo” (Guimarães Rosa, “A simples e exata estória do burrinho do Comandante”, Estas Estórias).
No plano do transcurso das coisas é impossível descobrir juízos novíssimos. Os juízos de descoberta surgem depois do repouso fervilhante, no âmbito do descontínuo temporal, próximo das inconsequências quânticas.
“Se queremos que o pensamento de pura estética se constitua, será necessário transcender, pelas formas, através do apelo às formas, a dialética temporal. Se mantivéssemos ligação com a vida e com o pensamento corriqueiros, a atividade de estética pura seria puramente ocasional. Ela não teria coerência, não teria "duração". Para durar na terceira potência do cogito, é preciso pois procurar razões para restituir as formas vislumbradas. Não se poderá chegar até lá sem aprender a formalizar atitudes psicológicas bastante diversas” (Bachelard).
Procuro mostrar aqui, de acordo com a orientação bachelardiana, que o Artista Ficcional Guimarães Rosa, nato de uma região sertaneja de Minas Gerais, alcançou na fase final de sua trajetória ficcional pensamentos de transcendência formal. O Artista transcendeu seus limites pelas formas, através do apelo às formas; transcendeu seus limites ficcionais, utilizando-se da dialética temporal.
Mas, é preciso que se realce aqui as contribuições dos elementos vitais, que sem dúvida propiciaram, no âmbito literário, a força revigoradora que estimulou tal transcendência. O fogo transformador, verticalizante (Grande Sertão: Veredas), foi o elemento que proporcionou inicialmente esta elevação espiritual. O elemento ar, elemento tão frágil, segundo Bachelard, recebeu o impulso do fogo e abrigou os pensamentos do Artista em sua última fase. O pensamento da pura estética obteve assim o patrocínio do ar. O pensamento da pura estética necessitou das imagens aéreas dinâmicas para demonstrar os vigorosos movimentos da imaginação criadora. Os incidentes do burrinho do Comandante foram produzidos na viagem aérea do escritor, assim como os incidentes daquele senhor, temporariamente impoluto, da narrativa "Darandina" e os incidentes de todos os personagens dos contos de Primeiras Estórias, Estas Estórias e Tutaméia.
Os pensamentos da pura estética se constituíram, porque o escritor transcendeu-se e transcendeu seus escritos. O escritor vivenciou uma maneira rara de ascensão, ou seja, fez uma incursão aéreo/literária ao plano concreto da forma ficcional. É esta incursão insólita que denominamos aqui como “ascensão ao concreto”. O escritor transcendeu pela forma, através do apelo às formas literárias: a forma como as palavras foram usadas; ele dialetizou aquele espaço neutro que se localiza entre o antes e o depois, entre o tudo e o nada, entre o real e o irreal. Ele recusou uma ligação ativa com as imposições da existência e abandonou os pensamentos corriqueiros que nada revelam. Seus escritos finais são grandiosos e pouco valorizados, porque os intelectuais que avaliam sua obra estão presos aos valores vitais e só sabem enxergar os, sem dúvida alguma, belíssimos conceitos de Grande Sertão: Veredas. Seus escritos finais vão durar na avaliação dos pósteros, porque foram idealizados na terceira potência do cogito. O escritor procurou razões, juízos novíssimos, para restituir à matéria ficcional as formas vislumbradas, naqueles raros clarões do espírito, para adequá-las ao plano concreto da forma literária.
Por esta ótica, como já afirmei antes, poderíamos revisitar todas as outras narrativas da fase final do Artista. Ele conseguiu mostrar a seus leitores eleitos "a diferença que vem-vai do cabível ao possível” (Guimarães Rosa, op. cit.).
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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