Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, o "Neuza Machado 2", Caffe com Litteratura e o Neuza Machado - Letras, onde colocamos diversos estudos literários, ensaios e textos, escritos com o entusiasmo e o carinho de quem ama literatura.

quarta-feira, 31 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: CONSCIÊNCIA SINGULAR - 15


GUIMARÃES ROSA: CONSCIÊNCIA SINGULAR - 15

NEUZA MACHADO



Por intermédio dos novos pensamentos de seu Criador, o narrador (A Hora e Vez de Augusto Matraga) assume o caminho individual, que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se chegar ao objetivo da consciência singular, que caracteriza o indivíduo inteligente. A inteligência é engrandecida por Bachelard e a inteligência é uma qualidade no Artista Guimarães Rosa. Aqueles que se encontram no cogito(1) não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam alguns grupos sociais em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar, argumentar, refletir sobre a validade da direção do impulso massificador. Essa função especulativa, segundo Bachelard, "cria lazeres e os fortalece”, ou seja, cria prazeres (coisas boas) que fortalecem e aperfeiçoam tal função. A consciência pura produz a capacidade de escolha lúcida, agencia o livre-arbítrio.

A consciência pura, de acordo com Bachelard, se localiza no cogito(3) da autêntica individualidade, acima dos cogitos um e dois e próxima do cogito(4), cogito este já fora da linha vital. Seria, assim, o eu singular, consciente, lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. A consciência pura pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, como por exemplo as intuições espirituais, pode esperar alguma oportunidade para agir, pode aguardar e guardar (baú de memórias), pode vigiar para que não entre em seu mundo interior (plano do eu profundo) qualquer conhecimento nocivo. Esta consciência singular, por estar muito próxima do tempo espiritual, estará sempre em estado de liberdade, porque não estará totalmente submetida às pressões do mundo vital; não será suscetível ao julgamento do mundo, às cobranças sociais, porque estará no plano que, para os que não a entendem, aparecerá como uma vontade de nada fazer, já que não vai fazer nada, enquanto não for o seu momento de bem fazer alguma coisa.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

terça-feira, 30 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: TEMPO SINTAGMÁTICO x TEMPO PARADIGMÁTICO - 14


GUIMARÃES ROSA: TEMPO SINTAGMÁTICO x TEMPO PARADIGMÁTICO - 14

NEUZA MACHADO



As recordações da infância certamente marcaram o escritor Guimarães Rosa. As histórias de Senhores-de-terra poderosos e valentes encontraram ressonâncias em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas mediante o repouso ligado ao tempo do pensamento e dos posteriores questionamentos sobre o sertão. Só depois que seu narrador se desembaraçou do tempo linear, "das falsas permanências, das durações malfeitas” (Bachelard), só depois que ele desorganizou temporalmente sua narrativa, só depois que ele dissociou-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu curar-se do tempo sintagmático, questionando-o e assumindo no final (nas narrativas finais) o cogito(3) da consciência individual.

Ele pensou, a partir de então, alucinatoriamente, o sertão de sua infância; buscou a síntese do ser na essência do vir a ser; sumariou, resumiu o sertão poeticamente e conseguiu chegar a um final discursivo, distante temporalmente dos valores substanciais.

Depois do repouso, novos pensamentos surgiram e seu narrador se libertou e libertou o personagem. A hora e vez fervilhante do narrador chegou (sob o aval dos pensamentos fervilhantes do Artista Literário do século XX), levando-o a assumir definitivamente um pensamento narrativo distante dos padrões temporais. O narrador se libertou dos arrebatamentos súbitos e efêmeros ― elans ― que o faziam gastar sua energia criativa em ações imitadas. Até o momento do repouso fervilhante do Artista, o narrador deixou-se levar pelo impulso do que recebeu no passado, ou seja, procurou transmitir as experiências de vida que caracterizam a matéria épica. Nas primeiras sequências, não tem intuição própria (ou não se permite ter). Nessas duas primeiras sequências, em que se destacam as fases/faces do poder (primeiramente social e depois carismático), afasta-se do caminho individual, para se colocar como porta-voz das experiências da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão e dominada por senhores-de-terra poderosos.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8


segunda-feira, 29 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: TEMPO HISTÓRICO x TEMPO INSTANTÂNEO - 13


GUIMARÃES ROSA: TEMPO HISTÓRICO x TEMPO INSTANTÂNEO - 13

NEUZA MACHADO



Gaston Bachelard, no capítulo "As superposições temporais”, mostra a diferença entre um tempo múltiplo e relativo e um tempo de qualidade essencial e instantânea, em outras palavras, procura diferenciar o tempo linear histórico do tempo instantâneo, que se encontra suspenso entre o antes e o depois.

Para alcançar o entendimento dessa diferença, exercitou-se pela meditação; procurou esvaziar o tempo linear, retirando os excessos; ordenou os diversos planos de fenômenos temporais. A partir da meditação, percebeu que "os fenômenos não duravam todos do mesmo modo"; percebeu que a idéia de tempo único era uma idéia resumida e imperfeita; percebeu a inexistência do sincronismo entre a passagem das coisas e a fuga abstrata do tempo; percebeu "que era necessário estudar os fenômenos temporais, cada qual segundo um ritmo apropriado, um ponto de vista particular”.

Observando as várias etapas do pensamento de Bachelard, enxerguei o narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga ― amparado pelo pensamento renovado do Artista Literário ― sofrendo o mesmo processo de raciocínio metafísico. Enquanto durou o repouso vital de Nhô Augusto, o escritor pôde repousar também sob o predomínio do repouso fervilhante; pôde refletir sobre vida e espírito; pôde buscar uma solução vertical para sua narrativa, que a partir dali não teria como se manter plena e linear. Ele meditou, esvaziou o tempo vivido das durações malfeitas e desenvolveu um novo raciocínio por meio do narrador. Por estas razões, a narrativa prossegue, mas de forma diferente. Há estranhamentos, insolidez, lacunas, total falta de sincronia na recuperação temporal. O narrador roseano deixa seu personagem

“(...) no escuro e sozinho (...), sem padre nenhum com quem falar. E essa era a consequência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz bravio, combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Teresa. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

A partir deste trecho, já se observa a duração como a quer Bachelard, onde o tempo decorrido "fervilha de lacunas”, tempo muito próximo das inconsequências quânticas, e na qual não há a continuidade do tempo histórico. Agora, a narrativa recupera os instantes fervilhantes que produzem a idéia de tempo, importando mais destacar o que se encontra entre o repouso e a ação. O narrador sai da objetividade histórica, a história pessoal de Nhô Augusto, Senhor absoluto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, Senhor absoluto do Retiro do Morro Azul, além de ser Senhor absoluto do povoado do Murici, e se enreda em seus próprios circunlóquios, ou seja, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso fervilhante. A narrativa passa a ser poética e ritmada; passa a ser construída por um grupo de princípios relacionados entre si, mas que visa unicamente detectar os instantes do pensamento dialetizado.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

domingo, 28 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: REFLEXÃO FERVILHANTE - 12


GUIMARÃES ROSA: REFLEXÃO FERVILHANTE - 12

NEUZA MACHADO



Bachelard diz que é pela reflexão fervilhante que o ser se liberta do elan vital. O elan vital induz o indivíduo a se afastar dos objetivos individuais, impulsiona-o no sentido de aceitar o já instituído socialmente sem questionamentos.

“A inteligência, entregue à sua função especulativa, irá aparecer-nos como uma função que cria lazeres e os fortalece. A consciência pura irá aparecer-nos como uma potência de espera e de guarda, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer” (Bachelard).

