GUIMARÃES ROSA: FICÇÃO POÉTICA E REALIDADE
NEUZA MACHADO
NEUZA MACHADO
Bachelard diz que "a casa é o nosso canto do mundo". Guimarães Rosa adquiriu inúmeros talentos, projetou-se, transformou-se em cidadão do mundo, mas o sertão permaneceu como seu canto do mundo no Mundo.
“Eu sou antes de mais nada um "homem do sertão"; e isto, não é apenas uma afirmação biográfica, mas também e nisto pelo menos eu acredito firmemente, que ele, esse "homem do sertão", está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa. (...) Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim um símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo” (Guimarães Rosa).
O sertão foi seu primeiro universo e seu verdadeiro universo, e o que veio depois não o satisfez realmente. Não se encontra satisfação interior em um mundo refletor de hipocrisias, e o mundo que circunda o Sertão roseano, sem afetá-lo inteiramente, reflete a degradação do homem moderno (desde o século XVI), distante temporalmente dos valores irretocáveis da Antiguidade. O narrador roseano de A Hora e Vez de Augusto Matraga (já transitando para o pós-moderno) transporta-se, ao longo de sua narrativa, até "o país da Infância imóvel" (Bachelard), de onde recupera, por meio da nostalgia, os tesouros de um espaço verdadeiro, porque suas lembranças são verdadeiras. Sua antiga felicidade sertaneja é verdadeira. As histórias de grandes homens ou de violentos senhores-de-terra são verdadeiras, porque se encontram registradas nas recordações, não fazem parte da memória. São a verdade dos sentimentos, não são a verdade da memória histórica, replena de falsos testemunhos.
Bachelard, como filósofo, procura interpretar as imagens da casa, tendo "o cuidado de não romper a solidariedade da memória e da imaginação", aspectos racionais da realidade. Os teóricos da literatura poética dignificam mais as recordações do Poeta. Bachelard diz que "a casa abriga o devaneio, protege o sonhador, permite sonhar em paz"; a casa-Sertão de Guimarães Rosa só se faz verdadeira graças ao devaneio, ao sonho do sonhador somado às recordações (de novo ao coração). Bachelard diz que "os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade". O objetivo do narrador roseano não é a aprovação dos valores sertanejos (matéria épica), é mais importante realçar os valores que marcaram esse povo em sua profundidade. Por isto, o Artista sonha em paz, quando sonha o Sertão, porque esse sonho valoriza um espaço que lhe é caro, vivenciado dentro de um clima de sonho (Sonho dentro do sonho). Suas recordações se encontram ancoradas nesse Sertão de sonho ou ficção poética, matéria que integra pensamentos, lembranças e imagens literárias. Nessa integração se sustenta o retorno de Nhô Augusto, pautado por um discurso intrincado, no qual a realidade se encontra modificada pelo crivo de sentimentos interiorizados. Nesse discurso, vale mais a criatividade poética, mesmo que esta criatividade apareça dentro dos moldes ficcionais. Nesse discurso, o universo sertanejo aparece fragmentado, subjetivo, singular, porque o narrador se enreda em seus próprios devaneios e circunlóquios, alheio à matéria focalizada. O Sertão emerge instantâneo, imobilizado e complexo, do ponto de vista mágico do Poeta, não do Ficcionista.
É Guimarães Rosa quem fala: "Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade". Em suas narrativas, se unem a criação poético-ficcional e a realidade, simplesmente porque o Sertão roseano (Sertão que passou pelo selo do devaneio a partir da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, que teve seu momento de alta inspiração em Grande Sertão: Veredas, e que foi imaginado criativamente nas obras posteriores do autor) é um recanto de pura poesia. Sertão poético, espaço poético, onde as recordações (interferência lírica) suplantam a objetividade da memória. Se a casa abriga o devaneio, o Sertão abriga o devaneio de quem recorda. Sertão imperecível.
