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terça-feira, 25 de maio de 2010

7.4 - UMA PERSPECTIVA MARAVILHADA


7.4 - UMA PERSPECTIVA MARAVILHADA

NEUZA MACHADO


A zona territorial sertaneja de Minas Gerais, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é simbolicamente o sussurro (o chamado), que o induz a penetrar as camadas profundas das confortantes recordações; é o abrigo entre as finas camadas de terra, ou entre os suaves reflexos das águas (o Verde, o Chico, o das Almas, o Urucuia, o rio maior, berço dos deuses sertanejos).

“Aumentadas nos sonhos da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol” (Bachelard).

A dialética do pequeno e do grande se instala nas páginas de Grande Sertão: Veredas. A imaginação criadora transmuda o seu objeto de análise: as areias do Suçuarão (deserto) realçam o "estralal do sol” e a fome intensa, real, dos jagunços: "Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. (...) O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava” (Grande Sertão: Veredas), o rio das Almas se agigantava, caindo dos altos claros da montanha das Almas. Essas lembranças de paisagens denunciam um sertão alargadamente mítico (matéria mítica interagindo com a matéria ficcional).

“Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim. (...) Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto — no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão — depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas de palmeira... Lembro, deslembro” (Grande Sertão: Veredas).

O escritor brasileiro revira o pó da terra sertaneja de Minas Gerais, suas substâncias, em seus aspectos grandes e pequenos. "Se sabes pôr para fora o que está dentro e para dentro o que está fora, diz um alquimista, és um mestre da obra” (Bachelard). A terra do Meãomeão é quase azul, não da cor azul do céu, é um céu-azul vivoso, só visível nos sonhos ousados. Ele revira e limpa o sertão. Esse dito sertão é puro e limpo, mesmo circundado pelas impurezas da modernidade, porque nascido das imaculadas recordações da infância.

“Foi um arraso de um tirotêi, p'ra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Agüentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. (...) Trape por meu cavalo — que achei — pulei em meu assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. (...) Uma duas ou três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina do encheio. (...) Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer — se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... Burumbum” (Grande Sertão: Veredas).

Tempos loucos, tempo de matéria épica acoplada ao ficcional, tempo escondido na poeira sertaneja. Os alimentos são perigosos: a mandioca doce convive com a mandioca brava, que pode matar; as águas dos rios, riachos e poços possuem qualidades díspares, pois podem matar a sede, no sentido salutar do verbo matar, mas também matar realmente o sedento, se estiverem contaminadas por minerais ou plantas nocivas à saúde. "Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas — que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo” (Grande Sertão: Veredas).

O apenas visível, que nos contos de Sagarana cerceava a imaginação literária, foi transposto. O pequeno sertão, reduto de retorno e busca permanentes, transformou-se, tornou-se um gigante, graças à imaginação maravilhada do sonhador. Agora, o sertão é apenas do Criador, porque cabe por inteiro em suas mãos demiúrgicas, dilatando-se infinitamente por intermédio de seu olhar. "O minúsculo é enorme! Para assegurar-se disso, basta ir em imaginação habitá-lo” (Bachelard). As pequenas guerras entre jagunços alcançam proporções épicas, ampliadas pela ficcional perspectiva maravilhada. Realçados por esta perspectiva, os alimentos tornam-se perigosos, as águas dos rios, riachos e poços, venenosas. Os limites visíveis foram transpostos: o Artista capta a essência dos elementos e os diviniza.

O amor também é dialetizado, alcançando, agora, a perspectiva maravilhada:

“Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. (...) Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim. (...) Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia — voava reto para ele” (Grande Sertão: Veredas).

O personagem-narrador, alter ego do Artista, vive o avesso do amor; questiona este sentimento desconhecido que o incomoda e o enleva; sentimento possível nos domínios do mito.

Depois da mítica luta, em Serra-Nova, distrito de Rio Pardo, no ribeirão Traçadal, surge o mítico amor do jagunço Riobaldo por seu amigo Diadorim. "O verdadeiro amor é selvagem e triste; é uma palpitação a dois nas trevas...” (Lawrence,D.H. In.: Bachelard). O mundo mítico é o mundo das trevas. Diadorim, dos longos silêncios, dos olhos verdes misteriosos, é a essência do amor mitificado. Graças a esse amor, Riobaldo aprendeu a apreciar as belezas sem-dono do sertão: os rios, as cachoeiras; o cio da tigre preta na Serra do Tatu; a gargaragem de onça; a garoa rebrilhante da Serra dos Confins; a madrugada quando o céu embranquece; a garoa da Serra-da-Raizama, "onde até os pássaros calculam o giro da lua — se diz — e canguçu monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro” (Grande Sertão: Veredas).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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