O narrador, em A Hora e Vez de Augusto Matraga, está em vias de se liberar do elan vital, e isto promove também a libertação do Artista. Ele contou as peripécias de vida do personagem, refez sua trajetória existencial, mas a partir da página 26 (op.cit.), o discurso narrativo muda. Há estranhamentos, conflitos, e o personagem Nhô Augusto se transforma. Nesse momento narrativo, aparece um personagem providencial, o Tião da Teresa, que permitirá ao narrador mudanças discursivas, reveladoras de um novo estágio de pensamento do Artista brasileiro. O narrador se apodera do discurso do personagem Tião, dando todas as notícias do passado em apenas um parágrafo. Depois da entrada e retirada de Tião (personagem ocasional), o narrador muda o enredo narrativo. O discurso passa a ser complexo e estranho. Ao invés da narrativa concentrada em um tempo linear, pleno, substancial, visualiza-se uma narrativa transcendental, já propensa a algumas lacunas, características estas ligadas ao cogito(2), ou seja, ao pensamento transmutativo.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sábado, 27 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: ESPÍRITO x MATÉRIA - 11

GUIMARÃES ROSA: ESPÍRITO x MATÉRIA - 11

NEUZA MACHADO



Assim, houve a separação, nas sequências iniciais, entre vida e espírito, já à moda bachelardiana. Na primeira sequência, antes da queda, o personagem não possui espiritualidade, porque, como o mesmo Bachelard reconhece, "o espírito poderia chocar-se com a vida, opor-se a hábitos inveterados”. E, como esclarece o filósofo, quando isto acontece, ou seja, quando há o choque entre matéria e espírito, e o espírito sai vencedor, o espírito faz "o tempo refluir sobre si mesmo", suscitando "renovações do ser, retornos a condições iniciais”. E é assim que Nhô Augusto, direcionado ainda pelo narrador memorialista, retorna no tempo em busca do passado, renovando seu ser, recuperando-se assim dos ferimentos. Retornando à religiosidade, plantada na infância pela avó religiosa, o personagem reconforta-se e recupera um novo tipo de poder. Nesta segunda sequência, inferiro que o espírito é o vencedor (orientado pelos dogmas cristãos).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sexta-feira, 26 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: O CARISMA DO PERSONAGEM - 10


GUIMARÃES ROSA: O CARISMA DO PERSONAGEM - 10

NEUZA MACHADO



Por ora, o Artista, ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a inação vital de seu personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o do fracasso de sua vida passada, prenunciando-lhe a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da narrativa, seu narrador ainda se recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda no interior do tempo linear. Mas o escritor já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa, transformando, gradativamente, o narrador memorialista (W. Benjamim) em narrador moderno.

Ao elaborar a face carismática do personagem, ainda sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma zona dogmática, que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria pessoa por intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na zona espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer parte de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum a todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o personagem passa a trabalhar para os pretos que o salvaram; ele está submetido às leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento), ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de criança.

Enquanto durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto mítico-social, Nhô Augusto — o rompente, o matador —, induzido por seu narrador memorialista, negou as coisas do espírito, no aspecto místico-cristão. O seu cotidiano de Todo-Poderoso distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas da religião. Na segunda fase, antigas orientações espirituais vêm à tona, transformando-o num homem religioso.

De acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito, segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela orientação cristã) promoveria o refluir do tempo vivido, permitindo novas formas conceituais do ser; e a máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do conceito de divindade, é a carismática.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

quinta-feira, 25 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: ORGANIZANDO A INAÇÃO - 9


GUIMARÃES ROSA: ORGANIZANDO A INAÇÃO - 9

NEUZA MACHADO



Mas não é o aspecto linear (aspecto metódico do tempo) que motiva Bachelard a dialetizar a temática da duração. Ele prefere aproveitar apenas "a época feliz em que o homem se vê entregue a si mesmo, em que a reflexão se ocupa mais de organizar a inação do que servir a exigências externas e sociais”. Então, aqui, poderei explorar o forçado repouso (vital) de Nhô Augusto (A Hora e Vez de Augusto Matraga), já fundamentando o início do repouso fervilhante do Artista. Não falarei, por ora, como direciona-me Bachelard, do Artista distanciado do mundo, retirado do mundo, fortalecido pela solidão moral (e isto já se pré-anuncia a partir da segunda sequência da narrativa); falarei páginas adiante sobre o Artista a partir da terceira sequência, na qual se destaca o aspecto impessoal do narrador (a partir daí seu indiscutível alter ego), descobrindo as "zonas de repouso", as "razões de repouso”, sistematizando o próprio repouso e o repouso de seu personagem.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

quarta-feira, 24 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: A FACE CARISMÁTICO-RELIGIOSA DO PERSONAGEM - 8

GUIMARÃES ROSA: A FACE CARISMÁTICO-RELIGIOSA DO PERSONAGEM - 8

NEUZA MACHADO



As transformações de Nhô Augusto (A Hora e Vez de Augusto Matraga), pelo ponto de vista sociológico, são significantes dos vários estágios de vida estacionados no pequeno espaço do sertão, sobrepondo-se, imunes à ação do tempo; mas, pelo ponto de vista da filosofia bachelardiana, representam a passagem do cogito(1) para o cogito(2), quando o Artista e sua obra começam a desenvolver uma relação dialética com o sertão do passado.

Recuperando o poder de Nhô Augusto, dentro de outra categoria (a carismático-religiosa), o narrador age ainda segundo a filosofia do pleno de Henri Bergson, tão questionada por Gaston Bachelard. Assim, confirmando o que foi dito anteriormente, a narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga retoma, nos trechos iniciais, a linearidade própria das narrativas orais. Todas as narrativas lineares, simples, necessitam de mobilidade, de transcursividade, para se realizarem plenamente. O narrador, nas primeiras sequências, necessita de confirmações, de segurança, para realçar seu personagem. Por isto, o passado vela o presente na casa dos pretos. O passado de Nhô Augusto, com a avó, foi "profundo, rico e pleno” (Bachelard), e, graças a esse passado, o narrador tem como recuperar a face religiosa do personagem.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

terça-feira, 23 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: “ONTEM ETERNO” x MUNDO CAPITALISTA - 7


GUIMARÃES ROSA: ONTEM ETERNO x MUNDO CAPITALISTA - 7

NEUZA MACHADO



Nhô Augusto herdou um pequeno Império e nele reinou durante algum tempo. Enquanto durou sua autoridade, foi a própria representação do poder mítico-social.

O Artista, por intermédio de seu narrador, permite opacamente que se observe a realidade burguesa como invólucro das representações do sertão. A narrativa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) procura destacar um espaço puro, mas há nesse espaço personagens degradados: os bate-paus de Nhô Augusto, por exemplo, são formas representativas, simbólicas, do mundo burguês capitalista. Quando o personagem, depois da queda, sem poder, necessita dos serviços de seus antigos homens de confiança, estes se recusam a obedecer-lhe, porque são membros do aparelho ideológico do poder, do qual Nhô Augusto não mais dispõe. O personagem roseano, nesta segunda sequência, submetido à ótica burguesa, já não possuía o reverenciado poder, já não possuía a qualidade de mando.

É lícito observar as representações das normas capitalistas em alguns trechos da narrativa. Por exemplo:

"Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro... P'ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que Seu Major disse que não quer" (A Hora e Vez de Augusto Matraga).

Os bate-paus fazem a degradação do poder, do valor do dinheiro de quem o possui, mas não conseguem corromper o espaço de referência do narrador, porque este é mediador do Artista, brasileiro, indivíduo contraditório, originário de um mundo em que o valor do dinheiro não tem valor, mas que, sobretudo, deseja ressaltar um determinado sertão da infância (seus primeiros anos de vida). Mesmo sem estar comprometido com os valores da modernidade, o Ficcionista sertanejo, nesta narrativa de transição, ainda não alcançou completamente (ficcionalmente) o patamar da consciência pura, plano indiscutivelmente individual. Por isto, os bate-paus fazem a degradação do poder. Por isto, o portador calado significa que quem fala é o poder, pois só o poder tem poder de fala. Segundo Rosa, "o dinheiro não adianta muito no sertão” (ENTREVISTA), mas é o poder no mundo capitalista urbano. E o sertão roseano — ou brasileiro —, marcado por um capitalismo periférico, ainda que possuindo matéria mítica em estado bruto, está inserido, em sentido diacrônico e sincrônico, na sociedade brasileira moderna.

