GUIMARÃES ROSA: A RECRIAÇÃO DO EU FICCIONAL
NEUZA MACHADO
NEUZA MACHADO
Neste capítulo, passo a verificar a relação do ficcionista da realidade sertaneja com a sua obra, considerando aqui que a obra abrange, em sua totalidade, mais especificamente, o sertão da infância, das recordações da infância. A obra literária de Guimarães Rosa tem com o sertão da infância, das recordações, uma relação interna indissolúvel, já que foi dito que o sertão é invenção da obra roseana, e o contrário também vale: o sertão roseano criou a obra literária roseana.
Nestas páginas iniciais, desenvolverei um pensamento centralizado na "ambiência do indivíduo moderno na representação do eu", repensando as idéias de Erving Goffman, antropólogo americano, contando também com a fenomenologia de Gaston Bachelard, em O Direito de Sonhar, sobre o tema das máscaras, as quais põem em prática a vontade de dissimulação do ser que se mascara, para alcançar segurança em seu meio social.
Especificamente, detenho-me no comportamento do narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga, narrativa de transição para o cogito(2) (cogito transitivo, propenso a dialetizar as idéias vitais - pré-estabelecidas), porque, de acordo com o meu particular ponto de vista, este personagem subsiste como máscara, a primeira máscara, encobrindo a face ficcional do escritor, cidadão moderno mas nato do sertão. Devo esclarecer que os primeiros narradores do corpus de Sagarana representaram o repórter, dando as notícias do sertão e enfatizando as belezas naturais, exibindo um mundo comunitário, pitoresco, aos leitores da cidade.
Não intenciono analisar o comportamento humano por uma perspectiva sócio-antropológica, mas examinar hipoteticamente as atitudes e reações do criador literário, em seu meio comunitário, pelo prisma de seu eu ficcional. Assim, observarei uma das funções de Guimarães que, entre as várias que exerceu, o fez respeitado em seu núcleo social: sua atuação como escritor renomado e sua inegável influência, realçando, por meio da literatura, a grandeza do sertão mineiro, espaço rejeitado pela elite da sociedade.
Este estudo realçará a atuação do narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga, mas enfatizará com maior vigor a influência social do Artista como cidadão moderno, possuidor de atributos que o fazem respeitado, indutor de boas impressões, detentor de grande prestígio ante o grupo que o circunda, mas que, mesmo alcançando altas honrarias na escala social, deseja projetar, segundo sua ótica reminiscente, as qualidades ímpares de seu espaço de origem sob a proteção do discurso ficcional. Observarei, assim, o agora indivíduo impondo a sua visão do sertão ao grupo que o cerca, direcionando o olhar (do leitor), encenando um espetáculo em que ato principal é demonstrar (e recriar) o valor de uma região não valorizada socialmente. O escritor, ante um núcleo social exigente (etnocêntrico), já alcançou credibilidade e pode conscientemente desempenhar seus diversos papéis, ou dissimular-se debaixo de suas diversas máscaras, mas pode também transmitir uma parte da autenticidade de seu próprio eu (sob a proteção da ficção), como homem originário de um espaço rude, mas verdadeiro, se comparado com a degradação da moderna sociedade dominante.
“Entrincheirado atrás da máscara, o ser mascarado está ao abrigo da indiscrição do psicólogo. Rapidamente encontrou a segurança de um semblante que se fecha” (Bachelard).
O sujeito do sertão mineiro (aquele que recebeu ao nascer valores comunitários antigos, mas posteriormente evoluiu-se socialmente) não consegue adaptar-se aos conceitos de vida da modernidade. Assimila valores degradados, dissimula-se, servindo-se de diversas máscaras, ficcionais ou não, mas permanece consciente de suas origens. Entrincheira-se atrás de um ou vários disfarces cotidianos, os quais o farão aceito pelo grupo citadino que o admitiu em seu meio. Socialmente, há a vontade de ser outro, de desvincular-se dos valores do berço, de ascender-se infinitamente na escala social e cultural da vida moderna, mas, por baixo da máscara, permanece o rosto primitivo, consciente de suas origens e das tradições que o marcaram.
O anteriormente sujeito, submetido às determinações do mundo, em um momento de sua trajetória de vida, deixou seu rosto sertanejo para trás e adquiriu diversas faces que o introduziram na vida moderna. Essas faces compuseram os diversos talentos adquiridos com os estudos. Esse sujeito do sertão, ou se quiserem, nato de um pequeno burgo incrustado no sertão, transformou-se em médico, soldado, diplomata, poliglota, escritor, graças a sua incomum capacidade de recriação ficcional. Mas houve um momento, nesse trajeto do tempo vital (momento ativado pelo repouso fervilhante, o qual antecede o cogito(3) da individualidade consciente), que sentiu o desejo de retomar o antigo rosto (primitivo), e isto já não seria possível dentro de sua diacronia de vida, mas viável mediante as forças criadoras da imaginação.
