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quinta-feira, 20 de maio de 2010

7.1 - UMA PERSPECTIVA MARAVILHADA


7.1 - UMA PERSPECTIVA MARAVILHADA

NEUZA MACHADO


Observando e dialetizando o sertão em A Hora e Vez de Augusto Matraga, o Artista-Ficcional do século XX remexe a poeira da realidade sertaneja e se deslumbra com o que foi visualizado. Propõe-se a seguir, em Grande Sertão: Veredas, a examinar e descrever o interior maravilhoso de uma comunidade primitiva sob os ditames da perspectiva maravilhada, ainda ligada à perspectiva dialética. Por esta perspectiva maravilhada, há a ultrapassagem da crosta, e um sertão diferente do sertão da primeira fase surge, mas ainda conservando a influência da perspectiva anterior.

Diz Bachelard:

“A terceira perspectiva de intimidade que queremos estudar é a que nos revela um interior maravilhoso, um interior esculpido e colorido com mais prodigalidade do que as mais belas flores. Tão logo a ganga é retirada, assim que o geodo é aberto, um mundo cristalino nos é revelado; a seção de um cristal bem polido revela flores, entrelaçamento, figuras. Não se para mais de sonhar. Essa escultura interna, esses desenhos íntimos em três dimensões, essas efígies e retratos estão ali como belezas adormecidas” (Bachelard).

Não se para mais de sonhar, porque, além de alcançar o estágio da perspectiva maravilhada, o sonhador está saindo da "meia-noite psíquica, onde (germinavam) virtudes de origem” (Bachelard), e retornando ao plano dos sonhos aumentadores, dilatados e retos, da vigília do amanhecer. Encontra-se no espaço intermediário entre o sono profundo e o despertar, começando já a administrar seus sonhos grandiosos e coloridos, escrevendo as quinhentas e sessenta e três páginas de Grande Sertão: Veredas num só fôlego.

“(...) O centro possui forças novas. O ser era plástico, ei-lo agora plasmador. Em lugar de um espaço arredondado, eis agora um espaço com dimensões preferidas, direções desejadas, eixos de agressão. Como são jovens as mãos quando se fazem a si próprias promessas de ação, promessas de antes do amanhecer! O polegar toca o teclado dos outros quatro dedos. Uma argila de sonho responde a esse tato delicado. O espaço onírico próximo ao despertar possui feixes de retas finas; a mão que espera o despertar é um tufo de músculos, desejos e projetos” (Bachelard).

Nos domínios do devaneio do despertar (multiplicidade do cheio, do maravilhado), o Artista não se preocupa em recuperar sintagmaticamente as imagens reprodutoras do sertão (não há mais a sequência lógica das imagens). Agora, o espaço ficcional é horizontal e vertical e "enche-se de objetos que provocam mais do que convidam” (Bachelard). O longo narrar de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, representa o auge dessa fase. As forças oníricas se multiplicam, os sonhos se dilatam e o sertão do passado se transforma numa imensa travessia de vida, subordinado à memória, aos questionamentos e às recordações.

O narrador em primeira pessoa pede emprestado o olhar do Criador Literário. Este também foi, na infância, habitante daquele lugar de pura maravilha. Viu as árvores, as flores, os caminhos, o povo; conheceu o calor e o frio; partilhou dos hábitos; ouviu as estórias de honradez e bravura, mas adquiriu, posteriormente, outros valores. Ao desenvolver sua longa narrativa, sob a imposição da perspectiva maravilhada, descobre um outro sertão (já pré-anunciado em "São Marcos" e em A Hora e Vez de Augusto Matraga, "obscuro e fechado”, e, ao mesmo tempo, amplo e infinito. Sob a magia da perspectiva maravilhada (o que teoricamente é chamado de plano mítico-substancial) o dono do ato de narrar, de origem sertaneja, descobre o lado resplandescente dessa realidade que o faz sonhar, obrigando seu narrador (seu alter ego) a acompanhá-lo em seus devaneios luminosos.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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