A sociedade brasileira nasceu em princípios da Era Moderna, e mesmo tendo-se desenvolvido em seu território processos antigos de vida comunitária, como a agricultura, as leis financeiras da Europa comandaram as normas econômicas e sociais de seu povo. Assim, entende-se o fato do narrador roseano, nesta narrativa, refletir as contradições do Brasil, do capitalismo brasileiro, periférico, de terceiro mundo; entende-se o porquê do Artista apresentar a sua visão pessoal e social do mundo sertanejo, com tais características comunitárias, e instintivamente deixar-se surpreender também como representante da moderna sociedade capitalista. Por estas razões, ainda ligado à imaginação formal nas primeiras sequências, ou seja, aos aspectos exteriores do sertão, promove a queda do personagem, já idealizando um novo poder para ele, no plano da religiosidade.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

segunda-feira, 22 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: MEMÓRIA x RECORDAÇÃO - 6


GUIMARÃES ROSA: MEMÓRIA x RECORDAÇÃO - 6

NEUZA MACHADO



Os narradores das narrativas de Sagarana captam essa matéria, replena de valores primitivos, subjacente numa região onde as normas de vida continuam ainda semelhantes às normas de vida das antigas comunidades. O narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga, por exemplo, se propõe a contar a vida heróica de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.

Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:

“O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer a autoridade alegada pelos detentores do poder”.

Neste duplo aspecto, organizam-se as sequências ficcionais de A Hora e Vez de Augusto Matraga: a narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado e a narrativa em que estas experiências são negadas por um outro mundo, abalado por sucessivas e inesperadas violências.

Graças a esta dualidade, este texto ficcional de Guimarães Rosa atinge um plano universal de raras proporções: capta a incerteza social que envolve coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e de repente se percebe que o espaço apresentado é o próprio mundo, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.

Penso esta narrativa de Guimarães Rosa (A Hora e Vez de Augusto Matraga) como refletora da burguesia periférica brasileira. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa mediatizado pelo narrador é um ponto de vista burguês. Vê-se, nas primeiras sequências, o porta-voz das experiências do Sertão, mas posteriormente passa a representar uma classe social. Mesmo ao demonstrar uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista, deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de uma localidade que representa suas raízes de vida. Se o seu narrador possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse lugar especial, possui também consciência para observar que o mesmo se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.

Weber questiona: "Por que os homens obedecem?"

Em primeiro lugar, afirma, há a autoridade do ontem eterno. Os subjugados se conformam com o domínio tradicional exercido pelo Patriarca. Em princípio, Augusto Esteves se assemelha à autoridade do ontem eterno, porque continua uma tradição. Seu poder foi herdado do pai, o Coronel Afonsão das Pindaíbas e do Saco-da-embira.

O narrador apresenta ao leitor uma pequena comunidade e o herói desta comunidade, ambos em vias de se degradarem.

Eis o conflito do narrador: a degradação não está no espaço apreendido (sua sensibilidade capta a pureza remanescente dos antigos núcleos primitivos); a degradação se encontra em si próprio, porque, porta-voz que é do Artista, conhece as várias faces/fases do Homem moderno.

Eis o conflito da narrativa: a memória (matéria épica) se contrapõe às recordações de um mundo para sempre perdido (matéria romanesca). O que foi transmitido por sucessivas gerações se encontra agora em vias de extinção. O narrador se dá conta, submetido agora ao repouso fervilhante do Artista, de que esta comunidade existe apenas em suas recordações, em seus devaneios infinitos. O narrador é o representante desta comunidade primitiva e ao mesmo tempo burguesa. Por isto, o narrador é primitivo e burguês, porque se desenvolve na dialética daquele que o idealizou (e que já alcançou o cogito(2), já verticalizando seus pensamentos em direção ao cogito(3) da consciência pura), mas cujas origens se ligam às comunidades fechadas do passado.

Assim como Nhô Augusto herdou a autoridade do ontem eterno, o narrador em questão herdou esta autoridade, como duplo de um Sábio que narra suas próprias experiências de vida como herdeiro de um nome sertanejo. Estas experiências não são pessoais enquanto curso de vida, são verdadeiras, são experiências transcendentais, irracionais, já ancoradas num tempo suspenso entre o antes e o depois; experiências de quem se coloca como porta-voz da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão, dominados por Senhores-de-terra poderosos.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

domingo, 21 de março de 2010

BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 5


BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 5

NEUZA MACHADO



Enquanto o Artista se imobiliza tensamente, suspenso entre o antes e o depois (o depois das durações bem feitas, promovedoras de pensamentos inovadores), Nhô Augusto refaz momentaneamente, como já foi dito, seu curso de vida, preso ainda ao elan vital, às paixões coletivas. O personagem, induzido exclusivamente pelo escritor do século XX (atentar para a posição de submissão do narrador-personagem, já que este, de ora em diante, não comandará mais a proposta de narrativa tradicional), passa a ter tempo para meditar e esquecer sua antiga personalidade de homem poderoso e destrutivo, adquirindo chances de se tornar um novo homem, ainda vital, no caso, carismático.

O narrador apresenta um aparente momento de transição. Aparentemente, o personagem procura esquecer o que foi antes, transformando-se num novo ser, criando dentro de si uma nova forma de se expressar no mundo. Aparentemente e temporariamente, surge um novo Augusto, repleto de bons propósitos, ansiando pelo céu, mas, na verdade, por ora, nada mudou. O que aconteceu foi a repetição do continuísmo temporal, ou seja, a perda de um poder (poder social), gerando um novo poder (poder carismático), exercido em nome da divindade.

Assim, por esta ótica, o início da narrativa (até a queda) e a segunda sequência (carismática), na qual observa-se a repetição do continuísmo temporal, com o personagem adotando uma nova estratégia de vida, simbolizam as experiências de vida da comunidade do sertão, material precioso, que fundamenta a vida de um povo. As "experiências de vida", segundo Walter Benjamim, encontram-se registradas na memória, e é a memória do Artista (as lembranças do sertão) que insiste em ressuscitar o personagem, em permanecer fiel às tradições, enfim, em ater-se ao tempo pleno bergsoniano, confiante no elan vital das ideologias sacralizadas.

As experiências de vida são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao povo sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os jovens os atos heróicos dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar, incentivar à geração futura o desenvolvimento de feitos valorosos. Dentro desta ótica, o povo sertanejo mantém ainda um vínculo permanente com os povos antigos e o Artista, herdeiro do "ontem eterno” (Weber), pôde se beneficiar literariamente desta sua ligação com o passado.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sábado, 20 de março de 2010

BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 4


BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 4

NEUZA MACHADO




A queda (em A Hora e Vez de Augusto Matraga) ainda não representa um verdadeiro momento de mudança narrativa. O Artista, submetido às imposições ideológicas do sertão, tenta recuperar o personagem linearmente, remodelando-o sob o jugo de um novo poder: o poder carismático.

Mas é nesse momento que Nhô Augusto se submete ao repouso vital, sob os ditames da tradição religiosa, embalado pelas lembranças da infância, permitindo assim um temporário descanso vital ao escritor, já prestes a se submeter ao repouso fervilhante que antecederá ao início de novas e singulares criações literárias, nascidas exclusivamente do tempo do pensamento.

Enquanto Nhô Augusto depois da queda reaparece renovado, saído das brasas de uma fé antiga ainda vivas sob as cinzas da descrença, o narrador se prepara, orientado pelo demiurgo, para assumir uma nova postura narrativa, que romperá definitivamente com sua antiga forma de narrar. Portanto, quem realmente resgata, momentaneamente, a paz de espírito própria da infância é o Artista. Ele se recupera no plano da continuidade temporal, recuperando também mais uma face ideológica de seu personagem: a carismática. Por isto, repenso aqui o excurso de Gaston Bachelard, nas páginas iniciais de sua propedêutica, rejeitando um envolvimento maior com o repouso vital.

O repouso de Nhô Augusto na casa dos pretos simboliza descanso mental, vital, já que o ficcionista por enquanto não irá modificar nada ao longo da narrativa, apenas promoverá um aparentemente novo direcionamento de vida para o personagem, submetido ainda às leis do tempo contínuo. Em outras palavras, ele simplesmente receberá um novo poder como porta-voz do poder religioso.