Valendo-se da ficção, demonstrou sua face verdadeira, seu rosto de homem sertanejo, procurando convencer os detentores do poder intelectual de seus verdadeiros atributos, enfim, despojou-se, demonstrando seu verdadeiro eu, oculto por toneladas de exigências modernas, dando-se a conhecer intimamente. Com esta atitude, representou um papel que poderia desacreditá-lo, mas, graças a sua influência e a sua criatividade, venceu a probabilidade de ruptura com o meio social.
O Artista do sertão brasileiro realizou a dissimulação por intermédio de seus narradores e personagens da primeira fase criativa, ostentando o sertão da infância (muito bem realçado entre o oculto e o visível), ao mesmo tempo em que se resguardou de uma provável crítica ferina, se não tivesse realizado o encobrimento de suas próprias intenções com eficiência.
Esse disfarce, realizado sob o patrocínio da magia da máscara, ou seja, realizado com o apoio da criação literária, projetou verdades profundas que jamais seriam captadas em textos simplesmente formais. Observa-se, ao longo da obra roseana, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, uma dissimulação invertida (só concebível no espaço das mágicas probabilidades ficcionais), em que o Artista, sob a roupagem de seus personagens da primeira fase autenticamente criativa, ou segunda fase no cômputo geral de sua obra, readquiriu sua face de origem (seu rosto primitivo) e dissimulou-se ante o grupo social que o abrigou e o enalteceu. A vontade de dissimulação, orientada pela intuição ficcional, ao invés de direcioná-lo no sentido de desejar ser outra pessoa, como aconteceu antes no plano social, inspira-o a um retorno, inspira-o a ser o seu eu verdadeiro, somando-se a esse eu de origem todos os outros eus adquiridos na sociedade moderna. "Uma fenomenologia da dissimulação", segundo Bachelard, "deve estudar a magia da máscara, ao invés de estudar a dissimulação pura e simplesmente; deve remontar à raiz da vontade de ser outro que se é"; mas o Artista (aquele produtor de verdadeira Arte Literária), distanciado da psicologia da dissimulação usual, já superou e ultrapassou esta vontade de ser outro e agora, novamente, deseja ser ele mesmo.
A vontade de ser outro ficou no passado, situada nos primeiros anos vividos em uma outra cultura, totalmente diferente da recebida ao nascer. A vontade de ser outro ficou no passado, quando ele se propôs a alcançar o cogito(2) de sua escalada ao Conhecimento. Agora, instalado comodamente no cogito(3), plano do ser-em-si ou do indivíduo consciente, a dissimulação se inverte pelo poder da magia dos pensamentos singulares, e o agora indivíduo deseja ser ele mesmo, ou melhor, não há motivos que o impeçam a retomar ficcionalmente seu rosto primitivo. Consequentemente, o Artista pode representar diversos papéis na sociedade elitista e, mesmo integrado ao grupo citadino, posteriormente, pode também recuperar sua face autêntica, verdadeira, sob o aval (a proteção) da criação literária. E isto só se tornou possível, porque o indivíduo Guimarães Rosa conseguiu ser convincente nessas representações e assim ser aceito pelo grupo do mundo da modernidade.
“A partir do momento em que queremos distinguir o que se dissimula sob um rosto, a partir do momento em que queremos ler em seu rosto, tomamos tacitamente esse rosto por máscara” (Bachelard).
No mundo da modernidade, o homem (submetido à perda da identidade heróica) se dissimula em diversas máscaras. Mesmo sendo algo artificial, a máscara é uma espécie de abrigo. Por esta ótica, cada personagem roseano da primeira fase criativa (a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga), sob a proteção da realidade ficcional, é uma máscara de seu criador, escritor do século XX, o qual, ao invés de velar, desvela seu próprio íntimo. Posso asseverar, com a contribuição da fenomenologia Bachelardiana, que o singular escritor, durante sua trajetória de vida, despojou-se de seu rosto sertanejo ao aceitar as máscaras da modernidade; mas, ficcionalmente, num momento qualquer, momento de repouso ativado, resolveu retornar ou retomar o rosto de origem. Os personagens da primeira fase criativa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) são na verdade máscaras virtuais, desvelando o próprio devir da dissimulação; essas máscaras virtuais, no âmbito da literatura, transformam-se em rostos ficcionais de uma realidade autêntica, porque são criação de um indivíduo que já iniciou sua escalada na direção da consciência pura, ancorada no último patamar do tempo do pensamento ainda ligado à realidade vital. Essa consciência já não necessita de máscaras que a escondam, que a abriguem das indiscrições alheias. Assim, os personagens iniciais da primeira fase autenticamente criativa de Guimarães Rosa são máscaras susceptíveis de se realizarem como rostos, já predeterminadas como autênticas, fundamentadas em condições de se realizarem.
