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quarta-feira, 14 de julho de 2010

14.6 - ALÉM DO COGITO TRÊS: UM NOVO DISCURSO FICCIONAL


14.6 - ALÉM DO COGITO TRÊS: UM NOVO DISCURSO FICCIONAL

NEUZA MACHADO


A criação literária de Guimarães Rosa se modifica depois do impacto maravilhado de Grande Sertão: Veredas. As narrativas seguintes, a partir de Primeiras Estórias, revelam as marcas metafísicas dos instantes singulares que decidiram as mudanças de seu novo discurso criador. Submetido a um singularíssimo impacto (o impacto da consciência do infinito), o Artista de Ficção Sertaneja inicia a sua escalada dimensional nos domínios do cogito(3), ansiando ultrapassar os limites de uma criação literária ainda presa aos valores vitais. Os valores do espírito se insinuam em sua última fase criadora. O além do terceiro cogito acena-lhe como uma promessa de transgressão vital. E, no entanto, o Artista tem consciência da impossibilidade de uma total adesão criadora ao que se encontra fora das imposições sócio-vitais.

A narrativa "Meu tio, o Iawaretê" revela dramaticamente esta impossibilidade. Ali se detecta a vontade do Artista de eliminar o narrador (os narradores, experientes e/ou modernos?); detecta-se o desejo do criador literário, já quase nos limites que separam o plano vital do plano espiritual, em destruir sua mais notável criatura ficcional, o narrador das experiências primordiais.

A simbologia de um narrador-índio é fundamental para que o escritor complete o seu ciclo de criação literária. Urge portanto eliminar do espaço da criação ficcional todos os narradores, sejam eles experientes ou modernos; urge instalar nesse espaço o poder do próprio demiurgo, senhor de vida e morte, inclusive da vida e morte de seu narrador. A narrativa "Meu tio, o Iawaretê" realiza esse desejo do Artista do sertão. Ele mata no final seu personagem, o índio Iawaretê, assim como já eliminara em Grande Sertão: Veredas a possibilidade de continuação de relatos romanescos sertanejos submetidos à forte contribuição da matéria épica. De ora em diante, a conscientização dos instantes reveladores de pensamentos grandiosos se fará cada vez mais presente em seus escritos até o final.

De ora em diante, até o final, sua inteligência, já próxima a ultrapassar o cogito(3), não se submeterá mais aos valores vitais. O Artista de Ficção Sertaneja ultrapassou os limites de suas forças criadoras, abrindo um novo caminho em direção ao não-dito. Sua literatura agora apenas revelará fragmentos de vida, já que é impossível mostrar o silêncio sem a contribuição especular da realidade. Seus pensamentos agora não ditam regras de vida, mas a vida também não impõe preceitos e ideologias em seus escritos. Cada palavra, cada frase, cada parágrafo de Estas Estórias, Tutaméia e algumas narrativas de Ave, Palavra parecem flutuar num plano longínquo da realidade sensível.

Essa idéia de flutuação seria aqui, nesta reflexão teórico-interpretativa, uma nomeação muito frágil daquilo que apreende-se como a força do instante dinamizado. As horas de pensamentos inéditos e fecundos, que nasceram depois de seus inúmeros repousos fervilhantes, deixaram um rastro luminoso em suas narrativas finais. E, no entanto, essas narrativas finais, narrativas ímpares, são muito pouco avaliadas pelos críticos literários que se ocupam em analisar a criação ficcional de João Guimarães Rosa. É preciso destacar o poder sobrenatural que se evola dessas últimas narrativas. É preciso que se avalie a extensão da caminhada literária do Artista até o último estágio do pensamento humano, pensamento este ainda aceito como normal no âmbito das diretrizes de vida ditas normais. O Artista Guimarães Rosa iludiu os preceitos sociais de normalidade, transportando para o espaço da criação literária os pensamentos descontínuos do cogito(3), já a um passo de romper com os valores vitais, em direção ao plano espiritual de difícil acesso. Ele iludiu os preceitos sociais de normalidade, porque soube equilibrar, sob o patrocínio da literatura, este plano de autêntica solidão, no qual se viu inserido, com o plano da realidade vital, em que o indivíduo deve se sujeitar às normas sócio-existenciais. Assim, a anormalidade do indivíduo solitário (da Era Moderna), multifacetado, se instala no discurso literário, e o homem Guimarães Rosa será para sempre reverenciado como um dos maiores criadores da literatura brasileira.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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