Se o personagem, nesse intervalo, nesse repouso forçado, com todas as conotações próprias da palavra repouso, recupera a paz de espírito, é a partir daí que o repouso tenso, fervilhante, do Artista, sentido no fundo do ser, de acordo com Bachelard, começa a se insinuar, possibilitando novas perspectivas de narração na obra roseana. O narrador informa que o personagem passa a ter tempo para sarar e pensar, mas quem realmente se imobiliza tensamente, para produzir novos e singulares pensamentos é o próprio Artista. O personagem, o narrador e o Artista estão prestes a esvaziar o tempo vivido (contínuo) em benefício de uma nova realidade, autenticamente ficcional, repleta de lacunas fervilhantes.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sexta-feira, 19 de março de 2010

BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 3


BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 3

NEUZA MACHADO


A questão do tempo do pensamento (Dialética da Duração, Gaston Bachelard) ― pensamento que surge do repouso fervilhante ― tornou-se um ponto importante para certificar as minhas elucubrações teórico-filosóficas análogas à obra de Guimarães Rosa.

Inicialmente, repensando as confirmações de Bachelard, entendi que o repouso fervilhante — antes do pensamento propriamente dito — seria o invólucro de questões amorfas ou díspares, que estariam contidas no íntimo do consciente (da existência do ser) e que não seriam nada tranquilas, já que instaurariam uma ativa tensão cerebral. Por consequência, posteriormente, os pensamentos advindos desse repouso fervilhante estariam livres dos dogmas vitais, e propiciariam novíssimas etapas de duração. O tempo pensado ofereceria uma maior liberdade de ação, de invenções, de criação, de concretizações.

Por esta doutrina do tempo, envolvi-me com as narrativas roseanas, desde o seu início até a fase final, e constatei que elas se organizaram, ao longo de sua produção, em quatro momentos, que se interpenetraram.

No primeiro momento, submetido ao tempo contínuo (tempo da história, da experiência de vida), o Artista Literário encontrou seu impulso narrativo na imaginação formal (forma externa), na novidade da descoberta de um sertão muito próximo de sua vida, mas não devidamente explorado no âmbito da literatura. Desta descoberta da imaginação formal, surgiram as narrativas de Sagarana, cujos narradores (memorialistas) ― ou um único narrador (não confundir narrador memorialista, aquele que se vale das experiências do passado para compor seu universo ficcional, com narrador de livros de memória, cuja proposta é recuperar fielmente o passado) ― se divertem com a variedade de imagens estáveis, intactas desde a infância em suas lembranças.

Ainda submetida à Doutrina do Tempo, sob a orientação bachelardiana, pude observar que, no segundo momento, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, o Artista brasileiro e a sua obra estabelecem uma relação dialética com o sertão, sob o comando exclusivo da criatividade ficcional, destacando os contrários como amor e ódio, alegria e tristeza, dentro e fora, sanidade e insanidade, realidade e irrealidade, luz e trevas e outros mais. Verifica-se a partir da citada narrativa uma clara mudança na forma de narrar: a consciência do poder de criação ficcional e o abandono das velhas formas narrativas, ligadas ao ato de reproduzir as experiências de vida dos ancestrais.

Reportando-me novamente à coletânea de narrativas de Sagarana, e aproveitando-me de um excurso de Bachelard em sua Introdução à Dialética da Duração, quando informa não ser sua intenção destacar a etapa pessoal do repouso (vida secreta e sossegada, vida solitária que oferece prazer), passo a refletir o início da obra roseana justamente a partir desta perspectiva. Isto, porque a primeira fase ficcional do Artista realizou-se submetida aos conhecimentos tradicionalmente recebidos, portanto fase ligada ao impulso primeiro da imaginação ainda formal (formal no sentido de invólucro de conceitos pré-estabelecidos).

Bachelard, em seus estudos, não está preocupado com o tempo vital, pois sua temática se liga ao tempo do pensamento. Ele não pretende, em absoluto, "delinear (...) a perspectiva que conduz à vida secreta e sossegada”, perspectiva ligada ao tempo contínuo, histórico, vivido, repleto de paixões; tempo submetido às exigências externas e sociais, às excitações que atraem o homem para fora de si mesmo.

Se Bachelard restringe o aspecto pessoal da questão, revisito o assunto, uma vez que o Artista Guimarães Rosa, em sua fase inicial, procura reproduzir ficcionalmente aspectos de vida de um passado histórico, tendo como referencial o Sertão das Gerais, localizado no Norte do Estado de Minas, fronteiriço ao Sertão da Caatinga, localizado na região do Nordeste brasileiro.

O excurso de Bachelard, logo no início de suas propostas filosóficas, restringindo o aspecto pessoal do repouso, abstendo-se de estudá-lo, alertou-me quanto à questão acima exposta. Guimarães Rosa, inicialmente submetido ao repouso vital e à imaginação formal, invólucro de conceitos pré-estabelecidos, sentiu-se envolvido pelas gratas lembranças da infância, rememorizou extasiado e descansado (linearmente) seu passado histórico, repleto de matéria mítica. Assim, observando as narrativas de Sagarana (as histórias do burrinho pedrês, de Seu Lalino Salãtiel e outras) fixei-me na figura de Nhô Augusto Matraga, já que o personagem representa nitidamente o momento de mudança temporal do próprio Artista. O personagem Augusto Matraga (assim como o narrador) representa também as mudanças mentais do escritor.

Por este aspecto, asseguro que todos sofrem mudanças nesta pequena narrativa: o Artista, o Narrador, o Personagem, o Leitor e o próprio Mundo Narrado. Nhô Augusto, principalmente, revela as nuances mentais do Criador Literário: depois da queda (pessoal e ideológica), fica recuperando-se dos ferimentos na casa dos pretos que o salvaram, recordando a infância, as rezas da infância aprendidas com a avó beata. Neste início, é justamente a vida secreta e sossegada de Nhô Augusto, com todo seu conteúdo passional, que motiva-me raciocinar, para depois alcançar os postulados centrais da filosofia bachelardiana.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

quinta-feira, 18 de março de 2010

BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 2


BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 2

NEUZA MACHADO



O que seria então esta filosofia do repouso? Como compreendê-la sem macular o sentido correto que o filósofo quis transmitir?

Buscando nas idéias de Bachelard o apoio necessário para elucidar a questão do tempo nas narrativas roseanas, desde Sagarana à última fase, constato as dificuldades do percurso. Por intermédio da ótica bachelardiana, investi-me em uma dimensão suprafísica, insolitíssima, procurando uma brecha que pudesse provar-me a possibilidade de esvaziamento do tempo pleno, histórico, linear, vivido em excesso, em benefício de um tempo descontínuo, fervilhante de lacunas, ao longo da obra roseana. Bachelard impôs-me tal incursão (caminhada tensa em um plano de pensamentos transmutativos), já que o meu intuito era verdadeiramente entender suas cogitações filosóficas. Comecei a pensar nesse repouso, num primeiro momento, como algo que indicasse fixidez, imobilidade, ausência de movimento, impulsionada pelo próprio Bachelard, que o apresenta como esvaziamento do tempo, como algo suspenso entre o antes e o depois.

Em uma segunda análise, a idéia de fixidez não era de todo incorreta, mas não se ajustava ao conceito tradicional que se faz do verbo repousar, que denota descanso total. O esvaziamento da duração, ou seja, o repouso, como o quer Bachelard, seria assim uma imobilidade, mas uma imobilidade fervilhante; não ofereceria descanso, ao contrário, ofereceria momentos de tensão interna, repletos de pensamentos questionadores. Assim, os momentos suspensos entre o antes e o depois estariam fora do tempo vital e dentro do tempo do pensamento. O repouso, visto por este ângulo, não seria o ato de descansar (adormecer a mente); seria, isto sim, a imobilidade que antecede a futura ação do pensamento.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

quarta-feira, 17 de março de 2010

BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 1


BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 1

NEUZA MACHADO



“Este estudo só perderá sua obscuridade se fixarmos desde já seu objetivo metafísico: ele se apresenta como uma propedêutica a uma filosofia do repouso. Mas, como veremos desde as primeiras páginas, uma filosofia do repouso não é uma filosofia repousante. Um filósofo não pode procurar tranquilamente a quietude. Necessita de provas metafísicas para admitir o repouso como um direito do pensamento, necessita de experiências múltiplas e de longas discussões para admitir o repouso como um dos elementos do devir” (Bachelard)

Para que seu estudo possa ser compreendido em sua essência, Bachelard apresenta-o como uma propedêutica a uma filosofia do repouso (objetivo metafísico), ou seja, são apenas estudos preliminares, antecedendo futuras afirmações no âmbito da duração. O filósofo não explicita a idéia claramente, mas é possível apreender seu pleno sentido: o objetivo do estudo é metafísico, e a palavra metafísico, aqui, não se encontra ligada a seu sentido figurado, que quer dizer de difícil compreensão. Se assim fosse, não apresentaria seu estudo como uma propedêutica, ou melhor, um estudo introdutório. Seu objetivo metafísico tem como suporte o acúmulo de conhecimentos racionais, adquirido ao longo de sua vida, somado às experiências recebidas.