Esses rostos ficcionais ou máscaras virtuais mostram o desejo da contradissimulação, ou seja, a "sinceridade da dissimulação, o natural do artificial", como o quer Bachelard. As imagens retratadas refletem a consciência singular do Artista moderno, direi melhor, o Artista da estética pós-modernista (se penso no século XX como um século de transição de Eras), originário de um mundo comunitário, primitivo, mas que alcançou diferentes e diversas experiências de vida em um mundo em que a comum-unidade já não existe, onde o ser se encaminha cada vez mais em direção à inevitável dissolvência dos valores verdadeiros. Esse indivíduo, enquanto Artista, ousou rejeitar as próprias dissimulações cotidianas, para readquirir uma espécie de máscara primordial, sob a aparência de seus personagens. Nesse caso específico, prefiro usar a terminologia máscara primordial, porque agora, substancialmente, não há como recuperar o primitivo rosto sertanejo.
O ser, agora indivíduo, novamente se dissimula na sua contradissimulação, porque, mesmo sendo senhor absoluto de um plano da consciência, ligado ao tempo do pensamento a que Bachelard denomina como cogito(3), ele não pode negar o já adquirido socialmente e culturalmente. Isto seria negar seu desempenho na sociedade, seria negar a sua própria influência sobre o grupo citadino, ou mesmo, seria negar sua consciência tridimensional, sustentada pelos três cogitos que compõem a existência racional. Negar a sua condição atual na sociedade, seria o mesmo que negar a sua vontade de novamente ser sertanejo.
As máscaras primordiais e ficcionais do universo da primeira fase criativa são a garantia de segurança emocional do Artista sertanejo que convive com os valores da modernidade. Disfarçado de narrador do sertão, ou mesmo diluído em seus personagens, ele retoma seu mundo de origem e se protege das prováveis críticas depreciadoras. Essas máscaras, que garantem sua segurança emocional no mundo moderno, têm a vantagem de se situar num plano diferente do plano da história contínua. A máscara virtual, diferente da máscara real, que "não se engaja verdadeiramente num processo de dissimulação", que é a pura negatividade do ser, que permite o mascarar-se ou ser desmascarado, na fenomenologia do ser que se dissimula, representa o desejo de alcançar a segurança total da máscara. Enquanto diversas máscaras habituais, são "incessantemente tomadas e retomadas, sempre incoativas” (Bachelard), sempre prontas a um novo começo de proteção. O ficcionista, indiscutivelmente criativo, se protege das situações insólitas do cotidiano moderno, recriando o sertão da infância e todos os seus habitantes. Esses habitantes do sertão, recriados, são partículas íntimas de seu interior sertanejo. A dissimulação do Artista Literário, sertanejo e pós-moderno, é uma conduta intermediária, oscilando entre o oculto e o visível. O Artista se oculta nos meandros de sua infindável narrativa, ou seja, em todas as suas narrativas da fase criativa, ao mesmo tempo em que revela sua face verdadeira.
Posteriormente, mostrando o sertão da infância, já transmutado pela matéria poética das recordações, ele se sente intimamente protegido e reconfortado. Ele agora está confortavelmente instalado no cogito(3) da individualidade consciente e não pretende ultrapassar esse limite, que ainda possibilita uma saudável convivência com o grupo da alta intelectualidade. Subir mais um degrau seria ultrapassar os limites vitais e se projetar no vazio da pura espiritualidade, seria propiciar uma cisão irreversível com o mundo dos valores aceitáveis, o mundo dito normal. Logo, é um indivíduo ainda aceito pelo grupo, ainda não marginalizado, que se vislumbra na última fase, mesmo apreendendo-se, nesta última fase, narrativas de alto teor de insolidez, tais como "Meu tio, o Iawaretê", "Reboldra", "Mais meu Sirimim" e outras que compõem o corpus de Essas Estórias, Tutaméia e Ave, Palavra.
Os personagens da primeira fase criativa (não estou a referir-me à primeira fase ligada à imaginação formal, imaginação linear, registrada nas narrativas de Sagarana, excetuando-se naturalmente a última narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga) fornecem a máscara primordial do ficcionista do sertão. É sua fisionomia de homem do sertão que se encontra dissimulada ao longo das narrativas A Hora e Vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas; são suas vivências primeiras que se destacam e se escondem; são fatos acontecidos e desrealizados pela ação do tempo, mas poetizados no plano das recordações e dos sonhos bem sonhados. A Hora e Vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas marcam um momento de mudança narrativa, revelando a relação de profunda integração do escritor com sua obra e, por acréscimo, com o sertão material.
“As máscaras são sonhos fixados e os sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas que nascem, representam sua comédia ou seu drama, e morrem” (BURAUD, Georges. In.: BACHELARD, op. Cit.)
Para penetrar-se "na zona onde os acordos são incessantes"(Bachelard), ou seja, ao centro no qual se desenvolve a verdadeira dialética da simplificação e da multiplicidade, segundo Bachelard, é necessário juntar a máscara inerte ao rosto vivo. O rosto vivo fornece os traços da fisionomia, possibilita a interpretação da máscara virtual, e o ato de interpretar a máscara virtual obriga o intérprete a penetrar numa dimensão diferente, na qual a formação da idéia e a sua representação "permutam infindavelmente suas ações" (Bachelard).
