13.4 - O ELEMENTO AR: A UM PASSO DO INFINITO
NEUZA MACHADO
“Toda treva é material”, diz Bachelard: as sombras da infância (os medos da infância) materializam-se gradativamente em contraponto à alegria inicial da viagem narrativa (“As margens da alegria”, Primeiras Estórias). Paradoxalmente, é um peru, ligado à terra, que deflagra os circunlóquios ficcionais sobre o intenso sentimento de tristeza que se apodera do narrador. O peru é uma ave presa ao elemento terra, e isto prova que o atual sonhador do ar ainda não cortou relações com a sua matéria de origem, ou por outra, agora, permite-se observá-la do alto, do “páramo empírio” (conf. “Darandina”), duplicando-a criativamente, ao invés de reproduzi-la.
Os valores de “bem estar”, que marcaram as fases iniciais do escritor, valores ligados a terra, passam a sofrer uma reavaliação. O ato de pensar a morte do peru, mediante as sensações próprias da criança, confirma o conflito interior de quem faz um percurso de reconhecimento íntimo. Para que houvesse esse reconhecimento, foi necessária a ascensão do Artista ao elemento ar, assim como foi necessária também, em nível narrativo, a viagem de avião (da criança) até a cidade em construção.
A cidade em construção referencia uma nova fase de criação literária, ainda ligada às recordações da infância, permeadas pelas profundas reflexões do "solitário" indivíduo moderno. A cidade em construção ainda reflete o espaço sertanejo do passado (já que estava sendo construída num semi-ermo, no chapadão) mas, graças ao elemento ar, dinamizado, questionador, ela simboliza um espaço de interseção entre dois tempos que se opõem. O Artista de Primeiras Estórias, situado no final da década de 1950 (século XX), não pode desprender-se totalmente dos cogitos iniciais, formadores da insólita consciência do narrador que viria a seguir, uma vez que, histórica e esteticamente, os personagens ficcionais da época ainda não haviam assumido o plano do Vazio existencial. Tais personagens só iriam surgir no período da ditadura militar, por intermédio das "Absurdas" narrativas de Murilo Rubião, Roberto Drummond e outros, que marcaram aquele momento histórico-estético até 1984.
Assim, dentro do espaço narrativo de "As margens da alegria", a imagem do avião, como referencial de alegria, cede lugar à imagem do peru, como referencial de tristeza. O narrador do sertão, como já afirmei, historicamente e esteticamente ainda não estava livre das imposições do mundo vital. O avião não se perdeu no infinito, ao contrário, pousou no campo que ficava a curta distância da casa — "de madeira, sobre estacões, quase penetrando na mata"; o Menino não desembarcou em uma terra encantada, ao contrário, deparou-se com os aspectos negros da vida, simbolizados no destino de morte de um peru de quintal.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
NEUZA MACHADO
“Toda treva é material”, diz Bachelard: as sombras da infância (os medos da infância) materializam-se gradativamente em contraponto à alegria inicial da viagem narrativa (“As margens da alegria”, Primeiras Estórias). Paradoxalmente, é um peru, ligado à terra, que deflagra os circunlóquios ficcionais sobre o intenso sentimento de tristeza que se apodera do narrador. O peru é uma ave presa ao elemento terra, e isto prova que o atual sonhador do ar ainda não cortou relações com a sua matéria de origem, ou por outra, agora, permite-se observá-la do alto, do “páramo empírio” (conf. “Darandina”), duplicando-a criativamente, ao invés de reproduzi-la.
Os valores de “bem estar”, que marcaram as fases iniciais do escritor, valores ligados a terra, passam a sofrer uma reavaliação. O ato de pensar a morte do peru, mediante as sensações próprias da criança, confirma o conflito interior de quem faz um percurso de reconhecimento íntimo. Para que houvesse esse reconhecimento, foi necessária a ascensão do Artista ao elemento ar, assim como foi necessária também, em nível narrativo, a viagem de avião (da criança) até a cidade em construção.
A cidade em construção referencia uma nova fase de criação literária, ainda ligada às recordações da infância, permeadas pelas profundas reflexões do "solitário" indivíduo moderno. A cidade em construção ainda reflete o espaço sertanejo do passado (já que estava sendo construída num semi-ermo, no chapadão) mas, graças ao elemento ar, dinamizado, questionador, ela simboliza um espaço de interseção entre dois tempos que se opõem. O Artista de Primeiras Estórias, situado no final da década de 1950 (século XX), não pode desprender-se totalmente dos cogitos iniciais, formadores da insólita consciência do narrador que viria a seguir, uma vez que, histórica e esteticamente, os personagens ficcionais da época ainda não haviam assumido o plano do Vazio existencial. Tais personagens só iriam surgir no período da ditadura militar, por intermédio das "Absurdas" narrativas de Murilo Rubião, Roberto Drummond e outros, que marcaram aquele momento histórico-estético até 1984.
Assim, dentro do espaço narrativo de "As margens da alegria", a imagem do avião, como referencial de alegria, cede lugar à imagem do peru, como referencial de tristeza. O narrador do sertão, como já afirmei, historicamente e esteticamente ainda não estava livre das imposições do mundo vital. O avião não se perdeu no infinito, ao contrário, pousou no campo que ficava a curta distância da casa — "de madeira, sobre estacões, quase penetrando na mata"; o Menino não desembarcou em uma terra encantada, ao contrário, deparou-se com os aspectos negros da vida, simbolizados no destino de morte de um peru de quintal.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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