13.3 - O ELEMENTO AR: A UM PASSO DO INFINITO
NEUZA MACHADO
“O sonho de vôo está submetido à dialética da leveza e do peso. Só por esse fato, o sonho de vôo recebe duas espécies bastante diferentes: existem vôos leves e vôos pesados. Em torno desses dois caracteres se acumulam todas as dialéticas da alegria e da dor, da exaltação e da fadiga, da atividade e da passividade, da esperança e do desalento, do bem e do mal. Os mais variados incidentes que se produzem na viagem do vôo encontrarão num e noutro caso princípios de ligação. Quando se presta atenção à imaginação dinâmica, as leis da substância e do devir psíquicos revelam sua supremacia sobre as leis da forma: o psiquismo que se exalta e o psiquismo que se fatiga se diferenciam num sonho aparentemente tão monótono quanto o sonho de vôo” (Bachelard).
A narrativa "As margens da alegria" (Guimarães Rosa, Primeiras Estórias) está submetida à dialética da leveza e do peso: o vôo leve do Menino, à semelhança das estórias infantis, contrapõe-se ao vôo pesado do psiquismo moderno do Artista do sertão, espectador e participante de um mundo deteriorado. O vôo pesado reflete as pequenas desventuras do Menino na grande cidade, ao mesmo tempo que reflete as insatisfações do escritor ante a realidade moderna. A leveza inicial da viagem oferece margem para a descoberta de um lugar estranho e desconhecido, e o provocador desta descoberta é um incerto peru de terreiro, o qual mostrará ao Menino o seu desaparecer no espaço, no grão nulo de um minuto. Valorizando o tempo minimamente ou desvalorizando-o, o demiurgo impõe a sua criatura ficcional "um miligrama de morte”, dinamicamente impulsionado por suas evoluções mentais.
A simples vontade de voar é dialeticamente substituída pela enérgica vontade de denunciar os conflitos do homem moderno. Longe estão os devaneios solidamente ligados às experiências comunitárias do sertão. O poder de vôo direciona o olhar e a mão firme de quem cria, ressalta os estados emocionais do Menino, revela que outras e diferentes estórias virão à luz, sob futuros instantes de vislumbre do não-conhecido.
O avião, como referente indutor, propiciou a "viagem inventada no feliz", propiciou o vôo onírico do Artista em direção ao cogito(4). A alegria (leve e superficial), “as coisas que vinham docemente”, as atenções do Tio, inúmeros detalhes narrativos darão lugar obrigatoriamente ao peso das reflexões profundas: “as satisfações antes da consciência das necessidades”. Esta consciência das necessidades não lhe permite situar-se no âmbito das simples estórias infantis, indutoras de bom procedimento ou exemplo de vida. Esta consciência ímpar impõe imagens pesadas, imagens negras, imagens infelizes. O Menino vivencia uma fase de autêntico sofrimento, refletindo o estado de espírito do homem moderno.
Repensando este aspecto escuro, nesta fase criativa de Guimarães Rosa, acredita-se que a agitação interna do escritor não se conforma com a placidez de estorinhas triviais. Seu íntimo exige um alto grau de discórdia criativa, revelando seu dinamismo interior, seus questionamentos de vida. Ele quer contradizer as aparências que levam à felicidade, e sua criaturinha ficcional terá de conhecer também “um miligrama de morte”. Ele nega a felicidade total a seu pequeno personagem, obriga-o a perceber a luz negra que se evola dos sentimentos infelizes.
“O ser que segue sonhos, sobretudo o ser que comenta sonhos, não pode permanecer no contorno das formas. Ao menor apelo de intimidade, penetra na matéria de seu sonho, no elemento material de seus fantasmas. Lê, no borrão preto, a potência dos embriões ou a agitação desordenada das larvas. Toda treva é material. (...) E para um autêntico sonhador do interior das substâncias, um canto de sombra pode evocar todos os terrores da vasta noite” (Bachelard).
A intimidade do Artista está em conflito: narrar apenas as aventuras do Menino do interior na Grande Cidade em construção não o satisfaz. A viagem de seu personagem se transforma em uma incursão em seu próprio interior, e o seu interior não recolhe apenas os aspectos pitorescos da realidade.