Na fase seguinte, a partir de Primeiras Estórias), a dialética da verdade e não-verdade se instaura nos escritos de Guimarães Rosa. Verdade e fantasia se misturam sob os ditames dos sonhos poéticos-ficcionais. Os personagens (verdades de um sonhador eu sertanejo) são máscaras profundamente sentidas pelo ficcionista e transmitidas ao leitor, compactuador e colaborador de seu ato de narrar; assim, são máscaras virtuais ativas, recriadas nos momentos de repouso fervilhante e concretizadas no instante seguinte da consciência singular, livres das conceituações do tempo vital. Essas máscaras ativas, ficcionais, se adaptam ao demiurgo que as criou, pois este, à semelhança do psiquiatra que "deve viver a máscara do doente, como deve viver os sonhos do doente" (Bachelard), deve ele também viver a máscara de seus personagens, como deve viver também os sonhos dos personagens.
Nessa zona intermediária, o demiurgo detectou sua própria realidade psíquica de homem que se quer sertanejo. Servindo-se da ficção, reformou e formou sua própria máscara virtual, ou seja, o rosto, verdadeiro, do sertanejo que poderia ter sido no âmbito das probabilidades de vida; extraiu do passado, pela imaginação, verdades que estavam escondidas; pode transformar essas verdades em discurso ficcional, recriando as imagens do coronel autoritário, dos jagunços animalescos, ou mesmo, do cidadão do sertão, oscilando entre o primitivo e a pós-modernidade.
“Que nos seja permitido assinalar de passagem a importância de uma fenomenologia do artificial. O ser que quer o artifício tem necessidade de uma tomada de consciência muito nítida. Essa tomada de consciência é tanto mais vigorosa quanto mais fluente é seu objeto. No problema do ser que se dissimula vê-se em ação a manutenção de uma consciência de dissimulação. Deve-se reconhecer, pois, nas interpretações de máscaras, maior estabilidade do que em outros fantasmas” (Bachelard).
Oferecer autenticidade ao artificial e inseri-lo no mundo dos fenômenos exige capacidade criativa. A criação literária, para manifestar-se com grandeza, necessita de um talento criativo extraordinário, reformulador de suas próprias realidades psíquicas. O Artista (aquele produtor de autêntica Arte Literária), agora indivíduo consciente, não aceita mais a convivência insossa com suas máscaras reais. Retomar ficcionalmente o rosto primitivo, diluindo-o em seus personagens, é um exercício de poder. É o poder daquele que se retrocede ficcionalmente ao passado e retoma o início de sua trajetória de dissimulação. Recupera conscientemente a máscara virtual, retirando-a do passado sob a forma de narrativa, e fragmenta-a em diversas novas máscaras. Cada personagem revela parcialmente um pouco do que foi visto e vivenciado nas origens. Cada personagem é parte viva de suas primeiras e verdadeiras realidades psíquicas. O Artista tem plena consciência dessa nova e intermitente dissimulação de seu próprio eu. Todos os seus personagens são partículas vivas de seu íntimo, por conseguinte, eles também, máscaras virtuais, passíveis de alcançarem vida estável no plano das probabilidades fenomênicas.
Em meio a suas diversas máscaras sociais, quis (e conseguiu) retomar o rosto da infância, com a colaboração da Arte Literária. Com esta atitude, refortaleceu-se socialmente, idealizando o sertão, recuperando-o sob novas imagens, fornecendo novos traços decisivos para a fisionomia do sertanejo secularmente rejeitado na hierarquização social.
"A máscara nos ajuda a afrontar o futuro. É sempre mais ofensiva do que defensiva. (...) Se forçarmos um pouco as relações entre a figura e o rosto, se integramos a máscara, parece que a máscara pode ser a decisão de uma vida nova. Ela liquidaria de uma vez o ser que se oculta. Seria um motivo para afirmar uma segunda vida, um renascimento. Ainda que se examine o problema de muitas maneiras, é necessário chegar à mesma conclusão: a máscara é um instrumento de agressão; e toda agressão é uma atuação sobre o futuro" (Bachelard).
No decorrer da Entrevista ao alemão Günter Lorenz, Guimarães expõe suas convicções genuinamente verdadeiras. A retomada de seu antigo rosto, sustentada na sua criação literária, conscientizou-o de seu poder individual. Agora, o ser especial, oriundo de um pequeno burgo do sertão, não necessita defender-se do grupo citadino debaixo de diversas máscaras sociais. O escritor (médico, diplomata, soldado, poliglota e outros diversos talentos) sabe que já está temporalmente afastado de suas origens, mas sabe também que já adquiriu o direito de se nomear sertanejo, orgulhosamente afrontando um grupo de intelectuais pernósticos, que, segundo suas próprias palavras, só sabem transmitir “bolas de papel” (Guimarães Rosa). Nesta vida nova, já conceituado pela elite sócio-intelectual e, inclusive, por esse mesmo grupo que finge não perceber a agressão do Artista, liquida de uma vez o que buscou ocultar em anos de convivência com o mundo citadino. Afirma assim uma nova vida, um renascimento, uma adesão aos planos superiores da pura individualidade.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
Nestas páginas iniciais, desenvolverei um pensamento centralizado na "ambiência do indivíduo moderno na representação do eu", repensando as idéias de Erving Goffman, antropólogo americano, contando também com a fenomenologia de Gaston Bachelard, em O Direito de Sonhar, sobre o tema das máscaras, as quais põem em prática a vontade de dissimulação do ser que se mascara, para alcançar segurança em seu meio social.
