SERTÃO ROSEANO: CASA PRIMORDIAL
NEUZA MACHADO
NEUZA MACHADO
O Sertão de Rosa é o reduto da volta e da busca permanentes, mesmo que, em realidade, este Sertão já não exista; é o reconforto das lembranças de um lugar aconchegante, onde as minúcias daquele mundo, visíveis e invisíveis, estão recolhidas em seu íntimo. São lembranças fragmentadas transformando-se em acontecimentos dignos de relato. Nessa superabundância de pensamentos que se entrechocam e se ajustam observa-se o discurso retórico, característica do literário, segundo Lefebve, e é justamente esse discurso retórico que impõe as diretrizes da narrativa, a partir do retorno do personagem ao Arraial do Murici.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gargalhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro. (...) E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra.. E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl, rrril, rrrl-rrril!...
O personagem está em vias de retornar ao Arraial do Murici, mas, antecipando-o, o Artista já iniciou seu processo de retorno à antiga morada, por intermédio do devaneio poético. "As regras do código retórico são sempre suspeitas, susceptíveis de serem contestadas, transgredidas, repudiadas" (Lefebve). As regras da narrativa roseana transgridem as normas, para não se transformarem em letra morta. Por isso, há desvios, desestruturações, que violam o código ordinário, e, graças a esses desvios, o discurso ganha vida, e é como se realmente o leitor estivesse assistindo ao alarido dos periquitinhos, à algazarra dos tuins chovendo nos pés de mamão. Recordando o sertão em sua ficção poética, o Artista interroga uma realidade (o conteúdo dessa realidade) e exige a presença física dessa realidade, mesmo que, para que isto aconteça, seja necessária a adoção de um discurso inventivo, criador de novos meios de expressão. Assim, apreende-se o estranhamento pós-moderno do discurso textual: os fonemas r, i, l, agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã gargalhou com a revoada de pássaros?
"Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás" (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Os estranhamentos do discurso textual, indicando "uma intenção literária e um efeito literário comuns à prosa e à poesia". O narrador, em alguns trechos da narrativa, encontra-se sob as exigências do mundo poético, onde todas as contribuições imagísticas são bem-vindas. Nas últimas sequências da narrativa, o discurso é poético, repleto de metáforas, antíteses e estranhamentos. O narrador faz seu personagem sertanejo cantar velhas cantigas e se encantar com a Natureza. É o insólito irrompendo do texto. São os estranhamentos de um Sertão de sonho, que jazem no inconsciente de quem recorda. Sertão estranho, porque representa o passado, espaço que protegeu uma felicidade que já não existe. O narrador (um prestigioso alter ego) não pensa o caminho para a frente, o ver passar a vida, porque as veredas do passado foram muito mais amadas e jazem intactas dentro de seu espaço interno. Sertão atraente, recantos e veredas atraentes, saídos das camadas profundas do ser.
"O excesso de pitoresco de uma morada pode ocultar a sua intimidade. Isso é verdade na vida; e mais ainda no devaneio. As verdadeiras casas da lembrança, as casas aonde os nossos sonhos nos conduzem, as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descrição. Descrevê-las seria mandar visitá-las. Do presente pode-se talvez dizer tudo; mas do passado! A casa primordial e oniricamente definitiva deve guardar sua penumbra. Ela pertence à literatura em profundidade, isto é, à poesia, e não à literatura eloqüente, que tem necessidade do romance dos outros para analisar a intimidade. Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é justamente o que preciso para me colocar em situação de onirismo, para me situar no limiar de um devaneio em que vou repousar no meu passado" (Bachelard).
O Sertão é pitoresco e íntimo, é verdadeiro, se houver crédito para a verdade das recordações. Buscando a etimologia da palavra recordação, encontra-se o sentido poético, que se traduz por novamente ao coração. O que se aninha no coração é verdadeiro e íntimo, mais verdadeiro ainda no devaneio, segundo Bachelard. Assim, Sertão verdadeiro, produzindo um discurso poético verdadeiro, avesso a qualquer descrição. Nas sequências finais de A Hora e Vez de Augusto Matraga, o sertão está imobilizado, porque este narrador detém o tempo (já está íntimo de um cogito especialíssimo), "destrói (momentaneamente) a continuidade simples do tempo encadeado" (Bachelard). Coloquei acima uma ressalva momentaneamente, porque a narrativa seguirá seu curso normal até o final, submetendo-se às exigências da continuidade da ficção.
A ressalva se justifica, mas não deixarei de ressaltar o trecho da sequência final, porque é a partir dele que visualizo o insólito na narrativa, e o insólito em Guimarães Rosa se faz presente apenas no discurso. Por estas razões, o discurso é poético, vertical, fugindo intermitente do pensamento explicado; assim, o referido trecho é mais verdadeiro: representa o Sertão do narrador-poeta, antitético, contínuo e descontínuo, alheio às exigências do mundo; representa o eu profundo de um Artista de dupla orientação: preso a um tempo másculo e valente que se arroja e despedaça (Nhô Augusto seria o representante desse tempo), mas, ao mesmo tempo, preso a "um tempo doce e submisso que lamenta e chora" (Bachelard); representa implicitamente, apaixonadamente, o Sertão-casa, edificado depois do repouso fervilhante do tempo do pensamento, perdido no tempo histórico. Neste segundo instante, "instante poético" (Bachelard), o personagem verdadeiro não é Nhô Augusto, é o narrador, alter ego do Artista do século XX. Nhô Augusto empresta sua fisionomia, assume o lugar do verdadeiro personagem.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gargalhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro. (...) E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra.. E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl, rrril, rrrl-rrril!...