Seus novos sonhos ficcionais estão próximos ao despertar, estão quase racionalizados, estão ao abrigo de novas e singulares imagens, propensas a serem deformadas pela imaginação aérea dinamizada. As mesmas formas dinâmicas que propiciaram alegria serão mostradas e avaliadas mediante o sentimento de tristeza do Menino. O elemento ar, em seu aspecto dinamizado, expõe os antigos medos do menino do interior, induzindo-o, agora, a refletir sobre o assunto.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
NEUZA MACHADO
“O sonho de vôo está submetido à dialética da leveza e do peso. Só por esse fato, o sonho de vôo recebe duas espécies bastante diferentes: existem vôos leves e vôos pesados. Em torno desses dois caracteres se acumulam todas as dialéticas da alegria e da dor, da exaltação e da fadiga, da atividade e da passividade, da esperança e do desalento, do bem e do mal. Os mais variados incidentes que se produzem na viagem do vôo encontrarão num e noutro caso princípios de ligação. Quando se presta atenção à imaginação dinâmica, as leis da substância e do devir psíquicos revelam sua supremacia sobre as leis da forma: o psiquismo que se exalta e o psiquismo que se fatiga se diferenciam num sonho aparentemente tão monótono quanto o sonho de vôo” (Bachelard).
A narrativa "As margens da alegria" (Guimarães Rosa, Primeiras Estórias) está submetida à dialética da leveza e do peso: o vôo leve do Menino, à semelhança das estórias infantis, contrapõe-se ao vôo pesado do psiquismo moderno do Artista do sertão, espectador e participante de um mundo deteriorado. O vôo pesado reflete as pequenas desventuras do Menino na grande cidade, ao mesmo tempo que reflete as insatisfações do escritor ante a realidade moderna. A leveza inicial da viagem oferece margem para a descoberta de um lugar estranho e desconhecido, e o provocador desta descoberta é um incerto peru de terreiro, o qual mostrará ao Menino o seu desaparecer no espaço, no grão nulo de um minuto. Valorizando o tempo minimamente ou desvalorizando-o, o demiurgo impõe a sua criatura ficcional "um miligrama de morte”, dinamicamente impulsionado por suas evoluções mentais.
A simples vontade de voar é dialeticamente substituída pela enérgica vontade de denunciar os conflitos do homem moderno. Longe estão os devaneios solidamente ligados às experiências comunitárias do sertão. O poder de vôo direciona o olhar e a mão firme de quem cria, ressalta os estados emocionais do Menino, revela que outras e diferentes estórias virão à luz, sob futuros instantes de vislumbre do não-conhecido.
O avião, como referente indutor, propiciou a "viagem inventada no feliz", propiciou o vôo onírico do Artista em direção ao cogito(4). A alegria (leve e superficial), “as coisas que vinham docemente”, as atenções do Tio, inúmeros detalhes narrativos darão lugar obrigatoriamente ao peso das reflexões profundas: “as satisfações antes da consciência das necessidades”. Esta consciência das necessidades não lhe permite situar-se no âmbito das simples estórias infantis, indutoras de bom procedimento ou exemplo de vida. Esta consciência ímpar impõe imagens pesadas, imagens negras, imagens infelizes. O Menino vivencia uma fase de autêntico sofrimento, refletindo o estado de espírito do homem moderno.
Repensando este aspecto escuro, nesta fase criativa de Guimarães Rosa, acredita-se que a agitação interna do escritor não se conforma com a placidez de estorinhas triviais. Seu íntimo exige um alto grau de discórdia criativa, revelando seu dinamismo interior, seus questionamentos de vida. Ele quer contradizer as aparências que levam à felicidade, e sua criaturinha ficcional terá de conhecer também “um miligrama de morte”. Ele nega a felicidade total a seu pequeno personagem, obriga-o a perceber a luz negra que se evola dos sentimentos infelizes.
“O ser que segue sonhos, sobretudo o ser que comenta sonhos, não pode permanecer no contorno das formas. Ao menor apelo de intimidade, penetra na matéria de seu sonho, no elemento material de seus fantasmas. Lê, no borrão preto, a potência dos embriões ou a agitação desordenada das larvas. Toda treva é material. (...) E para um autêntico sonhador do interior das substâncias, um canto de sombra pode evocar todos os terrores da vasta noite” (Bachelard).
A intimidade do Artista está em conflito: narrar apenas as aventuras do Menino do interior na Grande Cidade em construção não o satisfaz. A viagem de seu personagem se transforma em uma incursão em seu próprio interior, e o seu interior não recolhe apenas os aspectos pitorescos da realidade.
Seus novos sonhos ficcionais estão próximos ao despertar, estão quase racionalizados, estão ao abrigo de novas e singulares imagens, propensas a serem deformadas pela imaginação aérea dinamizada. As mesmas formas dinâmicas que propiciaram alegria serão mostradas e avaliadas mediante o sentimento de tristeza do Menino. O elemento ar, em seu aspecto dinamizado, expõe os antigos medos do menino do interior, induzindo-o, agora, a refletir sobre o assunto.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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