Especificamente, detenho-me no comportamento do narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga, narrativa de transição para o cogito(2) (cogito transitivo, propenso a dialetizar as idéias vitais - pré-estabelecidas), porque, de acordo com o meu particular ponto de vista, este personagem subsiste como máscara, a primeira máscara, encobrindo a face ficcional do escritor, cidadão moderno mas nato do sertão. Devo esclarecer que os primeiros narradores do corpus de Sagarana representaram o repórter, dando as notícias do sertão e enfatizando as belezas naturais, exibindo um mundo comunitário, pitoresco, aos leitores da cidade.
Não intenciono analisar o comportamento humano por uma perspectiva sócio-antropológica, mas examinar hipoteticamente as atitudes e reações do criador literário, em seu meio comunitário, pelo prisma de seu eu ficcional. Assim, observarei uma das funções de Guimarães que, entre as várias que exerceu, o fez respeitado em seu núcleo social: sua atuação como escritor renomado e sua inegável influência, realçando, por meio da literatura, a grandeza do sertão mineiro, espaço rejeitado pela elite da sociedade.
Este estudo realçará a atuação do narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga, mas enfatizará com maior vigor a influência social do Artista como cidadão moderno, possuidor de atributos que o fazem respeitado, indutor de boas impressões, detentor de grande prestígio ante o grupo que o circunda, mas que, mesmo alcançando altas honrarias na escala social, deseja projetar, segundo sua ótica reminiscente, as qualidades ímpares de seu espaço de origem sob a proteção do discurso ficcional. Observarei, assim, o agora indivíduo impondo a sua visão do sertão ao grupo que o cerca, direcionando o olhar (do leitor), encenando um espetáculo em que ato principal é demonstrar (e recriar) o valor de uma região não valorizada socialmente. O escritor, ante um núcleo social exigente (etnocêntrico), já alcançou credibilidade e pode conscientemente desempenhar seus diversos papéis, ou dissimular-se debaixo de suas diversas máscaras, mas pode também transmitir uma parte da autenticidade de seu próprio eu (sob a proteção da ficção), como homem originário de um espaço rude, mas verdadeiro, se comparado com a degradação da moderna sociedade dominante.
“Entrincheirado atrás da máscara, o ser mascarado está ao abrigo da indiscrição do psicólogo. Rapidamente encontrou a segurança de um semblante que se fecha” (Bachelard).
O sujeito do sertão mineiro (aquele que recebeu ao nascer valores comunitários antigos, mas posteriormente evoluiu-se socialmente) não consegue adaptar-se aos conceitos de vida da modernidade. Assimila valores degradados, dissimula-se, servindo-se de diversas máscaras, ficcionais ou não, mas permanece consciente de suas origens. Entrincheira-se atrás de um ou vários disfarces cotidianos, os quais o farão aceito pelo grupo citadino que o admitiu em seu meio. Socialmente, há a vontade de ser outro, de desvincular-se dos valores do berço, de ascender-se infinitamente na escala social e cultural da vida moderna, mas, por baixo da máscara, permanece o rosto primitivo, consciente de suas origens e das tradições que o marcaram.
O anteriormente sujeito, submetido às determinações do mundo, em um momento de sua trajetória de vida, deixou seu rosto sertanejo para trás e adquiriu diversas faces que o introduziram na vida moderna. Essas faces compuseram os diversos talentos adquiridos com os estudos. Esse sujeito do sertão, ou se quiserem, nato de um pequeno burgo incrustado no sertão, transformou-se em médico, soldado, diplomata, poliglota, escritor, graças a sua incomum capacidade de recriação ficcional. Mas houve um momento, nesse trajeto do tempo vital (momento ativado pelo repouso fervilhante, o qual antecede o cogito(3) da individualidade consciente), que sentiu o desejo de retomar o antigo rosto (primitivo), e isto já não seria possível dentro de sua diacronia de vida, mas viável mediante as forças criadoras da imaginação.
Valendo-se da ficção, demonstrou sua face verdadeira, seu rosto de homem sertanejo, procurando convencer os detentores do poder intelectual de seus verdadeiros atributos, enfim, despojou-se, demonstrando seu verdadeiro eu, oculto por toneladas de exigências modernas, dando-se a conhecer intimamente. Com esta atitude, representou um papel que poderia desacreditá-lo, mas, graças a sua influência e a sua criatividade, venceu a probabilidade de ruptura com o meio social.
