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sexta-feira, 26 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: O CARISMA DO PERSONAGEM - 10


GUIMARÃES ROSA: O CARISMA DO PERSONAGEM - 10

NEUZA MACHADO



Por ora, o Artista, ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a inação vital de seu personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o do fracasso de sua vida passada, prenunciando-lhe a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da narrativa, seu narrador ainda se recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda no interior do tempo linear. Mas o escritor já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa, transformando, gradativamente, o narrador memorialista (W. Benjamim) em narrador moderno.

Ao elaborar a face carismática do personagem, ainda sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma zona dogmática, que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria pessoa por intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na zona espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer parte de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum a todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o personagem passa a trabalhar para os pretos que o salvaram; ele está submetido às leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento), ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de criança.

Enquanto durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto mítico-social, Nhô Augusto — o rompente, o matador —, induzido por seu narrador memorialista, negou as coisas do espírito, no aspecto místico-cristão. O seu cotidiano de Todo-Poderoso distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas da religião. Na segunda fase, antigas orientações espirituais vêm à tona, transformando-o num homem religioso.

De acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito, segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela orientação cristã) promoveria o refluir do tempo vivido, permitindo novas formas conceituais do ser; e a máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do conceito de divindade, é a carismática.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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