6.2 - O COLORIDO DO SERTÃO ROSEANO
NEUZA MACHADO
O verde é a substância eleita em meio a diversas cores que compõem o sertão; simboliza a intimidade do sertanejo com a sua matéria literária, encarna as qualidades de um mundo imaculado.
As verdades da imaginação, segundo Bachelard, não são aceitas pelo crítico clássico. Nós preferimos "seguir a imaginação em sua encarnação das qualidades", procurando surpreender o momento da desmaterialização do sertão.
Sonhando a intimidade do sertão, em Grande Sertão: Veredas, o ficcionista sertanejo procura valorizar a cor de certas substâncias: o verde da terra e o verde da água, ou seja, os reflexos da mata nas superfícies dos rios.
"Quem sonha com a matéria beneficia-se de uma espécie de enraizamento pivotante de suas impressões. A materialidade defronta-se então com a idealidade das impressões, o devaneio objetiva-se por uma espécie de obrigação externa e interna. Nasce uma espécie de materialismo fascinante que pode deixar lembranças imperecíveis em uma alma" (Gaston Bachelard).
Relembrando o sertão, ele descobre todas as veredas coloridas que o compõem, caminhos insólitos que pairam em suas lembranças. A sólida terra sertaneja adquire qualidades ideais; os rios, lagoas, e os minúsculos fios de água transformam-se em matéria indefinida sob a idealidade das impressões do adulto.
O Artista mitifica o passado em Grande Sertão: Veredas, purifica-o ficcionalmente, porque necessita realçar um espaço puro nas lembranças, envolvido e quase tragado pelas impurezas do mundo moderno. Ele lava ficcionalmente o passado do sertão, porque, pelo prisma da realidade, já não o vê puro e imaculado.
Eis aqui alguns trechos comprovadores:
“Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? tem seus motivos. Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. (...)
Para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo” (Grande Sertão: Veredas).
Apesar do aparente despoder, o personagem-narrador teima em apresentar ao doutor a face imaculada do sertão, refletora de um intenso colorido:
“Lhe mostrar os altos claros das Almas; rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. (...) A garoa rebrilhante da dos Confins, madrugada quando o céu embranquece. (...) no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão — depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. ventos de não se deixar formar orvalho (...) O senhor vá lá, verá. (...) Claráguas, fontes, sombreado e sol (...) De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboleta. Como não se viu, aqui se vê. Porque nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular — cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme” (Grande Sertão: Veredas).
O Artista recupera um sertão limpo através das lembranças; dignifica os altos claros das Almas (Serra das Almas), a garoa rebrilhante do amanhecer, o ar seco e limpo, produtor de grandes e belas borboletas; apresenta ao leitor a sua íntima relação com o passado.
O sertão brasileiro (principalmente a extensão que engloba as Gerais) nunca foi puro (no sentido ideológico/moderno), pois que produto da Era Moderna; mas o Dom Quixote sertanejo o visualiza assim. A verdadeira realidade do sertão é conflituosa: os vaqueiros sempre se sentiram deslocados no comércio (cidade, burgo, povoado, arraial ou ajuntamento de casas); o sertão brasileiro sempre foi contaminado pelo mundo da Era Moderna (pós-medieval), seja por meio dos espertos negociantes ou dos mascates estrangeiros.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
NEUZA MACHADO
O verde é a substância eleita em meio a diversas cores que compõem o sertão; simboliza a intimidade do sertanejo com a sua matéria literária, encarna as qualidades de um mundo imaculado.
As verdades da imaginação, segundo Bachelard, não são aceitas pelo crítico clássico. Nós preferimos "seguir a imaginação em sua encarnação das qualidades", procurando surpreender o momento da desmaterialização do sertão.
Sonhando a intimidade do sertão, em Grande Sertão: Veredas, o ficcionista sertanejo procura valorizar a cor de certas substâncias: o verde da terra e o verde da água, ou seja, os reflexos da mata nas superfícies dos rios.
"Quem sonha com a matéria beneficia-se de uma espécie de enraizamento pivotante de suas impressões. A materialidade defronta-se então com a idealidade das impressões, o devaneio objetiva-se por uma espécie de obrigação externa e interna. Nasce uma espécie de materialismo fascinante que pode deixar lembranças imperecíveis em uma alma" (Gaston Bachelard).
Relembrando o sertão, ele descobre todas as veredas coloridas que o compõem, caminhos insólitos que pairam em suas lembranças. A sólida terra sertaneja adquire qualidades ideais; os rios, lagoas, e os minúsculos fios de água transformam-se em matéria indefinida sob a idealidade das impressões do adulto.
O Artista mitifica o passado em Grande Sertão: Veredas, purifica-o ficcionalmente, porque necessita realçar um espaço puro nas lembranças, envolvido e quase tragado pelas impurezas do mundo moderno. Ele lava ficcionalmente o passado do sertão, porque, pelo prisma da realidade, já não o vê puro e imaculado.
Eis aqui alguns trechos comprovadores:
“Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? tem seus motivos. Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. (...)
Para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo” (Grande Sertão: Veredas).
Apesar do aparente despoder, o personagem-narrador teima em apresentar ao doutor a face imaculada do sertão, refletora de um intenso colorido:
“Lhe mostrar os altos claros das Almas; rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. (...) A garoa rebrilhante da dos Confins, madrugada quando o céu embranquece. (...) no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão — depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. ventos de não se deixar formar orvalho (...) O senhor vá lá, verá. (...) Claráguas, fontes, sombreado e sol (...) De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboleta. Como não se viu, aqui se vê. Porque nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular — cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme” (Grande Sertão: Veredas).
O Artista recupera um sertão limpo através das lembranças; dignifica os altos claros das Almas (Serra das Almas), a garoa rebrilhante do amanhecer, o ar seco e limpo, produtor de grandes e belas borboletas; apresenta ao leitor a sua íntima relação com o passado.
O sertão brasileiro (principalmente a extensão que engloba as Gerais) nunca foi puro (no sentido ideológico/moderno), pois que produto da Era Moderna; mas o Dom Quixote sertanejo o visualiza assim. A verdadeira realidade do sertão é conflituosa: os vaqueiros sempre se sentiram deslocados no comércio (cidade, burgo, povoado, arraial ou ajuntamento de casas); o sertão brasileiro sempre foi contaminado pelo mundo da Era Moderna (pós-medieval), seja por meio dos espertos negociantes ou dos mascates estrangeiros.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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