O Artista do sertão brasileiro realizou a dissimulação por intermédio de seus narradores e personagens da primeira fase criativa, ostentando o sertão da infância (muito bem realçado entre o oculto e o visível), ao mesmo tempo em que se resguardou de uma provável crítica ferina, se não tivesse realizado o encobrimento de suas próprias intenções com eficiência.
Esse disfarce, realizado sob o patrocínio da magia da máscara, ou seja, realizado com o apoio da criação literária, projetou verdades profundas que jamais seriam captadas em textos simplesmente formais. Observa-se, ao longo da obra roseana, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, uma dissimulação invertida (só concebível no espaço das mágicas probabilidades ficcionais), em que o Artista, sob a roupagem de seus personagens da primeira fase autenticamente criativa, ou segunda fase no cômputo geral de sua obra, readquiriu sua face de origem (seu rosto primitivo) e dissimulou-se ante o grupo social que o abrigou e o enalteceu. A vontade de dissimulação, orientada pela intuição ficcional, ao invés de direcioná-lo no sentido de desejar ser outra pessoa, como aconteceu antes no plano social, inspira-o a um retorno, inspira-o a ser o seu eu verdadeiro, somando-se a esse eu de origem todos os outros eus adquiridos na sociedade moderna. "Uma fenomenologia da dissimulação", segundo Bachelard, "deve estudar a magia da máscara, ao invés de estudar a dissimulação pura e simplesmente; deve remontar à raiz da vontade de ser outro que se é"; mas o Artista (aquele produtor de verdadeira Arte Literária), distanciado da psicologia da dissimulação usual, já superou e ultrapassou esta vontade de ser outro e agora, novamente, deseja ser ele mesmo.
A vontade de ser outro ficou no passado, situada nos primeiros anos vividos em uma outra cultura, totalmente diferente da recebida ao nascer. A vontade de ser outro ficou no passado, quando ele se propôs a alcançar o cogito(2) de sua escalada ao Conhecimento. Agora, instalado comodamente no cogito(3), plano do ser-em-si ou do indivíduo consciente, a dissimulação se inverte pelo poder da magia dos pensamentos singulares, e o agora indivíduo deseja ser ele mesmo, ou melhor, não há motivos que o impeçam a retomar ficcionalmente seu rosto primitivo. Consequentemente, o Artista pode representar diversos papéis na sociedade elitista e, mesmo integrado ao grupo citadino, posteriormente, pode também recuperar sua face autêntica, verdadeira, sob o aval (a proteção) da criação literária. E isto só se tornou possível, porque o indivíduo Guimarães Rosa conseguiu ser convincente nessas representações e assim ser aceito pelo grupo do mundo da modernidade.
“A partir do momento em que queremos distinguir o que se dissimula sob um rosto, a partir do momento em que queremos ler em seu rosto, tomamos tacitamente esse rosto por máscara” (Bachelard).
No mundo da modernidade, o homem (submetido à perda da identidade heróica) se dissimula em diversas máscaras. Mesmo sendo algo artificial, a máscara é uma espécie de abrigo. Por esta ótica, cada personagem roseano da primeira fase criativa (a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga), sob a proteção da realidade ficcional, é uma máscara de seu criador, escritor do século XX, o qual, ao invés de velar, desvela seu próprio íntimo. Posso asseverar, com a contribuição da fenomenologia Bachelardiana, que o singular escritor, durante sua trajetória de vida, despojou-se de seu rosto sertanejo ao aceitar as máscaras da modernidade; mas, ficcionalmente, num momento qualquer, momento de repouso ativado, resolveu retornar ou retomar o rosto de origem. Os personagens da primeira fase criativa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) são na verdade máscaras virtuais, desvelando o próprio devir da dissimulação; essas máscaras virtuais, no âmbito da literatura, transformam-se em rostos ficcionais de uma realidade autêntica, porque são criação de um indivíduo que já iniciou sua escalada na direção da consciência pura, ancorada no último patamar do tempo do pensamento ainda ligado à realidade vital. Essa consciência já não necessita de máscaras que a escondam, que a abriguem das indiscrições alheias. Assim, os personagens iniciais da primeira fase autenticamente criativa de Guimarães Rosa são máscaras susceptíveis de se realizarem como rostos, já predeterminadas como autênticas, fundamentadas em condições de se realizarem.
Esses rostos ficcionais ou máscaras virtuais mostram o desejo da contradissimulação, ou seja, a "sinceridade da dissimulação, o natural do artificial", como o quer Bachelard. As imagens retratadas refletem a consciência singular do Artista moderno, direi melhor, o Artista da estética pós-modernista (se penso no século XX como um século de transição de Eras), originário de um mundo comunitário, primitivo, mas que alcançou diferentes e diversas experiências de vida em um mundo em que a comum-unidade já não existe, onde o ser se encaminha cada vez mais em direção à inevitável dissolvência dos valores verdadeiros. Esse indivíduo, enquanto Artista, ousou rejeitar as próprias dissimulações cotidianas, para readquirir uma espécie de máscara primordial, sob a aparência de seus personagens. Nesse caso específico, prefiro usar a terminologia máscara primordial, porque agora, substancialmente, não há como recuperar o primitivo rosto sertanejo.