No âmbito do Conhecimento, há várias modalidades de cultura. Os conhecimentos racionais conglomeram, além das Ciências Exatas e Humanas, as várias Filosofias, as Religiões e as Artes; e há nessas duas últimas o predomínio de conhecimentos empíricos, passados de geração a geração, mesclando-se com a formação puramente racional, adquirida por um pequeno grupo. Por estas razões, quando Bachelard apresenta a sua filosofia do repouso, e alerta para o fato de que ela não está ligada ao sentido de repousante enquanto descanso, torna-se mais instigante procurar descobrir o sentido exato de sua propedêutica, cuja temática procura reelaborar a idéia de tempo.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

terça-feira, 16 de março de 2010

BACHELARD: FILOSOFIA DO VAZIO x FILOSOFIA DO CHEIO


BACHELARD: FILOSOFIA DO VAZIO x FILOSOFIA DO CHEIO

NEUZA MACHADO



No capítulo "A distensão e o nada”, Bachelard mostra que não é um total opositor de H. Bergson, apenas não aceita sua duração plena, contínua, estável e segura,e, por isso, procura provar que em qualquer duração existe a essência metafísica do risco — absoluto e total, sem objetivo e sem razão —, e que esse risco possibilita a destruição da segurança da felicidade de qualquer indivíduo. O risco absoluto abala as estruturas das coisas estáveis como uma vertigem que atrai o sujeito pensante para o perigo, para a novidade, para a morte, para o nada.

Por este aspecto, o risco absoluto poderia ser detectado no momento em que o indivíduo pensante estivesse submetido ao repouso ativado. O repouso ativado (ou fervilhante) seria o momento da distensão, do afrouxamento, do não-funcionamento dos pensamentos comandados pela filosofia do cheio. Esse momento de distensão (jamais pensar nesse repouso como algo lúdico e tranquilo) propicia uma identificação maior com o nada e a rejeição das confirmações secularmente instituídas. Assim, paralelamente à filosofia da qualificação bergsoniana, Bachelard postula a filosofia da aniquilação, demonstrando que o repouso ativado mediaria os dois aspectos filosóficos.

O repouso ativado impediria ou promoveria a aniquilação total do indivíduo, demonstraria o sucesso ontológico do ser, se fosse observado posteriormente (depois do repouso) uma criação renovada do ser por ele mesmo. Esta criação renovada, ligada ao ato espiritual da consciência em sua forma gratuita, instauraria, por exemplo, uma resistência aos apelos do suicídio, demonstraria também o triunfo do indivíduo pensante sobre a sedução do nada, mas demonstraria sobretudo que os pensamentos surgidos depois da antevisão da aniquilação seriam totalmente inéditos, diferentes dos já padronizados.

A filosofia da aniquilação comprova que o ser, o movimento, o espaço, a duração, admitem lacunas, e estas lacunas são sustentadas no espaço intermediário do instante dinamizado, suspenso entre o antes e o depois. A filosofia da aniquilação, bachelardiana, supõe o nada como limite, enquanto que a filosofia da qualificação, bergsoniana, supõe a substância como suporte. O nada bachelardiano postula o repouso da ação natural da duração, já que uma função deve frequentemente interromper-se de funcionar. Depois da interrupção (do repouso fervilhante), surge o pensamento puro, resgatado da idéia do nada. Assim, o pensamento puro, segundo Bachelard, recomeça da recusa da vida estabilizada, na tentativa de reformulá-la. Com a interrupção da função, surge o princípio da negação temporal.

Já que a função (ação natural da duração ou o papel da duração na realidade temporal) deve frequentemente interromper-se de funcionar, para Bachelard, é algo normal atingir o limite e pensar a questão do repouso da ação natural da duração. O ato de pensar a questão do repouso ativado revela que há diferentes estágios (fundamentais) na realidade temporal, e este conhecimento só se torna possível quando se retrocede o princípio da negação até a realidade temporal. O repouso ativado permite esse retrocesso e faz entender a questão do nada; o repouso ativado (recusa da vida estável) permite uma nova atuação do pensamento, agora claro, puro, surgido a partir do vazio.

“Entre o vazio e cheio, parece-nos haver uma perfeita correlação. Um não é inteligível sem o outro, e sobretudo uma ação não se esclareceria sem a outra. Se nos recusam a intuição do vazio, estamos no direito de recusar a intuição do cheio” (Bachelard).

Bachelard não aceita os juízos pré-estabelecidos: estes já surgem como argumentos frágeis, impedindo a polêmica ou debate. Ao comentar os juízos de valor, critica explicitamente as idéias de Bergson. A comparação de dois juízos pré-estabelecidos (esta mesa é branca em confronto com esta mesa não é branca) não gera polêmicas, apenas mostra que a primeira afirmação denuncia o caráter determinado e imediato do juízo de valor enquanto que a segunda denuncia o caráter indeterminado e indireto do outro juízo de valor.

Para o filósofo, vale mais o juízo da descoberta. Por exemplo, a descoberta da dália azul (já que não há dálias azuis no âmbito do juízo pré-estabelecido) gerando espanto, exclamações e naturalmente polêmicas ardentes. No entanto, prova-se a existência de uma dália azul no âmbito do pensamento enérgico e decisivo. Todos os juízos enérgicos, para Bachelard, são juízos negativos. Esse juízos negativos evitam repetir velhas fórmulas de pensamento, velhas afirmações enganosas. Os valores afirmativos não solucionam questões, apenas preenchem o pensamento.

A afirmação, pela ótica de Bachelard, não significa conhecimento positivo. A afirmação da existência de uma dália azul destrói o juízo de valor que atribui outras colorações já determinadas (outras cores além do amarelo, branco ou rosa) para as dálias que enfeitam os jardins. Tal afirmação destrói juízos anteriores, mas impõe uma nova construção do juízo que se faz desta flor; tal afirmação aniquila as aparências da realidade, deixando em aberto a questão da essência. Uma dália azul existe e faz parte da realidade do ser que sabe expor argumentos decisivos. Os fenômenos existem ativos ou passivos, e os passivos estão vagando por aí à espera de quem os descubra.

O juízo da descoberta, ainda pelo ponto de vista de Bachelard, invalidaria certas afirmações plenas, que apenas preenchem e não solucionam as questões que incomodam o ser e sua existência. Observando que as afirmações nem sempre são sinônimos de conhecimento positivo e demonstrando que "a vida psicológica deve ser captada em seus atos, em sua ondulação, não em sua fonte magra e hipotética", o filósofo orienta-me quanto à questão do Conhecimento. Para ele, o Conhecimento, ao ser verbalizado, deve instaurar polêmica, deve ser destruído e construído, sendo que a construção às vezes nunca termina.

O pensamento transmutativo seria portanto a "única positividade clara de um conhecimento”, apreendida na consciência das retificações, nas insinuações, nas persuasões, nas discussões polidas, nas ondulações do pensamento dialético. O conhecimento dialetizado, descontínuo, sob o suporte de um fingido comportamento de continuidade, como por exemplo a falsa aceitação de pensamentos plenos, subentendida em apartes de supostas concordâncias, tais como, também fui dessa opinião, mas... etc, superaria inevitáveis incidentes e promoveria uma demonstração do negativismo psicológico, ou seja, uma temporária negação de suas idéias.

