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sexta-feira, 14 de maio de 2010

5.3 - GUIMARÃES ROSA: O MUNDO DINÂMICO DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS


5.3 - GUIMARÃES ROSA: O MUNDO DINÂMICO DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

NEUZA MACHADO


O mundo de Grande Sertão: Veredas é enérgico e dinâmico; é um reduto de batalhas grandiosas e de amores malsinados. O narrador/Artista participa do combate das substâncias sertanejas, põe-se no centro da batalha, comanda-a, animaliza-se, transforma-se, ele também, em Tatarana (em Tupi tata'rana, lagarta-de-fogo) num primeiro momento de chefia e, posteriormente, no Urutu-Branco, cobra venenosa, também chamada de urutu-dourado ou jararacuçu.

“As designações alquímicas como lobo voraz atribuída a uma substância (...) provam bem a animalização das imagens em profundidade. Essa animalização (...) nada tem a ver com formas ou cores. Nada legitima exteriormente as metáforas do leão ou do lobo, da víbora ou do cão. Todos esses animais revelam-se como metáforas de uma psicologia da violência, da crueldade, da agressão, as quais corresponde, por exemplo, a rapidez do ataque” (Bachelard).

O sertanejo sensível, que merecia ter estudado latim em aula-régia (o Artista moderno?), necessitou de um aparato animalesco para impôr-se como chefe de jagunços. As metáforas da Tatarana e do Urutu foram legitimadas na parte mais íntima do narrador do século XX (aquele interior em ebulição), para revelarem a violência, crueldade, agressão e rapidez de ataque do invencível bando, comandado pelo Grande Urutu-Branco, apelido metafórico que designa um homem feroz e mortífero.

De acordo com Bachelard, a imaginação material da substância agitada "contém uma espécie de batalha", "substancializa um combate”. Esta imaginação material, associada à animalização em profundidade do personagem-narrador como chefe, sustenta as batalhas do bando de jagunços contra as injustiças sociais, contra o inimigo Hermógenes (figuração do diabo), contra os desencontros da vida, já que viver é muito perigoso, refrão constante ao longo da narrativa.

Portanto, com a morte de Medeiro Vaz, substituto do grande Joca Ramiro (homens "de uma raça de homens que o senhor não mais vê” (Grande Sertão: Veredas), Riobaldo é assinalado como chefe:

“Tomou-se café, e Diadorim me disse, firme: — "Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as derradeiras ordens ..."

Todos estavam lá, os brabos, me olhantes — tantas meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras — grão e grão — era como levando eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso ou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam governando. Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não queria, não queria. (...) Rentemente, que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Engoli cuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: — "Não posso ... Não sirvo ..."

— "Mano velho, Riobaldo, tu pode!" (...)

— "Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia..." — Diadorim retornou. Assim instava, mão erguida. Onde é que os outros roda-a-roda, denotavam assentimento. — "Tatarana! Tatarana! ..." — uns pronunciaram; sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha” (Grande Sertão: Veredas).

O personagem já possuía o sinal (Tatarana), a substância animalizada que o distinguia dos demais. A beleza e a aparente insignificância da lagarta-de-fogo esconde o seu veneno mortal; Riobaldo, belo, simples e sensível, possui interiormente a força e a coragem dos poderosos. Nele observa-se a dialética entre a bondade e a maldade: combate de substâncias opostas, assim como a lagarta-de-fogo, insignificante, mas mortífera.

A designação Tatarana já estava previamente imaginada pelo Artista, conhecedor do fio narrativo de seus pensamentos ficcionais. Assim, não foi difícil designar o futuro chefe Riobaldo com o sinal que marcará o lado gladiador do personagem, já que ele possuía o apelido, que o caracterizará durante algum tempo.

“Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia”, diz Diadorim, e os jagunços assentem, gritando o apelido previamente imaginado.

"- Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens..." (...)

“Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços — quando um perigo poja? — sabe os quantos lobos?” (Grande Sertão: Veredas).

O Artista, em sua agitação discursiva e ativa, comanda o raciocínio do personagem-narrador. O bando de jagunços se animaliza, também, denunciando sua participação no campo fervilhante das imagens profundas, saídas da intuição produtora de narrativa. Essas imagens não são vazias, possuem força e vigor, no sentido de extravasarem toda a agressão e violência, próprias de jagunços sanguinários. “Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços (quando um perigo poja?) sabe os quantos lobos?”: lobos aqui simbolizando a pura violência de um passado violento e mítico. O sertão do passado como reduto de banditismo e morte, "onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade” (Grande Sertão: Veredas).

“Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! (...) é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. (...) onde se forma calor de morte (...) agente ali rói rampa” (Grande Sertão: Veredas).

O sertão do passado, o lado negro (feio), consome lentamente as lembranças do Artista. Há uma emoção diferente sustentando a mão de quem cria, uma espécie de tristeza imanente, provinda dos sonhos experimentais (a experiência do passado, comandando temporariamente a criação do Artista), revelando crítica e censura ao lado de uma admiração inconteste.