O ser, agora indivíduo, novamente se dissimula na sua contradissimulação, porque, mesmo sendo senhor absoluto de um plano da consciência, ligado ao tempo do pensamento a que Bachelard denomina como cogito(3), ele não pode negar o já adquirido socialmente e culturalmente. Isto seria negar seu desempenho na sociedade, seria negar a sua própria influência sobre o grupo citadino, ou mesmo, seria negar sua consciência tridimensional, sustentada pelos três cogitos que compõem a existência racional. Negar a sua condição atual na sociedade, seria o mesmo que negar a sua vontade de novamente ser sertanejo.
As máscaras primordiais e ficcionais do universo da primeira fase criativa são a garantia de segurança emocional do Artista sertanejo que convive com os valores da modernidade. Disfarçado de narrador do sertão, ou mesmo diluído em seus personagens, ele retoma seu mundo de origem e se protege das prováveis críticas depreciadoras. Essas máscaras, que garantem sua segurança emocional no mundo moderno, têm a vantagem de se situar num plano diferente do plano da história contínua. A máscara virtual, diferente da máscara real, que "não se engaja verdadeiramente num processo de dissimulação", que é a pura negatividade do ser, que permite o mascarar-se ou ser desmascarado, na fenomenologia do ser que se dissimula, representa o desejo de alcançar a segurança total da máscara. Enquanto diversas máscaras habituais, são "incessantemente tomadas e retomadas, sempre incoativas” (Bachelard), sempre prontas a um novo começo de proteção. O ficcionista, indiscutivelmente criativo, se protege das situações insólitas do cotidiano moderno, recriando o sertão da infância e todos os seus habitantes. Esses habitantes do sertão, recriados, são partículas íntimas de seu interior sertanejo. A dissimulação do Artista Literário, sertanejo e pós-moderno, é uma conduta intermediária, oscilando entre o oculto e o visível. O Artista se oculta nos meandros de sua infindável narrativa, ou seja, em todas as suas narrativas da fase criativa, ao mesmo tempo em que revela sua face verdadeira.
Posteriormente, mostrando o sertão da infância, já transmutado pela matéria poética das recordações, ele se sente intimamente protegido e reconfortado. Ele agora está confortavelmente instalado no cogito(3) da individualidade consciente e não pretende ultrapassar esse limite, que ainda possibilita uma saudável convivência com o grupo da alta intelectualidade. Subir mais um degrau seria ultrapassar os limites vitais e se projetar no vazio da pura espiritualidade, seria propiciar uma cisão irreversível com o mundo dos valores aceitáveis, o mundo dito normal. Logo, é um indivíduo ainda aceito pelo grupo, ainda não marginalizado, que se vislumbra na última fase, mesmo apreendendo-se, nesta última fase, narrativas de alto teor de insolidez, tais como "Meu tio, o Iawaretê", "Reboldra", "Mais meu Sirimim" e outras que compõem o corpus de Essas Estórias, Tutaméia e Ave, Palavra.
Os personagens da primeira fase criativa (não estou a referir-me à primeira fase ligada à imaginação formal, imaginação linear, registrada nas narrativas de Sagarana, excetuando-se naturalmente a última narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga) fornecem a máscara primordial do ficcionista do sertão. É sua fisionomia de homem do sertão que se encontra dissimulada ao longo das narrativas A Hora e Vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas; são suas vivências primeiras que se destacam e se escondem; são fatos acontecidos e desrealizados pela ação do tempo, mas poetizados no plano das recordações e dos sonhos bem sonhados. A Hora e Vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas marcam um momento de mudança narrativa, revelando a relação de profunda integração do escritor com sua obra e, por acréscimo, com o sertão material.
“As máscaras são sonhos fixados e os sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas que nascem, representam sua comédia ou seu drama, e morrem” (BURAUD, Georges. In.: BACHELARD, op. Cit.)
Para penetrar-se "na zona onde os acordos são incessantes"(Bachelard), ou seja, ao centro no qual se desenvolve a verdadeira dialética da simplificação e da multiplicidade, segundo Bachelard, é necessário juntar a máscara inerte ao rosto vivo. O rosto vivo fornece os traços da fisionomia, possibilita a interpretação da máscara virtual, e o ato de interpretar a máscara virtual obriga o intérprete a penetrar numa dimensão diferente, na qual a formação da idéia e a sua representação "permutam infindavelmente suas ações" (Bachelard).