O Sertão das Gerais foi a força do indivíduo Guimarães Rosa, sustentando-o "através das tempestades do céu e das tempestades da vida" (Bachelard). O sertão mineiro como "corpo e alma": corpo, como realidade de vida; alma, enquanto realidade poética. Sertão-berço, sertão-casa, sertão-mundo; sertão fechado, agasalhado, protegido no seio de uma outra casa: seu próprio interior. Ele vivenciou inúmeras fases/faces de vida, "jogado no mundo", mas não perdeu o contato com o bem-estar primitivo do colo. Enfrentou a separação, saindo "fora do ser da casa"; aceitou mudanças de valores, tornando-se citadino e moderno, mas negou-se a romper definitivamente com os valores da antiga e primeira morada. Eis a força de sua temática poético-narrativa.
As reminiscências do passado, em forma de ficção poética, mostram que o aconchego do berço mantiveram a infância do Artista imóvel em seus braços. O Sertão roseano (segundo segmento da narrativa em questão) como compartimento de recordações: todos os cantos e recantos bem caracterizados; uma vida de interiorização e resgate poético de um passado que se faz presente, quando se quer paralisar o tempo que passa. Lugar que "retém o tempo comprimido", prelúdio de silêncio que antecede o instante de poesia.
As imagens do texto recuperam esse tempo: são imagens conotativas, são a percepção do sertão poético, espaço opaco e gratuito, pelo qual se vislumbram os questionamentos sócio-existenciais de um escritor paradoxal (sertanejo e citadino), obrigando-se a transferir para seu personagem Nhô Augusto seus espantos e descobertas supra-reais. Ele retoma o passado, ou seja, recorda sua antiga morada, mas camufla esse retomar, ao transferir para Nhô Augusto, personagem aparentemente central, o privilégio de nascimento e glória, o privilégio de ser nato de um mundo imaculado. Narrador paradoxal, Artista paradoxal, porque não é somente a história de Nhô Augusto que se sobressai; sobressai-se um discurso narrativo insólito, ou melhor, uma narração, uma enunciação, em que as palavras pesam mais; sobressai-se mais a expressividade da narração, a declaração subentendida de que o narrador da estória não se encontra longe da matéria focalizada; sobressai-se mais o fato de o Artista ter muita intimidade com aquele espaço, e, assim, a narração o representa no aspecto profundo de seu próprio ser.
A narração, discurso das palavras, expressa o ficcionista no plano das probabilidades de vida; a narrativa, que reproduz o personagem, é a ficção enquanto reprodução da realidade, ligada ao discurso das coisas. Por isto, as imagens do texto são também paradoxais: imagens imitativas (o referencial, a percepção dos objetos reais) mesclam-se e se opõem às imagens conotativas (a percepção do literário).
Se há paradoxos narrativos e existenciais, em virtude das inúmeras vivências do Artista, não se observa nenhum paradoxo na apreensão literária dos valores do sertão. No desenrolar da narrativa roseana, o espaço do Sertão anula as imperfeições da memória, não admite o paradoxal, a mácula, quando o assunto diz respeito a ele mesmo, porque o espaço desse dito Sertão é totalizador, não se deixa pensar dentro de um tempo abstrato e fluídico. Esse espaço comanda o fluir da narrativa, tornando-se, o Sertão, o sujeito da ação; espaço vivo, graças à paixão que o Artista lhe devota; espaço vivo de um solitário indivíduo que alcançou o cogito(3) da consciência pura.
“Apenas alguém para quem o momento nada significa, para quem, como eu, se sente no infinito como se estivesse em casa, (...), somente alguém assim pode encontrar a felicidade e, o que é ainda mais importante, conservar para si a felicidade. Au fond, je suis un solitaire” (Guimarães Rosa).
Espaço vivo, refletor de uma infância rica e solitária; espaço que permaneceu intacto nas recordações do homem, na recusa de apagá-lo do presente; Sertão endeusado e retomado sob forma de ficção poética; Sertão sempre revisitado nos sonhos e nas recordações; Sertão labiríntico onde apenas se encontra à vontade o personagem-narrador, dentro de seu narrar. Ao Artista não interessa ser ou não entendido; as aventuras de Nhô Augusto são narradas para si mesmo, porque Nhô Augusto é apenas uma justificativa de enredo narrativo. Interessa-lhe mais poetizar o espaço do sertão, trazer novamente ao coração as lembranças do passado, nas quais se misturam verdades e matéria poética.
