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segunda-feira, 22 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: MEMÓRIA x RECORDAÇÃO - 6


GUIMARÃES ROSA: MEMÓRIA x RECORDAÇÃO - 6

NEUZA MACHADO



Os narradores das narrativas de Sagarana captam essa matéria, replena de valores primitivos, subjacente numa região onde as normas de vida continuam ainda semelhantes às normas de vida das antigas comunidades. O narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga, por exemplo, se propõe a contar a vida heróica de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.

Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:

“O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer a autoridade alegada pelos detentores do poder”.

Neste duplo aspecto, organizam-se as sequências ficcionais de A Hora e Vez de Augusto Matraga: a narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado e a narrativa em que estas experiências são negadas por um outro mundo, abalado por sucessivas e inesperadas violências.

Graças a esta dualidade, este texto ficcional de Guimarães Rosa atinge um plano universal de raras proporções: capta a incerteza social que envolve coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e de repente se percebe que o espaço apresentado é o próprio mundo, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.

Penso esta narrativa de Guimarães Rosa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) como refletora da burguesia periférica brasileira. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa mediatizado pelo narrador é um ponto de vista burguês. Vê-se, nas primeiras sequências, o porta-voz das experiências do Sertão, mas posteriormente passa a representar uma classe social. Mesmo ao demonstrar uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista, deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de uma localidade que representa suas raízes de vida. Se o seu narrador possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse lugar especial, possui também consciência para observar que o mesmo se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.

Weber questiona: "Por que os homens obedecem?"

Em primeiro lugar, afirma, há a autoridade do ontem eterno. Os subjugados se conformam com o domínio tradicional exercido pelo Patriarca. Em princípio, Augusto Esteves se assemelha à autoridade do ontem eterno, porque continua uma tradição. Seu poder foi herdado do pai, o Coronel Afonsão das Pindaíbas e do Saco-da-embira.

O narrador apresenta ao leitor uma pequena comunidade e o herói desta comunidade, ambos em vias de se degradarem.

Eis o conflito do narrador: a degradação não está no espaço apreendido (sua sensibilidade capta a pureza remanescente dos antigos núcleos primitivos); a degradação se encontra em si próprio, porque, porta-voz que é do Artista, conhece as várias faces/fases do Homem moderno.

Eis o conflito da narrativa: a memória (matéria épica) se contrapõe às recordações de um mundo para sempre perdido (matéria romanesca). O que foi transmitido por sucessivas gerações se encontra agora em vias de extinção. O narrador se dá conta, submetido agora ao repouso fervilhante do Artista, de que esta comunidade existe apenas em suas recordações, em seus devaneios infinitos. O narrador é o representante desta comunidade primitiva e ao mesmo tempo burguesa. Por isto, o narrador é primitivo e burguês, porque se desenvolve na dialética daquele que o idealizou (e que já alcançou o cogito(2), já verticalizando seus pensamentos em direção ao cogito(3) da consciência pura), mas cujas origens se ligam às comunidades fechadas do passado.

Assim como Nhô Augusto herdou a autoridade do ontem eterno, o narrador em questão herdou esta autoridade, como duplo de um Sábio que narra suas próprias experiências de vida como herdeiro de um nome sertanejo. Estas experiências não são pessoais enquanto curso de vida, são verdadeiras, são experiências transcendentais, irracionais, já ancoradas num tempo suspenso entre o antes e o depois; experiências de quem se coloca como porta-voz da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão, dominados por Senhores-de-terra poderosos.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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