O personagem está em vias de retornar ao Arraial do Murici, mas, antecipando-o, o Artista já iniciou seu processo de retorno à antiga morada, por intermédio do devaneio poético. "As regras do código retórico são sempre suspeitas, susceptíveis de serem contestadas, transgredidas, repudiadas" (Lefebve). As regras da narrativa roseana transgridem as normas, para não se transformarem em letra morta. Por isso, há desvios, desestruturações, que violam o código ordinário, e, graças a esses desvios, o discurso ganha vida, e é como se realmente o leitor estivesse assistindo ao alarido dos periquitinhos, à algazarra dos tuins chovendo nos pés de mamão. Recordando o sertão em sua ficção poética, o Artista interroga uma realidade (o conteúdo dessa realidade) e exige a presença física dessa realidade, mesmo que, para que isto aconteça, seja necessária a adoção de um discurso inventivo, criador de novos meios de expressão. Assim, apreende-se o estranhamento pós-moderno do discurso textual: os fonemas r, i, l, agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã gargalhou com a revoada de pássaros?
"Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás" (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Os estranhamentos do discurso textual, indicando "uma intenção literária e um efeito literário comuns à prosa e à poesia". O narrador, em alguns trechos da narrativa, encontra-se sob as exigências do mundo poético, onde todas as contribuições imagísticas são bem-vindas. Nas últimas sequências da narrativa, o discurso é poético, repleto de metáforas, antíteses e estranhamentos. O narrador faz seu personagem sertanejo cantar velhas cantigas e se encantar com a Natureza. É o insólito irrompendo do texto. São os estranhamentos de um Sertão de sonho, que jazem no inconsciente de quem recorda. Sertão estranho, porque representa o passado, espaço que protegeu uma felicidade que já não existe. O narrador (um prestigioso alter ego) não pensa o caminho para a frente, o ver passar a vida, porque as veredas do passado foram muito mais amadas e jazem intactas dentro de seu espaço interno. Sertão atraente, recantos e veredas atraentes, saídos das camadas profundas do ser.
"O excesso de pitoresco de uma morada pode ocultar a sua intimidade. Isso é verdade na vida; e mais ainda no devaneio. As verdadeiras casas da lembrança, as casas aonde os nossos sonhos nos conduzem, as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descrição. Descrevê-las seria mandar visitá-las. Do presente pode-se talvez dizer tudo; mas do passado! A casa primordial e oniricamente definitiva deve guardar sua penumbra. Ela pertence à literatura em profundidade, isto é, à poesia, e não à literatura eloqüente, que tem necessidade do romance dos outros para analisar a intimidade. Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é justamente o que preciso para me colocar em situação de onirismo, para me situar no limiar de um devaneio em que vou repousar no meu passado" (Bachelard).
O Sertão é pitoresco e íntimo, é verdadeiro, se houver crédito para a verdade das recordações. Buscando a etimologia da palavra recordação, encontra-se o sentido poético, que se traduz por novamente ao coração. O que se aninha no coração é verdadeiro e íntimo, mais verdadeiro ainda no devaneio, segundo Bachelard. Assim, Sertão verdadeiro, produzindo um discurso poético verdadeiro, avesso a qualquer descrição. Nas sequências finais de A Hora e Vez de Augusto Matraga, o sertão está imobilizado, porque este narrador detém o tempo (já está íntimo de um cogito especialíssimo), "destrói (momentaneamente) a continuidade simples do tempo encadeado" (Bachelard). Coloquei acima uma ressalva momentaneamente, porque a narrativa seguirá seu curso normal até o final, submetendo-se às exigências da continuidade da ficção.
A ressalva se justifica, mas não deixarei de ressaltar o trecho da sequência final, porque é a partir dele que visualizo o insólito na narrativa, e o insólito em Guimarães Rosa se faz presente apenas no discurso. Por estas razões, o discurso é poético, vertical, fugindo intermitente do pensamento explicado; assim, o referido trecho é mais verdadeiro: representa o Sertão do narrador-poeta, antitético, contínuo e descontínuo, alheio às exigências do mundo; representa o eu profundo de um Artista de dupla orientação: preso a um tempo másculo e valente que se arroja e despedaça (Nhô Augusto seria o representante desse tempo), mas, ao mesmo tempo, preso a "um tempo doce e submisso que lamenta e chora" (Bachelard); representa implicitamente, apaixonadamente, o Sertão-casa, edificado depois do repouso fervilhante do tempo do pensamento, perdido no tempo histórico. Neste segundo instante, "instante poético" (Bachelard), o personagem verdadeiro não é Nhô Augusto, é o narrador, alter ego do Artista do século XX. Nhô Augusto empresta sua fisionomia, assume o lugar do verdadeiro personagem.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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