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quarta-feira, 10 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: MUNDO PERFEITO x MUNDO INACABADO


GUIMARÃES ROSA: MUNDO PERFEITO x MUNDO INACABADO

NEUZA MACHADO



O narrador de Guimarães Rosa de A Hora e Vez de Augusto Matraga procura valores humanos autênticos em seu momento e não os encontra, conhece um mundo perfeito já distanciado da realidade moderna e, graças ao poder das recordações, procura significar esse mundo e consegue em determinados trechos da narrativa, mas sua própria fragmentação interior, fragmentação existencial de indivíduo, ligado também à movimentação histórica, o desvia para um final discursivo, questionador e poético. Colocando o narrador em evidência, o ficcionista moderno transforma o herói Nhô Augusto em joguete do destino, submete-o às exigências de uma ficção-arte refletora de uma modernidade sem rumo.

“Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos, depois, arraiais brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.”

“― Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com Deus!...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

A trajetória de vida do personagem repete a trajetória existencial do narrador enquanto face ficcional do Artista. Este é proveniente de um espaço sócio-substancial moderno, mas que conserva um elevadíssimo grau de primitividade. O poder do narrador roseano é plurissignificativo, pois é possível observar nele as diversas fases/faces de poder do Homem e do Mundo. O alter ego do escritor moderno analisa esse poder, que é seu próprio poder, enquanto refletor de uma sociedade indefinida e contraditória, ao mesmo tempo agrícola e burguesa. O sertão mineiro do século XX, em sua concretude, é um espaço conflituado, de onde, em princípio, o narrador procura recuperar unicamente o universo comunitário de sua matéria de análise, servindo-se da memória. Nos primeiros parágrafos da narrativa, percebe-se tal intenção. Ele apresenta o sertão que se insere em seu momento sócio-substancial, mas, ao mesmo tempo, apresenta a matéria mítica existente nesse mundo, remanescente de um mundo primitivo, já distanciado no tempo. O mundo roseano de A Hora e Vez de Augusto Matraga é um núcleo perfeito, e seu personagem também, mas a ótica do narrador se encontra fragmentada, e seu personagem sofre as variações dessa fragmentação que se evidencia posteriormente mediante um discurso insólito, mesclado (trovas, exclamações, indagações, poesia e prosa). É o discurso roseano que faz a mediação entre o mundo perfeito e mundo inacabado; é o discurso que evidencia o conflito do narrador moderno, indivíduo problemático cercado por uma sociedade desestruturada. Por isto, o narrador abandona o tom oral normativo do início, instaurando o conflito narrativo (medos e questionamentos da autocrítica burguesa).

“Em meio à plenitude de vida, e através dessa plenitude, o romance dá notícia da própria desorientação de quem vive” (Walter Benjamin)

A desorientação do narrador de Rosa, personagem moderno, se caracteriza pela desorientação verbal, discurso diferente e agressor, se penso nos estranhamentos lingüísticos, distantes dos padrões normativos. "Não me submeto à tirania da gramática”, diz Rosa a Lorenz. Seu narrador também não se submete, porque não se trata mais de desenvolver o ato metódico de contar uma estória acontecida, mas preencher os vazios de uma narrativa insólita, na qual os inesperados ocorrem sem que o narrador os conheça, mas que são criados e idealizados pelo escritor pós-moderno. A narrativa é insólita, e os inesperados ocorrem, porque o narrador roseano foi obrigado a criar novas atitudes discursivas que representassem as faces desencontradas da decadente sociedade moderna, sociedade de aparências. Descobrindo o poder da palavra multifacetada da pós-modernidade, ele descobre o poder do discurso ficcional como representante de um mundo diferente, porque mais verdadeiro em seus questionamentos. Assim, desempenha um papel diante dos leitores e, implicitamente, exige que os observadores de seu verdadeiro eu o levem a sério, porque ele levou a sério a impressão que quis transmitir. O narrador de Rosa impõe sua ótica, pede aos leitores que acreditem nos atributos de seus personagens e na grandeza desse Sertão que é somente dele; exige que se ouça a sua voz para além das exigências sociais. Se o sertão, em sua concretude, não é exatamente assim, o Sertão de sua representação é o que ele idealizou. O narrador-ator, personagem-narrador, se movimenta à vontade nesse espaço idealizado, porque está consciente da verdade que deseja transmitir, está convencido "de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade” (Erving Goffman)

“Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca” (Guimarães Rosa – Entrevista).

Mundo autêntico, porque as recordações são autênticas. O leitor também acredita na autenticidade desse mundo, porque acredita naquele que o projetou. É preciso provir do sertão e ao mesmo tempo alcançar o respeito do grupo, para projetar esse sertão, legitimá-lo, impingi-lo a uma determinada classe (que o rejeitaria de outro modo), sem a ocorrência de uma ruptura. Provindo do sertão, aceito em um reduzido grupo de altíssimo teor intelectual, demonstrou não ter-se identificado completamente com a sociedade moderna que o adotou (ou foi adotada por ele). Enquanto participante ativo de uma determinada realidade social, envolveu-se, identificou-se exteriormente com o meio que o acolheu, assumiu diversos papéis, mas não rompeu com seu espaço de origem, exaltando-o na ficção.

Não houve ruptura na representação, porque sua personalidade ficou intacta. Não houve embaraços, porque ele conseguiu separar as suas diversas faces em papéis diferentes aceitos pela sociedade. A sua influência ultrapassou os limites do exigido, graças a sua capacidade criativa. O ficcionista fez seu narrador-personagem representar um papel que poderia levá-lo ao descrédito. Confiou em sua criatividade e venceu. Venceu a probabilidade de ruptura com o meio social; dominou o jogo da representação e seus leitores; fez seu verdadeiro eu irromper-se, representando sua face sertaneja. A representação foi autêntica e transmitiu impressões reais, informações que subjaziam em suas recordações e que foram recriadas sem falsas interferências.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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