O Artista está perturbado diante da grandeza mítica de seu passado histórico. Riobaldo Tatarana, o futuro chefe Urutu-Branco, é sua face sertaneja, ou seja, o que ele teria sido (no plano das probabilidades de vida), se o mundo moderno não o tivesse conduzido para outras paragens. Riobaldo Tatarana (Urutu-Branco, enquanto chefe de jagunços) é o seu próprio lado bélico (mítico, sertanejo), camuflado por camadas de polidez recebidas do mundo moderno.

“Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. (...) Seu Joãozinho Bem-Bem (...), Joca Ramiro (...), Zé Bebelo (...), Sô Candelário (...), Titão Passos (...). E o "Urutu-Branco"? Ah, não me fale. Ah, esse... Tristonho levado, que foi — que era um pobre menino do destino...” (Grande Sertão: Veredas).

O Artista extravasa sua emoção, criando um personagem-narrador cruel (a crueldade está implícita, já que por duas vezes ele é eleito chefe), que conta suas experiências de vida; mas que, mesmo assim, é, antes de tudo, terno e sentimental, um pobre menino do destino, representando a face pacífica do Artista. Estas duas faces digladiam-se, e quem vence é a narrativa moderna (pós-moderna?), como fusão de planos e sentimentos desencontrados. Por baixo da máscara do personagem, o Artista vivencia seu próprio combate íntimo, expõe suas dúvidas e questionamentos sobre as diversas realidades que o contaminam.

Retomando Bachelard:

“Mas a extroversão tem apenas um tempo. É enganadora quando pretende ir ao âmago das substâncias, pois acaba por encontrar nele todas as imagens das paixões humanas. Pode-se assim mostrar ao homem que vivencia as suas imagens "a luta" entre os álcalis e os ácidos; ele vai mais além. Sua imaginação material transforma-a insensivelmente numa luta entre a água e o fogo, depois numa luta entre o feminino e o masculino" (Gaston Bachelard).

As denominações Tatarana e Urutu-Branco, os dois momentos de comando do personagem-narrador, representando a animalização do personagem, para o realce de sua face guerreira, exigem um narrador belicoso. O Artista veste as roupas do narrador, transforma-se ele mesmo no personagem, porque há de existir, forçosamente, ao longo da narrativa, muita afinidade e muita hostilidade entre os dois. Riobaldo, na velhice, relatando suas antigas aventuras, fará a reconciliação.

“Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas — de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado” (Grande Sertão: Veredas).

O Artista quis destacar o Riobaldo guerreiro, o sertanejo destemido, exemplo de vida para os pósteros, mas realçou com maior nitidez o amante infeliz, apaixonado pelo amigo Diadorim. O lado guerreiro do personagem não se afina com a sua sensibilidade, portanto, há uma hostilidade embutida contra essa face, só passível de ser detectada pelo analista se for submetida a uma busca minuciosa e sustentada por teorias esclarecedoras. O personagem (alter ego do Artista) tenta rejeitar o comando (o poder), mas está preso às imposições do relato.

“Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: “— Não posso... Não sirvo..." (...)

“— Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens...” (Grande Sertão: Veredas).

Quem executa ordens, pode dar ordens; isto, sem comentar o futuro desrespeito do qual será alvo, se demonstrar fraqueza:

“Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços — quando um perigo poja? — sabe os quantos lobos? Mas, eh, não, o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Não que matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, o senhor pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para sempre, neste vale de lágrimas. Tudo rosna” (Grande Sertão: Veredas).

O personagem está preso às imposições do relato. O sertão não concebe homens fracos; ali, tudo rosna, tudo se agita, tudo se assemelha à animalidade. O sertão, agora, nesta narrativa, é maior do que a hostilidade do Artista em relação à face violenta de seu personagem. Este não pode demonstrar fraqueza ou medo em um mundo ficcional primitivo, onde tudo rosna e se animaliza. O Artista também não. Forçosamente, para compor seu personagem, terá de buscar em seu interior de homem sertanejo os componentes beligerantes, os quais delinearão o guerreiro.

Mas, se há uma hostilidade escondida contra essa face animalesca de Riobaldo, há, em maiores proporções, inúmeras afinidades. As belas e sensíveis imagens sobre o amor rejeitam o plano mítico (diegético), assumindo o plano do imaginário-em-aberto. O Criador Literário necessitou de uma química específica para representar a hostilidade (Riobaldo Tatarana, Riobaldo, o Grande Urutu-Branco), assim como se designa os minerais, ou seja, quando se fala da corrosão dos metais, por exemplo. As metáforas nominais de Riobaldo assinalam essa química insólita. Repleto de sonhos de origem, obriga-se a se revestir como jagunço, usando o corpo ficcional do sujeito-narrador. Riobaldo é a sua tentação (ficcional) maior.

Pretendendo ir ao âmago das substâncias, ou seja, narrando as misturas alquímicas que realçam o lado guerreiro do personagem, o Artista trouxe à luz as imagens das paixões humanas: a luta contra o bem e o mal, a luta entre a água e o fogo (o elemento água, matéria eleita na ficção roseana, momentaneamente sobrepujada pelo elemento fogo), a luta entre o feminino e o masculino.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8.

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