8.4 - SERTÃO: SOFRIMENTO E CONFLITO
NEUZA MACHADO
Eis aqui a problemática central de Grande Sertão: Veredas, iniciada com a agitação visualizada em A Hora e Vez de Augusto Matraga: o fogo ativo e suas altas labaredas, domesticadas e ao mesmo tempo beligerantes, promovem a desordem no interior do universo ficcional roseano feito de terra e água. O Artista é testemunha dessa agitação e conflito e é cruel ao expor seus personagens ao efeito do fogo punidor, ao sofrimento produzido por um elemento que não possui meio-termos.
Em A Hora e Vez de Augusto Matraga, o personagem sofre a punição pelo fogo (mítico), pois o Artista necessita eliminá-lo da categoria de herói, transformando-o em personagem ficcional.
Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, sofre uma purificação pelo fogo: a chama, agora domesticada, impulsionando o olhar do criador para o alto, purifica-o, pois é a chama dos sentimentos conflituosos e interiorizados. A chama vertical não aceita mais as humildes substâncias da vida comunitária do sertão; urge desordenar o mundo ordenado das lembranças, urge castigar os heróis do passado, pois estes não souberam acompanhar a evolução dos tempos. O Artista hostiliza o passado, porque ama em demasia esse passado; há muita afinidade entre ele e o sertão. Nhô Augusto (herói) é castigado, transforma-se em complicado personagem moderno; Riobaldo (misto de herói épico e personagem romanesco) é purificado em prol de uma verdade: a verdade de sua própria essência ficional (estética modernista), que determinou a sua história infeliz, visto que jamais terá o prêmio de suas heróicas demandas, ou seja, o amor de Diadorim.
Os acontecimentos narrativos, insólitos, próprios da estética modernista, impõem os devidos finais aos personagens. Esses finais são apenas acontecimentos da modernidade, não possuem o aparato das antigas narrativas. O Artista se revela e revela o seu momento histórico, já que não possui o distanciamento e a grandiloquência do narrador épico.
“Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo eu — que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo — mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro! — nanje os dias e as noites não recordo. (...) acho que se perpassou, no zúo de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor — se transforma, se compõem em uma espécie de decorrido formoso” (Grande Sertão: Veredas).
O personagem sertanejo desta estética não é herói à moda épica, é apenas vítima das ocorrências do cotidiano. A vítima (Riobaldo) é uma face ficcional do Artista; ele (o Artista) é portanto sua própria vítima, se queimando também no fogo purificador das lembranças abrasadoras. Agora, torna-se mais fácil perceber o pessimismo que caracteriza o personagem, refletor do pessimismo do homem moderno.
Segundo Bachelard, só a imaginação pessimista "insere o tumulto no âmago das substâncias”, e quando compreende-se o pessimismo na obra de Guimarães Rosa, vê-se, por um outro ângulo, o todo de sua criação literária: é o pessimismo (ou a solidão) da modernidade (do discurso moderno) que macula o espaço puro do sertão roseano, refletor de antigas substâncias. Foi preciso que o sertão limpo estivesse em perigo de contaminação, para que o Artista moderno se sentisse motivado a conservar-lhe sua dimensão de pureza.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
Em A Hora e Vez de Augusto Matraga, o personagem sofre a punição pelo fogo (mítico), pois o Artista necessita eliminá-lo da categoria de herói, transformando-o em personagem ficcional.
Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, sofre uma purificação pelo fogo: a chama, agora domesticada, impulsionando o olhar do criador para o alto, purifica-o, pois é a chama dos sentimentos conflituosos e interiorizados. A chama vertical não aceita mais as humildes substâncias da vida comunitária do sertão; urge desordenar o mundo ordenado das lembranças, urge castigar os heróis do passado, pois estes não souberam acompanhar a evolução dos tempos. O Artista hostiliza o passado, porque ama em demasia esse passado; há muita afinidade entre ele e o sertão. Nhô Augusto (herói) é castigado, transforma-se em complicado personagem moderno; Riobaldo (misto de herói épico e personagem romanesco) é purificado em prol de uma verdade: a verdade de sua própria essência ficional (estética modernista), que determinou a sua história infeliz, visto que jamais terá o prêmio de suas heróicas demandas, ou seja, o amor de Diadorim.
Os acontecimentos narrativos, insólitos, próprios da estética modernista, impõem os devidos finais aos personagens. Esses finais são apenas acontecimentos da modernidade, não possuem o aparato das antigas narrativas. O Artista se revela e revela o seu momento histórico, já que não possui o distanciamento e a grandiloquência do narrador épico.
“Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo eu — que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo — mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro! — nanje os dias e as noites não recordo. (...) acho que se perpassou, no zúo de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor — se transforma, se compõem em uma espécie de decorrido formoso” (Grande Sertão: Veredas).
O personagem sertanejo desta estética não é herói à moda épica, é apenas vítima das ocorrências do cotidiano. A vítima (Riobaldo) é uma face ficcional do Artista; ele (o Artista) é portanto sua própria vítima, se queimando também no fogo purificador das lembranças abrasadoras. Agora, torna-se mais fácil perceber o pessimismo que caracteriza o personagem, refletor do pessimismo do homem moderno.
Segundo Bachelard, só a imaginação pessimista "insere o tumulto no âmago das substâncias”, e quando compreende-se o pessimismo na obra de Guimarães Rosa, vê-se, por um outro ângulo, o todo de sua criação literária: é o pessimismo (ou a solidão) da modernidade (do discurso moderno) que macula o espaço puro do sertão roseano, refletor de antigas substâncias. Foi preciso que o sertão limpo estivesse em perigo de contaminação, para que o Artista moderno se sentisse motivado a conservar-lhe sua dimensão de pureza.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8