15 - GUIMARÃES ROSA: RECRIANDO O PASSADO
NEUZA MACHADO
(Burrinho Pedrez – Autor: José Roberto Aguilar - 1974)
O Artista Ficcional sertanejo sonhou com as qualidades íntimas do sertão, mas essas qualidades saíram de seu próprio interior (matéria lírica interagindo com a matéria ficcional). Ao invés de penetrar a crosta da terra sertaneja como um trabalhador braçal, revolveu-a, remexeu-a, ludicamente, para reabastecer-se de lembranças, para induzir-se a um profundo resgate de sua própria essência. O desejo de purificar miticamente o sertão da infância, no início da retomada ficcional de seu rosto primitivo (Goffman, Erving, A representação do eu na vida cotidiana), significou a vontade de limpar a sua casa interior dos miasmas que impregnam a vida moderna.
A obra literária de Guimarães Rosa (suas várias fases) revela um espírito altamente transmutativo: as dialéticas bem e mal, amor e ódio, alegria e tristeza, independentes das várias perspectivas ficcionais que permearam suas etapas criativas, compõem os fragmentos de seu próprio ser sertanejo, dilacerado cotidianamente pelas imposições da sociedade moderna.
O Artista Ficcional Guimarães Rosa, de acordo com a sua visão muito particular do sertão mineiro, lutou contra a extinção de um mundo primitivo. Sobressaíram-se nessa luta suas angústias existenciais, por intermédio dos longos questionamentos de seus ímpares narradores; seus sobressaltos íntimos, mediante as descobertas cotidianas de seus personagens infantis (Primeiras Estórias); o sentimento de culpa do filho do sertão, consciente do desaparecimento do Pai nas águas eternais das recordações (“A terceira margem do rio”, Primeiras Estórias).
É lícito reafirmar que a valorização desse mundo primitivo alcançou um êxito extraordinário, e este êxito só aconteceu porque o escritor valorizou a sua condição de homem sertanejo. O médico, nas narrativas iniciais, o diplomata, nas narrativas finais de Estas Estórias (suas faces de homem citadino), só aparecem para ressaltar os valores imaginários do sertão do passado. A narrativa "A simples e exata estória do burrinho do comandante", do corpus de Estas Estórias, é uma revalorização indireta desse passado. Mesmo que aparentemente o mundo marítimo do Comandante se mostre diferente e distanciado do sertão das primeiras narrativas (Sagarana, Grande Sertão: Veredas), seu discurso evoca uma quase semelhança com o discurso de Riobaldo. Não há ligação aparente entre os dois mundos, mas a lembrança de "um burrinho mignon, a quem o pêlo crespo, as breves patas delgadas e as orelhas de enfeite, faziam pessoa de terreiro e brinquedo, indígena na poesia” (“A simples e exata estória do burrinho do comandante”, Estas Estórias) propicia o sutil contraponto.
No intuito de finalizar esta minha propedêutica, imponho-me a realçar o fato de que as narrativas assinaladas sempre continuarão a impulsionar novas buscas teóricas. Por enquanto, ancorada em minhas reflexões transmutativas-interpretativas, penso que este burrinho do Comandante, um náufrago do mar que enfrenta inúmeros perigos, repete a coragem e a inteligência daquele outro burrinho pedrês, sertanejo, iniciador das etapas evolutivas da incomum criação literária de Guimarães Rosa.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
A obra literária de Guimarães Rosa (suas várias fases) revela um espírito altamente transmutativo: as dialéticas bem e mal, amor e ódio, alegria e tristeza, independentes das várias perspectivas ficcionais que permearam suas etapas criativas, compõem os fragmentos de seu próprio ser sertanejo, dilacerado cotidianamente pelas imposições da sociedade moderna.
O Artista Ficcional Guimarães Rosa, de acordo com a sua visão muito particular do sertão mineiro, lutou contra a extinção de um mundo primitivo. Sobressaíram-se nessa luta suas angústias existenciais, por intermédio dos longos questionamentos de seus ímpares narradores; seus sobressaltos íntimos, mediante as descobertas cotidianas de seus personagens infantis (Primeiras Estórias); o sentimento de culpa do filho do sertão, consciente do desaparecimento do Pai nas águas eternais das recordações (“A terceira margem do rio”, Primeiras Estórias).
É lícito reafirmar que a valorização desse mundo primitivo alcançou um êxito extraordinário, e este êxito só aconteceu porque o escritor valorizou a sua condição de homem sertanejo. O médico, nas narrativas iniciais, o diplomata, nas narrativas finais de Estas Estórias (suas faces de homem citadino), só aparecem para ressaltar os valores imaginários do sertão do passado. A narrativa "A simples e exata estória do burrinho do comandante", do corpus de Estas Estórias, é uma revalorização indireta desse passado. Mesmo que aparentemente o mundo marítimo do Comandante se mostre diferente e distanciado do sertão das primeiras narrativas (Sagarana, Grande Sertão: Veredas), seu discurso evoca uma quase semelhança com o discurso de Riobaldo. Não há ligação aparente entre os dois mundos, mas a lembrança de "um burrinho mignon, a quem o pêlo crespo, as breves patas delgadas e as orelhas de enfeite, faziam pessoa de terreiro e brinquedo, indígena na poesia” (“A simples e exata estória do burrinho do comandante”, Estas Estórias) propicia o sutil contraponto.
No intuito de finalizar esta minha propedêutica, imponho-me a realçar o fato de que as narrativas assinaladas sempre continuarão a impulsionar novas buscas teóricas. Por enquanto, ancorada em minhas reflexões transmutativas-interpretativas, penso que este burrinho do Comandante, um náufrago do mar que enfrenta inúmeros perigos, repete a coragem e a inteligência daquele outro burrinho pedrês, sertanejo, iniciador das etapas evolutivas da incomum criação literária de Guimarães Rosa.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
Nenhum comentário:
Postar um comentário