“Eu sou antes de mais nada um "homem do sertão"; e isto, não é apenas uma afirmação biográfica, mas também e nisto pelo menos eu acredito firmemente, que ele, esse "homem do sertão", está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa. (...) Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim um símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo” (Guimarães Rosa).
O sertão foi seu primeiro universo e seu verdadeiro universo, e o que veio depois não o satisfez realmente. Não se encontra satisfação interior em um mundo refletor de hipocrisias, e o mundo que circunda o Sertão roseano, sem afetá-lo inteiramente, reflete a degradação do homem moderno (desde o século XVI), distante temporalmente dos valores irretocáveis da Antiguidade. O narrador roseano de A Hora e Vez de Augusto Matraga (já transitando para o pós-moderno) transporta-se, ao longo de sua narrativa, até "o país da Infância imóvel" (Bachelard), de onde recupera, por meio da nostalgia, os tesouros de um espaço verdadeiro, porque suas lembranças são verdadeiras. Sua antiga felicidade sertaneja é verdadeira. As histórias de grandes homens ou de violentos senhores-de-terra são verdadeiras, porque se encontram registradas nas recordações, não fazem parte da memória. São a verdade dos sentimentos, não são a verdade da memória histórica, replena de falsos testemunhos.
Bachelard, como filósofo, procura interpretar as imagens da casa, tendo "o cuidado de não romper a solidariedade da memória e da imaginação", aspectos racionais da realidade. Os teóricos da literatura poética dignificam mais as recordações do Poeta. Bachelard diz que "a casa abriga o devaneio, protege o sonhador, permite sonhar em paz"; a casa-Sertão de Guimarães Rosa só se faz verdadeira graças ao devaneio, ao sonho do sonhador somado às recordações (de novo ao coração). Bachelard diz que "os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade". O objetivo do narrador roseano não é a aprovação dos valores sertanejos (matéria épica), é mais importante realçar os valores que marcaram esse povo em sua profundidade. Por isto, o Artista sonha em paz, quando sonha o Sertão, porque esse sonho valoriza um espaço que lhe é caro, vivenciado dentro de um clima de sonho (Sonho dentro do sonho). Suas recordações se encontram ancoradas nesse Sertão de sonho ou ficção poética, matéria que integra pensamentos, lembranças e imagens literárias. Nessa integração se sustenta o retorno de Nhô Augusto, pautado por um discurso intrincado, no qual a realidade se encontra modificada pelo crivo de sentimentos interiorizados. Nesse discurso, vale mais a criatividade poética, mesmo que esta criatividade apareça dentro dos moldes ficcionais. Nesse discurso, o universo sertanejo aparece fragmentado, subjetivo, singular, porque o narrador se enreda em seus próprios devaneios e circunlóquios, alheio à matéria focalizada. O Sertão emerge instantâneo, imobilizado e complexo, do ponto de vista mágico do Poeta, não do Ficcionista.
É Guimarães Rosa quem fala: "Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade". Em suas narrativas, se unem a criação poético-ficcional e a realidade, simplesmente porque o Sertão roseano (Sertão que passou pelo selo do devaneio a partir da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, que teve seu momento de alta inspiração em Grande Sertão: Veredas, e que foi imaginado criativamente nas obras posteriores do autor) é um recanto de pura poesia. Sertão poético, espaço poético, onde as recordações (interferência lírica) suplantam a objetividade da memória. Se a casa abriga o devaneio, o Sertão abriga o devaneio de quem recorda. Sertão imperecível.