O juízo afirmativo fingido seria uma aceitação provisória e obrigaria o adepto dos valores afirmativos plenos e inteiros a aceitar outros pensamentos que contradissessem os seus. As regras conceituais já determinadas impedem novas conceituações e por isso são criticadas por Bachelard, que prefere desenvolver uma filosofia da aniquilação, propulsora de novos pensamentos que atuarão no devir.

Para Bachelard,

“Todo conhecimento preciso conduz a uma aniquilação das aparências, a uma hierarquização dos fenômenos, ao ato de lhes atribuir de algum modo coeficientes de realidade, ou, se preferirmos, coeficientes de irrealidade. Analisa-se assim o real a golpes de negação. Pensar é fazer abstração de certas experiências, é mergulhá-las voluntariamente na sombra do nada” (Bachelard).

Em outras palavras, um conceito preciso deve impor a marca da recusa de valores pré-estabelecidos, a marca de tudo que se nega em sua incorporação. É preciso anular o vago e o incerto de um fenômeno para, posteriormente, remodelá-lo e fixá-lo. Esta dialetização do conhecimento proporcionaria novos conceitos, libertos dos valores afirmativos, já desgastados, mas mesmo assim considerados plenos e seguros.

Bachelard, procurando dialetizar a questão da distensão, ou seja, a questão do repouso, no qual a inteligência se entrega a sua função especulativa, coloca-se no cerne do ponto de vista funcional, abandonando o ponto de vista ontológico. Assim, retoma o problema, ressaltando o seu aspecto prático, enquanto experiência de vida, para enfim esclarecer que a classificação dos conceitos "em juízos afirmativos e negativos tem um real valor psicológico”, se instituída pela ótica funcional.

Retomando o problema (sempre) pelo ponto de vista funcional, o filósofo ressalta as diferenças entre este ponto de vista e o ponto de vista do Ser, concordando que é impossível, para qualquer pensador, formular um conceito simples sobre o Ser, porque o conceito do ser, pelo ponto de vista do ser, será sempre pleno, e pelo ponto de vista funcional, sempre parcial. Para que o conceito do Ser tenha sentido, o primeiro passo, geralmente, é a submissão a um juízo de valor já pré-estabelecido. Assim, o pensador se submete a uma hierarquização conceitual complexa, oferecida pela tradição, observando camadas e camadas de conceitos complexos sobre o Ser, conceitos já elaborados, sem alcançar um conceito simples e claro que o satisfaça.

“O Ser, mesmo preciso, deve-nos múltiplas provas; não o aceitamos senão depois de uma qualificação diversa e móvel, experimentada e retificada. Assim, o que é deve psicologicamente devir. Não se pode pensar o Ser sem associar a ele um devir gnoseológico. Tomado em sua síntese máxima, o ser pensado deve ser um elemento do devir” (Bachelard)

O conhecimento do Ser exige um conhecimento previamente elaborado, ligado num primeiro momento a um juízo de valor, transmitido de geração a geração. O aspecto gnoseológico da questão, ou seja, o conhecimento da divindade que se transmite por tradição, sustentaria sempre os pensamentos futuros sobre o Ser.

“Inutilmente se tentará, por meio de não se sabe que hierarquia lógica de conceitos, localizar no empíreo imóvel conceitos simples, dotados de uma clareza intrínseca, no cimo dos quais reinaria o conceito do Ser” (Bachelard)

O pensamento exprimiria ações virtuais e reais, e seu ponto culminante seria o momento exato da decisão. O momento decisivo uniria idéia, ação e desenvolvimento da ação, atitudes que não comportam em absoluto sincronicidade, segundo Bachelard. O momento decisivo seria então a concentração da ação (a soma da idéia do pensamento de agir e do desenvolvimento da ação) ou, em outras palavras ainda, seria a unidade desses comportamentos não sincronizados, somada ao absoluto dessa ação. A decisão do pensamento orientaria o gesto posterior, e este ficaria submetido a "mecanismos subalternos não vigiados”.

O conhecimento do Ser, pelo ponto de vista do ser (conhecimento complexo), é inerente ao tempo vivido e não se adéqua ao tempo pensado, totalmente aéreo, livre, matematizado, "tempo onde se inserem as invenções do Ser " (...) " tempo em que o pensamento age e prepara as concretizações do Ser”. Por esta ótica, é importante não confundir o tempo pensado com o tempo abstrato. O tempo pensado é um estágio de realizações, concretizações, clarificações, e, para conceituar o Ser, os conceitos lógicos e simples são inúteis.

O tempo pensado (ou matematizado) impulsionaria o pensador, fazendo-o agir, obrigando-o a iniciar o gesto e a concretizá-lo, já que houve um decisivo consentimento no instante da concentração da ação (impulsionadora desse gesto). A realização de tal gesto é obra do tempo pensado, vigorando acima do tempo vivido (pleno, linear) que não permite um pensamento vertical, se a ação do pensador estiver submetida a seu domínio.

Refletindo sobre o consentimento para agir de Henri Bergson, consentimento este assegurado pela doutrina do cheio, ou seja, do tempo vivido, Bachelard inicia seus pensamentos, acompanhando, num primeiro momento, a explanação bergsoniana sobre o tema. Mas essa adesão só se verifica no início, quando ele focaliza no verbo, à moda bergsoniana, as relações enunciadas por um juízo de valor, algo totalmente diferente da proposta bachelardiana, que opta por procurar as raízes desse consentimento para agir no predicado ou no sujeito, que acarretam, outrossim, o juízo de descoberta. É importante não esquecer que esse consentimento parte do tempo pensado, mas é o início do gesto que direciona a ação.

Bachelard, refletindo a questão, se coloca no meio do verbo, seguindo inicialmente as assertivas bergsonianas, como já foi dito, mas procura reconduzir toda a ação de seu pensamento a seu aspecto decisivo e unitário, instantâneo, diferente da lentidão e multiplicidade do tempo vivido.

O pensador, depois dessa recondução inicialmente bergsoniana, quebra a continuidade em favor de uma hierarquia de instantes. Conceituando inicialmente o Ser sob a orientação de Bergson, ou seja, aceitando o consentimento para agir ligado ao verbo, pela dialética do sim e do não, ele percebe que esse consentimento para agir, pela ótica bergsoniana, é simplesmente um acréscimo artificial, algo secundário na doutrina do cheio. Bergson, mesmo dialetizando o sim e o não, quando acrescenta em seus estudos o consentimento para agir, só desenvolve pensamentos ligados ao sim, ou seja, ao cheio. Bachelard aproveita-se desse descuido, para desenvolver um pensamento transmutativo, contrapondo ao cheio bergsoniano o vazio, provedor de novos pensamentos. Enquanto o consentimento para agir bergsoniano surge como algo secundário na doutrina da interioridade, sincronizada com a vida, enraizada na vida, caminhando junto com a vida, Bachelard busca esse consentimento na essência da própria noção de consentimento, ou seja, numa "teoria que afirma a existência de um pensamento liberado da vida, suspenso acima da vida, suscetível também de suspender a vida”.

Desta forma, qualquer juízo tem de ser julgado, para preparar e medir a relação de causa e efeito no âmbito da psicologia e da biologia. Depois do julgamento, surge a decisão excepcional, direcionando a evolução do pensador.

Assim, o consentimento para agir que, em Bergson, surgiu simplesmente como um acréscimo na doutrina do cheio, em Bachelard, é dialetizado até a exaustão (cheio e vazio), surgindo, no nível do juízo decisivo, como acréscimo funcional, mas, também, como acréscimo essencial, necessário, indispensável.

O juízo decisivo, segundo Bachelard, é necessariamente secundário, mas é, mesmo assim, uma conquista sobre o medo, a dúvida, o erro; ele é secundário, mas necessário, porque a idéia de interpretação transmitida por ele impõe o desejo de continuar, já que a interrupção supõe a noção de término e a possibilidade de não concretização do pensamento.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

domingo, 14 de março de 2010

BACHELARD: O TEMPO SUSPENSO ENTRE O ANTES E O DEPOIS


BACHELARD: O TEMPO SUSPENSO ENTRE O ANTES E O DEPOIS

NEUZA MACHADO



O repouso ― para Bachelard ― não se traduz por um estado de quietude, é antes um direito do pensamento (é um direito e condição que adquire o indivíduo que tem consciência de seus pensamentos). Desse modo, ao invés de se deixar dominar por momentos distensos, esse indivíduo coloca sua inteligência singular a serviço de fervilhantes e intensas especulações. O repouso fervilhante acrisolaria pensamentos díspares, que seriam posteriormente ordenados e julgados pela consciência pura.

