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sábado, 15 de maio de 2010

6.1 - O COLORIDO DO SERTÃO ROSEANO


6.1 - O COLORIDO DO SERTÃO ROSEANO

NEUZA MACHADO

Na obra ficcional roseana, a cor que predomina é o verde: o verde das matas, do reflexo dos rios, das asas dos periquitinhos e papagaios, que povoam o universo de Sagarana (primeira fase); o verde dos olhos de Diadorim, malsinando para sempre a vida de Riobaldo, em Grande Sertão:Veredas, os “reflexos de verdes metais em azul-e-preto" do peru de "As margens da alegria” , "a cobra-verde, atravessando a estrada”, o verde finalizando a primeira estória do corpus de Primeiras Estórias.

“Voava, porém, a luzinha verde vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria” (Primeiras Estórias).

Nos sonhos do Artista brasileiro, o verde possui um valor ativo; é a cor da substância sertaneja e a que melhor a expressa. Todo o seu imaginário-em-aberto converge para o verde dos amplos espaços do sertão: o verde da terra e o verde da água. Assim, terra revestida de verde, onde surgem outras cores apenas para destacarem suas variações mentais. Por exemplo, desejando mostrar o poder do mal, no sertão, ele destaca a cor preta: "O diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças” (Grande Sertão: Veredas).

O verde valoriza as lembranças e recordações do Artista, nato de um mundo "onde os espaços carecem de fechos":

E eis Riobaldo:

“Tempos loucos... Burumbum! o cavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas, ramada de cipós, que me balançavam e espetavam, feito eu estava pendurado em teião de aranha... Aonde? Atravessei aquilo vida toda... De medo em ânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá — e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado de moitas, sempre me agarrava — rolava mesmo assim: depois — depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo” (Grande Sertão: Veredas).

"Era um amasso verde de folhas vivas": o verde recebe e valoriza as outras cores que o iluminam, o verde é vivo: convivem com o verde do Sertão os altos claros das Almas (Serra); a tigre preta da Serra do Tatu; a garoa rebrilhante da madrugada na Serra dos Confins; a ciganinha roxa e a nhiíca amarelinha (flores); a terra quase azul do Meãomeão (local geográfico), "O rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno” (Grande Sertão: Veredas), mas há também o rio Verde e o Urucuia.

O sertão roseano é em verdade um arco-íris infinito sobre um fundo miticamente verde ("os lugares estão aí em si para confirmar"): nele cabem

“Claráguas, fontes, sombreado e sol. Fazenda Boi-Preto, dum Eleutério Lopes — mais antes do campo. Azulado, rumo a rumo com o Queimadão. Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado; o anis enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, redobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco. De qualquer pano de mato, de de-entre quase encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê” (Grande Sertão: Veredas).

Independente de todas as outras cores, o verde é a cor das matas, das marcas de um valor profundo, sinalizando um passado de vivências verdadeiras. A ciganinha roxa, a nhiíca amarelinha, o campo azulado não são apenas nomes que se aplicam indistintamente, são antes "forças substanciais para uma imaginação ativista” (Bachelard).

“O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio e põe no colo” (Grande Sertão: Veredas).

O vento é verde. As palmas dos buritis verdes balançando materializam o elemento volátil. Eis aqui a intuição do processo de encaminhamento para o quarto cogito, plano da espiritualidade, buscando o mimético mundo do silêncio criador. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio e põe no colo. Eis aqui uma proposta de reelaboração do texto escrito: o leitor atingindo os espaços abertos do não-dito, sob a proteção do vento verde. Muito em breve, o Artista irá desmaterializar o sertão.

Por ora, o narrador-personagem, por intermédio das lembranças do Artista, olha a natureza, remexe a poeira mítica da terra, penetra-a, participa dela, integra-a, envolvido intimamente pela sua essência vital. Antes, em Sagarana, início de sua trajetória ficcional, ele apenas admirara o sertão.

“A admiração é a forma primária e ardente do conhecimento que enaltece o seu objeto, que o valoriza. Um valor, no primeiro encontro, não se avalia: admira-se” (Bachelard).

O primeiro encontro ficcional com o sertão em Sagarana inspirou-lhe admiração. Agora, em Grande Sertão: Veredas, utilizando-se de comparações e confrontações psíquicas, o Artista de narrativa em prosa participa da substancialidade de sua matéria ficcional, ancorada temporariamente na base de sua futura imaginação sem limites.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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