Na fase seguinte, a partir de Primeiras Estórias), a dialética da verdade e não-verdade se instaura nos escritos de Guimarães Rosa. Verdade e fantasia se misturam sob os ditames dos sonhos poéticos-ficcionais. Os personagens (verdades de um sonhador eu sertanejo) são máscaras profundamente sentidas pelo ficcionista e transmitidas ao leitor, compactuador e colaborador de seu ato de narrar; assim, são máscaras virtuais ativas, recriadas nos momentos de repouso fervilhante e concretizadas no instante seguinte da consciência singular, livres das conceituações do tempo vital. Essas máscaras ativas, ficcionais, se adaptam ao demiurgo que as criou, pois este, à semelhança do psiquiatra que "deve viver a máscara do doente, como deve viver os sonhos do doente" (Bachelard), deve ele também viver a máscara de seus personagens, como deve viver também os sonhos dos personagens.
Nessa zona intermediária, o demiurgo detectou sua própria realidade psíquica de homem que se quer sertanejo. Servindo-se da ficção, reformou e formou sua própria máscara virtual, ou seja, o rosto, verdadeiro, do sertanejo que poderia ter sido no âmbito das probabilidades de vida; extraiu do passado, pela imaginação, verdades que estavam escondidas; pode transformar essas verdades em discurso ficcional, recriando as imagens do coronel autoritário, dos jagunços animalescos, ou mesmo, do cidadão do sertão, oscilando entre o primitivo e a pós-modernidade.
“Que nos seja permitido assinalar de passagem a importância de uma fenomenologia do artificial. O ser que quer o artifício tem necessidade de uma tomada de consciência muito nítida. Essa tomada de consciência é tanto mais vigorosa quanto mais fluente é seu objeto. No problema do ser que se dissimula vê-se em ação a manutenção de uma consciência de dissimulação. Deve-se reconhecer, pois, nas interpretações de máscaras, maior estabilidade do que em outros fantasmas” (Bachelard).
Oferecer autenticidade ao artificial e inseri-lo no mundo dos fenômenos exige capacidade criativa. A criação literária, para manifestar-se com grandeza, necessita de um talento criativo extraordinário, reformulador de suas próprias realidades psíquicas. O Artista (aquele produtor de autêntica Arte Literária), agora indivíduo consciente, não aceita mais a convivência insossa com suas máscaras reais. Retomar ficcionalmente o rosto primitivo, diluindo-o em seus personagens, é um exercício de poder. É o poder daquele que se retrocede ficcionalmente ao passado e retoma o início de sua trajetória de dissimulação. Recupera conscientemente a máscara virtual, retirando-a do passado sob a forma de narrativa, e fragmenta-a em diversas novas máscaras. Cada personagem revela parcialmente um pouco do que foi visto e vivenciado nas origens. Cada personagem é parte viva de suas primeiras e verdadeiras realidades psíquicas. O Artista tem plena consciência dessa nova e intermitente dissimulação de seu próprio eu. Todos os seus personagens são partículas vivas de seu íntimo, por conseguinte, eles também, máscaras virtuais, passíveis de alcançarem vida estável no plano das probabilidades fenomênicas.
Em meio a suas diversas máscaras sociais, quis (e conseguiu) retomar o rosto da infância, com a colaboração da Arte Literária. Com esta atitude, refortaleceu-se socialmente, idealizando o sertão, recuperando-o sob novas imagens, fornecendo novos traços decisivos para a fisionomia do sertanejo secularmente rejeitado na hierarquização social.
"A máscara nos ajuda a afrontar o futuro. É sempre mais ofensiva do que defensiva. (...) Se forçarmos um pouco as relações entre a figura e o rosto, se integramos a máscara, parece que a máscara pode ser a decisão de uma vida nova. Ela liquidaria de uma vez o ser que se oculta. Seria um motivo para afirmar uma segunda vida, um renascimento. Ainda que se examine o problema de muitas maneiras, é necessário chegar à mesma conclusão: a máscara é um instrumento de agressão; e toda agressão é uma atuação sobre o futuro" (Bachelard).
No decorrer da Entrevista ao alemão Günter Lorenz, Guimarães expõe suas convicções genuinamente verdadeiras. A retomada de seu antigo rosto, sustentada na sua criação literária, conscientizou-o de seu poder individual. Agora, o ser especial, oriundo de um pequeno burgo do sertão, não necessita defender-se do grupo citadino debaixo de diversas máscaras sociais. O escritor (médico, diplomata, soldado, poliglota e outros diversos talentos) sabe que já está temporalmente afastado de suas origens, mas sabe também que já adquiriu o direito de se nomear sertanejo, orgulhosamente afrontando um grupo de intelectuais pernósticos, que, segundo suas próprias palavras, só sabem transmitir “bolas de papel” (Guimarães Rosa). Nesta vida nova, já conceituado pela elite sócio-intelectual e, inclusive, por esse mesmo grupo que finge não perceber a agressão do Artista, liquida de uma vez o que buscou ocultar em anos de convivência com o mundo citadino. Afirma assim uma nova vida, um renascimento, uma adesão aos planos superiores da pura individualidade.
MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8
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