Em estado de repouso fervilhante (repouso este sentido no nível da realidade temporal), Bachelard pensou a questão da duração das coisas e seres dentro do tempo. O filósofo, em estado de repouso fervilhante, reexaminou inicialmente a questão do espírito, lembrando-se de que, ao lado dos que afirmam (acreditam) as ações do espírito, há também os que as negam. Repensando a questão do espírito, pensou a questão da duração: a idéia de um tempo positivo, pleno, linear, cheio, completo não o satisfazia. Se ele podia considerar as ações negativas e positivas do espírito como igualmente importantes, poderia considerar também as ações negativas e positivas do tempo como igualmente importantes. Com base em tais questionamentos, passou a admitir a necessidade de fundar uma dialética do ser (existência) na duração.

Exercitando-se filosoficamente, sob o predomínio da meditação ativa, esvaziou o tempo vivido dos excessos, seriou os diversos planos de fenômenos temporais e percebeu posteriormente (depois do repouso fervilhante) que esses fenômenos temporais não duravam todos do mesmo modo. A idéia de um tempo único correspondia a uma visão de conjunto imperfeita à diversidade temporal dos fenômenos. Percebeu a ausência de sincronismo entre a passagem das coisas e a fuga abstrata do tempo e, examinando a fenomenologia da duração internamente, observando todos os seus planos temporais por um único ponto de vista analítico, apreendeu uma dualidade de acontecimentos e intervalos e concluiu, depois da meditação, que uma duração não é plena e contínua, ao contrário, fervilha de lacunas, se observada no detalhe de seu curso.

Evidentemente, Bachelard rejeita a tese da continuidade temporal, desenvolvida por Henri Bergson. E aproveitando-se do fato de que Henri Bergson postulou a idéia do nada em contraponto ao pleno, procurou recuperar o equilíbrio (uma espécie de plano de interseção) entre a passagem do ser ao nada e vice-versa.

Essa procura de recuperação do equilíbrio originou uma tese de base indispensável para alicerçar a alternativa entre o repouso e a ação, ambos em oposição. Para que esta tese obtivesse crédito, baseou-se numa concepção dialética da duração, solucionando com isto, inclusive, e além do esperado, sérios problemas colocados pela causalidade psicológica, ou seja, a origem ou motivo de problemas psicológicos.

Por tais princípios, repensando inicialmente a questão do espírito, pensou posteriormente a questão da duração e a questão do psiquismo. Observou que o psiquismo possui camadas e percebeu planos descontínuos em sua produção. Por exemplo, percebeu que a tão comentada continuidade na eficácia das motivações intelectuais, continuidade esta sempre reforçada pelos psicólogos radicais, não residia exatamente no plano intelectual. A continuidade intelectual estaria no plano das paixões, dos instintos, dos interesses, já que a continuidade, e se há realmente tal continuidade, "não existe nunca no plano em que um exame particular incide".

A continuidade psíquica, para Bachelard, coloca um problema, já que os encadeamentos psíquicos geralmente são hipóteses. A vida complexa é composta por uma pluralidade de durações díspares: ritmos diferentes, durações sólidas e insólitas em seu encadeamento, com potências desiguais em seus segmentos. A continuidade psíquica não seria nunca um dado específico e pleno, ao contrário, comporia sempre uma obra, construída pela pluralidade de durações, sob o lento ajuste das coisas e dos tempos, sob a ação do espaço sobre o tempo e a reação do tempo sobre o espaço e, em tal obra, permaneceria (historicamente) apenas a duração pela razão, tão diferente da duração pelas coisas.

Para Bachelard, a duração verdadeira possui várias formas: a ação real do tempo necessita da riqueza das coincidências, da sintonia dos esforços rítmicos. O ritmo promove um repouso garantido, possibilita o reencontro com os impulsos primeiros; seria, no caminho do ser, a noção temporal fundamental. Assim, os chamados fenômenos da duração seriam construídos com ritmos, ou seja, sistemas de instantes ou acontecimentos excepcionais, que marcam profundamente a vida temporal. Esses sistemas de instantes ou acontecimentos excepcionais sustentariam a regularidade da vida, os aspectos harmoniosos da vida, gerados por pensamentos estáveis e seguros. Por esta ótica, o repouso, como o quer Bachelard, seria uma vibração feliz, curando e desembaraçando a alma das durações malfeitas.

Opondo-se ao pleno bergsoniano, Bachelard sustenta a filosofia da negatividade, provando que uma vida rítmica, sustentada por pensamentos rítmicos e racionais (observar que Bachelard não está preocupado com o aspecto sentimental ou passional da questão), desembaraça a alma das falsas permanências, desorganizando-a temporalmente sob a égide da razão. A filosofia da negatividade direciona os esforços de dissociação até o tecido temporal e, com isto, ilude os ritmos malfeitos, aquieta os ritmos forçados, excita os ritmos langorosos, enfim, busca a síntese do ser no ajustamento do que está por vir, movimentando a vida sensatamente ritmada pelos sons equilibrados da livre intelectualidade.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sábado, 13 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 3


GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 3

NEUZA MACHADO



É preciso salientar, desde já, que o Artista passou posteriormente por diversas etapas de vida e de ficção. Houve um momento em que as forças imaginantes que dão vida à causa formal já não lhe bastavam, e ele sentiu o impulso da mão, modelando as imagens surgidas diretamente da matéria. Referindo-se a estas imagens da matéria e ao impulso da mão de quem as intui, num dado momento, Bachelard informa: "Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as torna mais leves” (Bachelard). Penso neste momento dinamizado como o momento da interiorização que propiciará a autêntica criação literária. Ainda, essas imagens da matéria são sonhadas substancialmente, intimamente, ou seja, não são aparentes, possuindo fundo e conteúdo. Já que são sonhadas substancialmente, conseguem afastar as "formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies” (Bachelard), tornando-se verdadeiras e permanentes.

"Sem dúvida, há obras em que as duas formas imaginantes atuam juntas. É mesmo impossível separá-las completamente. O devaneio mais móvel, mais metamorfoseante, mais totalmente entregue às formas, guarda ainda assim um lastro, uma densidade, uma lentidão, uma germinação. Em compensação, toda obra poética que mergulha muito profundamente no germe do ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria, toda obra poética que adquire suas forças na ação vigilante de uma causa substancial deve, mesmo assim, florescer, adornar-se. Deve acolher, para a primeira sedução do leitor “as exuberâncias da beleza formal” (Bachelard).

A imaginação formal pertence ao discurso formal (aqui, seguindo uma outra nomenclatura oriunda do discurso técnico), mas Bachelard pretende falar da forma, enquanto algo ligado ao mundo dos fenômenos vitais, sejam eles científicos ou literários. É preciso salientar que a literatura também pode ser classificada como pertencente ao mundo dos fenômenos, pois assim como a possibilidade de cura de qualquer doença, por exemplo, está latente na natureza, a espera de um cientista que lhe dê forma e em um tratado sobre o assunto, assim a Literatura-Arte (poesia ou prosa) se encontra a espera de quem lhe dê forma também.

Penso, apoiada exclusivamente na Ciência da Literatura, que o que Bachelard denomina de imaginação formal (o que poderia ser chamado de texto sintagmático), na literatura não necessita da imaginação material; mas a imaginação material (o que se classifica como texto paradigmático) não se realiza sem a colaboração da imaginação formal. A imaginação formal se apóia em um discurso superficial e sedutor e, por isto mesmo, indispensável, mesmo na literatura paradigmática (literatura-arte), para a sedução do leitor.

Sem dúvida, nas fases seguintes da recriação do sertão, Guimarães Rosa deixou que as duas forças atuassem conjuntamente, mas houve um aprimoramento privilegiando a imaginação material, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Este aprimoramento desenvolveu-se submetido à imaginação material dinâmica ou imaginação criadora, valorizando mais os aspectos do sertão ligados a uma atividade material infinita, portanto uma imaginação saída dos devaneios infinitos, possuindo uma riqueza inesgotável.

