4.5 – GUIMARÃES ROSA: A DINAMOGENIA DO NARRADOR
NEUZA MACHADO
A ritmanálise, de acordo com a tese de Pinheiro dos Santos, reavaliada por Gaston Bachelard, produz harmonia, e o trabalho rítmico corresponde ao ritmo do trabalhador. Para inflamar a narrativa, o narrador sutilmente deixa transparecer devaneios sexuais, mediante um discurso ritmado: "Foi talvez a fazer esse trabalho que o homem aprendeu a cantar” (Bachelard).
Quando Nhô Augusto se apropria da meretriz, o povo aplaude num coro cadenciado:
NEUZA MACHADO
A ritmanálise, de acordo com a tese de Pinheiro dos Santos, reavaliada por Gaston Bachelard, produz harmonia, e o trabalho rítmico corresponde ao ritmo do trabalhador. Para inflamar a narrativa, o narrador sutilmente deixa transparecer devaneios sexuais, mediante um discurso ritmado: "Foi talvez a fazer esse trabalho que o homem aprendeu a cantar” (Bachelard).
Quando Nhô Augusto se apropria da meretriz, o povo aplaude num coro cadenciado:
"É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo por ser barato. E uma voz bem entoada cantou de lá, por cantar:"
“Mariquinha é como a chuva:
boa é, p'ra quem quer bem!
Ela vem sempre de graça,
só não sei quando ela vem...”
(A Hora e Vez de Augusto Matraga)
O narrador está exercitando o ato de fricção, invadido pelo calor objetivo da descoberta do Ficcionista/Artista. Nesse momento, quem percebe o Amor maior, indizível, oriundo do espaço do Não-dito, é o Artista. O Artista está vivenciando a descoberta do verdadeiro plano da criação literária, já intuído nas narrativas anteriores de Sagarana. Por isto, o gozo é intenso e, posteriormente, se propaga, indefinidamente, nas quinhentas e sessenta e três páginas de Grande Sertão: Veredas.
É um trabalho evidentemente rítmico, um trabalho que corresponde ao ritmo do obreiro, que lhe fornece múltiplas e belas ressonâncias; o braço que fricciona, os pedaços de madeira que batem, a voz que canta, tudo se une na mesma harmonia, na mesma dinamogenia ritmada, tudo converge para a mesma esperança, para um fim cujo valor se conhece. Logo que se inicia a fricção, invade-nos um suave calor objetivo, ao mesmo tempo que a quente sensação de um exercício agradável. Os ritmos sustentam-se uns aos outros. Induzem-se mutuamente e duram por auto-indução.
Sustentado por este ritmo, obriga o povaréu a aclamar, "com disciplina e cadência", a atitude de Nhô Augusto: "— Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô Augusto leva a Sariema!” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
E o ritmo do narrador, induzido pelo Ficcionista-Artista, obriga o capiauzinho apaixonado a se submeter ao poderio de Nhô Augusto, que o separou de sua amada com uma pranchada de mão; o ritmo do narrador capta a confusão do momento, a briga que se instaura entre os capiaus, vista por vários ângulos ao mesmo tempo. O narrador está atento ao detalhe, porque sua função, no momento, é reproduzir a "inflamação do pilão, enfiando-o na ranhura da madeira seca” (Bachelard), ou seja, reproduzir uma narrativa primitiva, memorialista, e continuar uma tradição, levando aos pósteros as experiências de vida do sertanejo.
O ritmo do narrador obriga o povo a estapear o capiauzinho e a aclamar Nhô Augusto; obriga o herói a abandonar sua presa de guerra no meio do caminho, em direção ao Beco do Sem-Ceroula, "onde só há três prédios – cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela – e onde gente séria entra mas não passa” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
O ritmo do narrador obriga Nhô Augusto a "descer a ladeira sozinho – uma ladeira que a gente tinha de descer quase correndo, porque era só cristal (quartzo, sílex ou feldspato) e pedra solta” (A Hora e Vez de Augusto Matraga), e retomar o caminho de sua casa na cidade, na Rua de Cima, rua simbolizando o Olimpo Sertanejo, morada dos deuses e poderosos.
É também o ritmo do narrador experiente que apresenta D. Dionóra (a esposa de Nhô Augusto e nora do Coronel Afonsão Esteves); D. Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios, tão semelhante à Hera, esposa de Zeus, a deusa dos olhos bovinos, segundo os dizeres de Homero. D. Dionóra, que, assim como a sua similar mítica, vivia constantemente ultrajada pelas traições sexuais do marido.
Sustentado por este discurso rítmico, o narrador muda as fases/faces de seu personagem, ou seja, todas as transformações sofridas a partir da marca de ferro-em-brasa: a queda físico-social, a recuperação na cabana de pretos, a partida para o norte de Minas sob sua face/fase carismático-religiosa; a permanência no povoado do Tombador e, principalmente, a transformação final realizada sob a égide da criação literária, na qual o personagem se liberta definitivamente dos modelos reprodutores, marcas de narrativas lineares.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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