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segunda-feira, 12 de julho de 2010

14.4 - ALÉM DO COGITO TRÊS: A CONSCIÊNCIA DA “SOLIDÃO METAFÍSICA”


14.4 - ALÉM DO COGITO TRÊS: A CONSCIÊNCIA DA “SOLIDÃO METAFÍSICA”

NEUZA MACHADO


No que tange a sua obra, o Ficcionista Guimarães Rosa, originário do sertão de Minas Gerais, em princípio, procurou organizar seus “momentos fervilhantes”, procurando dar consistência real a sua imensa intuição literária sobre o sertão da infância e adolescência. A consciência de sua “solidão metafísica” (solidão do Homem Moderno), em meio a uma elite intelectual, para ele, insatisfatória, um grupo que, segundo suas próprias palavras (Entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz), só sabe transmitir bolas de papel (op. cit.: 16), impulsiona-o à retomada literária dos valores primordiais de seu princípio de vida.

É nesse momento que o Artista retoma intuitivamente e simbolicamente o mito de Siloé, ou seja, retrocede literariamente ao seu passado (imaculado pelo poder das recordações) para beber na fonte pura de suas origens. Em sua clausura temporal (ficcional), procura reformar o fantasma do passado para iludir o porvir.

O tempo do pensamento o enclausurou no ápice de sua evolução mental (cogito(3)) e o induziu a reformar o sertão do passado, para livrá-lo do temor do futuro.

Eis as palavras de Riobaldo, seu personagem em Grande Sertão: Veredas:

“Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, nos gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismos, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas).

O personagem revela o estado de espírito do Artista mineiro, naquela fase, e o seu desejo de recuperar um passado epicamente sem nódoa. O seu momento histórico/social, por ocasião da criação de Grande Sertão: Veredas, não era um momento reconfortante, já que a humanidade tentava se recuperar de uma recente guerra mundial. O Artista, enquanto cidadão do mundo, participara ativamente do conflito, em sua função de diplomata na fervilhante Europa. Portanto, o seu desejo de recuperar literariamente o sertão imaculado da infância era um desejo mais que justificado. Mais justificada ainda é a sua adesão intuitiva ao elemento fogo, como marca de mudança narrativa, já que o fogo está intimamente ligado à idéia de guerra. O Artista percebe que as guerras sempre existiram e que o sertão, miticamente reconstruído, não deixava de ser ele também um reduto de pura violência. Riobaldo e os jagunços simbolizam o instinto guerreiro da humanidade; o amor, que o envolveu e o fez idolatrar o guerreiro Diadorim, simboliza o desejo de paz, desejo este inerente ao homem que pensa e direciona seus próprios instintos.

O mito de Siloé se faz presente implicitamente em Grande Sertão: Veredas, porque o escritor do sertão, no momento de sua criação ficcional, certamente, se encontrava psiquicamente traumatizado pelas sequelas do pós-guerra, já que vivenciara como diplomata os problemas da Segunda Guerra Mundial. Sua infância mineira, repleta de mitos e superstições, também fora povoada por estórias de guerreiros-jagunços. Tais seres extraordinários aterrorizaram o mundo infantil nas longas noites sertanejas ou mesmo nas cidadezinhas interioranas iluminadas pelo fogo acolhedor do fogão a lenha; seres relembrados pelos mais velhos e experientes, ansiosos para demonstrarem aos jovens o espírito heróico daqueles que no passado sustentaram o futuro.

“Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca” (Guimarães Rosa – Entrevista).

O Artista, certamente desiludido com a realidade moderna que o cercava, procurou um novo ritmo de vida que o fizesse reencontrar as suas origens e o restituísse à felicidade de outrora. O elemento fogo iluminou as lembranças e as recordações das fontes e rios do sertão do passado, fazendo-o conscientizar-se de sua antiga tranquilidade. O elemento fogo restituiu-lhe os instantes claros do passado épico de seus ancestrais, mas obrigou-o posteriormente a elaborar um novo ritmo de vida. Ele viu-se intimado, pela sua própria consciência singular, a romper com o aspecto heróico de seu passado. Depois de quinhentas e sessenta e três páginas escritas sob o comando da perspectiva maravilhada, páginas de retorno e retomada de valores puros, foi necessário romper (matar) literariamente com o passado, para que ele renascesse diferente nas páginas das narrativas seguintes. O longo narrar do épico e ao mesmo tempo lírico jagunço Riobaldo e a morte do singular guerreiro Diadorim representam esse instante de lúcida conscientização.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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