O Sertão das Gerais foi a força do indivíduo Guimarães Rosa, sustentando-o "através das tempestades do céu e das tempestades da vida" (Bachelard). O sertão mineiro como "corpo e alma": corpo, como realidade de vida; alma, enquanto realidade poética. Sertão-berço, sertão-casa, sertão-mundo; sertão fechado, agasalhado, protegido no seio de uma outra casa: seu próprio interior. Ele vivenciou inúmeras fases/faces de vida, "jogado no mundo", mas não perdeu o contato com o bem-estar primitivo do colo. Enfrentou a separação, saindo "fora do ser da casa"; aceitou mudanças de valores, tornando-se citadino e moderno, mas negou-se a romper definitivamente com os valores da antiga e primeira morada. Eis a força de sua temática poético-narrativa.
As reminiscências do passado, em forma de ficção poética, mostram que o aconchego do berço mantiveram a infância do Artista imóvel em seus braços. O Sertão roseano (segundo segmento da narrativa em questão) como compartimento de recordações: todos os cantos e recantos bem caracterizados; uma vida de interiorização e resgate poético de um passado que se faz presente, quando se quer paralisar o tempo que passa. Lugar que "retém o tempo comprimido", prelúdio de silêncio que antecede o instante de poesia.
As imagens do texto recuperam esse tempo: são imagens conotativas, são a percepção do sertão poético, espaço opaco e gratuito, pelo qual se vislumbram os questionamentos sócio-existenciais de um escritor paradoxal (sertanejo e citadino), obrigando-se a transferir para seu personagem Nhô Augusto seus espantos e descobertas supra-reais. Ele retoma o passado, ou seja, recorda sua antiga morada, mas camufla esse retomar, ao transferir para Nhô Augusto, personagem aparentemente central, o privilégio de nascimento e glória, o privilégio de ser nato de um mundo imaculado. Narrador paradoxal, Artista paradoxal, porque não é somente a história de Nhô Augusto que se sobressai; sobressai-se um discurso narrativo insólito, ou melhor, uma narração, uma enunciação, em que as palavras pesam mais; sobressai-se mais a expressividade da narração, a declaração subentendida de que o narrador da estória não se encontra longe da matéria focalizada; sobressai-se mais o fato de o Artista ter muita intimidade com aquele espaço, e, assim, a narração o representa no aspecto profundo de seu próprio ser.
A narração, discurso das palavras, expressa o ficcionista no plano das probabilidades de vida; a narrativa, que reproduz o personagem, é a ficção enquanto reprodução da realidade, ligada ao discurso das coisas. Por isto, as imagens do texto são também paradoxais: imagens imitativas (o referencial, a percepção dos objetos reais) mesclam-se e se opõem às imagens conotativas (a percepção do literário).
Se há paradoxos narrativos e existenciais, em virtude das inúmeras vivências do Artista, não se observa nenhum paradoxo na apreensão literária dos valores do sertão. No desenrolar da narrativa roseana, o espaço do Sertão anula as imperfeições da memória, não admite o paradoxal, a mácula, quando o assunto diz respeito a ele mesmo, porque o espaço desse dito Sertão é totalizador, não se deixa pensar dentro de um tempo abstrato e fluídico. Esse espaço comanda o fluir da narrativa, tornando-se, o Sertão, o sujeito da ação; espaço vivo, graças à paixão que o Artista lhe devota; espaço vivo de um solitário indivíduo que alcançou o cogito(3) da consciência pura.
“Apenas alguém para quem o momento nada significa, para quem, como eu, se sente no infinito como se estivesse em casa, (...), somente alguém assim pode encontrar a felicidade e, o que é ainda mais importante, conservar para si a felicidade. Au fond, je suis un solitaire” (Guimarães Rosa).
Espaço vivo, refletor de uma infância rica e solitária; espaço que permaneceu intacto nas recordações do homem, na recusa de apagá-lo do presente; Sertão endeusado e retomado sob forma de ficção poética; Sertão sempre revisitado nos sonhos e nas recordações; Sertão labiríntico onde apenas se encontra à vontade o personagem-narrador, dentro de seu narrar. Ao Artista não interessa ser ou não entendido; as aventuras de Nhô Augusto são narradas para si mesmo, porque Nhô Augusto é apenas uma justificativa de enredo narrativo. Interessa-lhe mais poetizar o espaço do sertão, trazer novamente ao coração as lembranças do passado, nas quais se misturam verdades e matéria poética.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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