A primeira fase (as narrativas de Sagarana) foi o momento dos sonhos móveis e metamorfoseantes, submetidos à imaginação formal, enquanto fenômeno ou descoberta do sertão do passado, mas já se observa na narrativa "São Marcos" um princípio de densidade, de germinação, características da imaginação material. A Hora e Vez de Augusto Matraga, última narrativa do corpus de Sagarana, é o ponto alto desse princípio de dinamismo, é o embrião de Grande Sertão: Veredas e das narrativas seguintes. A Hora e Vez de Augusto Matraga sinaliza o momento de transição, em que se observa com nitidez a passagem do discurso memorialista, experiente (discurso ligado à imaginação formal) ao discurso moderno, fenômeno da Era Moderna.

Nas fases seguintes, a partir de Grande Sertão: Veredas, as narrativas passam a apresentar um alto teor poético diluído na forma ficcional, em páginas replenas de essência poética, submissas às forças da ação vigilante da causa substancial (causa material e dinâmica), objetivando revelar os aspectos profundos de um determinado Sertão. Mas as duas forças imaginantes continuaram a atuar, porque, além do predomínio da imaginação material dinâmica, aliada a um inegável perfume poético, o Artista continuou a valer-se dos adornos próprios da linguagem sertaneja, para a sedução do leitor.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

sexta-feira, 12 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 2


GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 2

NEUZA MACHADO



É válido realçar que qualquer texto (seja o didático: narrativas experientes, tratados de medicina, de filosofia, de religião, ou mesmo o texto-obra) deixa transparecer a dimensão histórica (real e mítica; a mítica sobressaindo-se menos em alguns casos), plano sintagmático, fechado, ideológico.

No texto didático, também conhecido como texto-objeto, de acordo com uma determinada nomenclatura teórica, além das literaturas assinaladas acima, enquadram-se também os textos literários que não alcançam a categoria de texto-arte. A literatura memorialista neste caso seria considerada como texto didático (paraliterário), porque a função do narrador é aconselhar, passar adiante as experiências comunitárias de um determinado núcleo social, incutir nos mais jovens o desejo de glorificar suas raízes valendo-se das experiências de guerra, parábolas moralistas, remanescentes de antigas tradições. Estes textos possuem aparência de literatura, comportam-se como literatura, mas não revelam a autêntica literatura, possuidora, além do plano linear e ideológico, de outras dimensões não-lineares.

Penso nas narrativas experientes, as novelas de procedência oral, como narrativas saídas da imaginação formal, já que estão ligadas ao plano diegético. A imaginação formal, segundo Bachelard, está ligada ao aspecto pitoresco e exterior da realidade, ao acontecimento inesperado, aos fenômenos que estão na natureza à espera de quem os descubra, portanto, teoricamente, ligada ao plano histórico-linear. Este tipo de imaginação expressa unicamente as imagens da forma, as imagens exteriores, ligadas à superfície, traduzindo pensamentos lineares e substanciais.

Por este ângulo, as novelas de cunho oral, remanescentes da Idade Média, memorialistas, moralistas, experientes, pitorescas, se enquadram ao que Bachelard chama de imaginação formal.

Independente de uma postura filosófica totalizante, e considerando também os ensinamentos da Ciência da Literatura, passo a nomear, nesta apreciação crítica, as narrativas diegéticas (e as narrativas de Sagarana, aquelas que antecedem A Hora e Vez de Augusto Matraga, são diegéticas, fechadas, reformuladoras de ideais comunitários, carismáticas e sentimentais) como narrativas pertencentes à imaginação que dá vida à causa formal. Evidentemente, há nelas uma sedução que as torna diferentes, e no entanto esta sedução não é descartada por Bachelard em sua teoria da imaginação formal.

Relendo as narrativas iniciais de Sagarana, encontra-se o impulso primeiro do Artista na novidade da descoberta do sertão, quando este narra submetido às imagens da forma exterior. A estória do burrinho pedrês (primeira narrativa do corpus de Sagarana), por exemplo, possui segmentos lineares e recompõe a dimensão real, marcando o tradicional, o regional, segundo o método de contar estórias.

"(...) um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro ou não (se sabe) onde no sertão" (Sagarana).

O pitoresco da novidade, da novidade de redescobrir o sertão por meio da literatura sintagmática, está visível, e é utilizando-se da imaginação, submetida ao aspecto formal da narrativa, que o leitor acompanha as descrições das minúcias exteriores de um lugar do passado histórico do Artista. É por intermédio dele também que o mesmo compactua com a sua convicção de nativo sertanejo, quando ele se propõe a resgatar imagens encantatórias ligadas ao seu inesquecível passado (universo infantil e juvenil), e com isto passa a acompanhar atento as aventuras de um corajoso burrinho velho, procurando salvar-se do temporal. Narrando as peripécias vividas por Sete-de-Ouros, ele impõe ao leitor a obrigação de apreciar o sertão, enquanto espaço geográfico, apresentando, concomitantemente, a sua razão sentimental transformando-se em causa formal (Bachelard), ao descrever a movimentação dos bois no curral, ao mesmo tempo que passa a sensação de realidade, ou seja, é como se o leitor estivesse vendo realmente toda aquela movimentação.

"Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebéias dos campos gerais, do Urucúia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosílios, barrosos, alaranjados; castanhos tirando a rubros, pitangas com longes pretos, betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras, tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame — curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro” (O Burrinho Pedrês”).

“Como correntes de oceano, movem-se cordões constantes, rodando remoinhos: sempre um vai-vem, os focinhos babosos apontando, e as caudas, que não cessam de espanejar com as vassourinhas. Somam-se. Buscam-se. O crioulo barbeludo, anguloso, rumina, estático, sobre os maus aprumos, e gosta de espiar o céu, além, com os olhos de teor morno, salientes. O espúrio gyr balança a bossa, cresce a cabeçorra, vestindo os lados da cara com as orelhas, e berra rouco, chamando a vaca malabar, jogada para o outro extremo do cercado, ou o guzerate seu primo, que acode à mesma nostalgia hereditária de bois sagrados, trazidos dos pascigos hindus do Coromandel ou do Travancor. Mudo chamado leva o garrote moço a impelir toda uma fileira, até conseguir aproximar-se de outro que ele antes nunca viu, mas junto do qual, e somente, poderá sentir-se bem. E quando o caracu-pelixado solta seus mugidos de nariz fechado, começando por um eme e prolongando-se em rangido de porteira velha, respondem-lhe o lamento frouxo do pé-duro e o berro em buzina, bem sustido e claro, do curraleiro barbatão" (O Burrinho Pedrês).

"De vez em quando, rebenta um tumulto maior. (...) O boieco china se espanta, e trepa na garupa do franqueiro, que foge, tentando mergulhar na massa. Um de cernelha corcovada, boi sanga sapiranga, se irrita com os grampos que lhe arpoam a barriga, e golpeia com a anca, aos recuões. A vaca bruxa contra-esbarra e passa avante o choque, calcando o focinho no toutiço do mocho. Empinam-se os cangotes, retesam-se os fios dos lombos em sela, espremem-se os quartos musculosos, mocotós derrapam na lama, (...), engavetam-se os magotes, se escoram, escouceiam. (...) Agora, se alertam, porque pressentem o corisco. Esperam que a trovoada bata pilão, na grota longe, e então se sobrechegam e se agitam, recomeçando os espiralados deslocamentos” (O Burrinho Pedrês”).

O discurso que dá vida à imaginação formal, exterior, é ágil, para simbolizar o movimento dos bois no curral, enquanto que o discurso que dá vida à imaginação interior, ainda formal, ou seja, que procura reconstituir a vida do burrinho sem muito aprofundamento, é moroso, para simbolizar a movimentação lenta do animal.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

quinta-feira, 11 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 1


GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 1

NEUZA MACHADO



Para observar a criação literária de Guimarães Rosa pelo prisma das idéias bachelardianas e tendo, como ponto de apoio, neste capítulo, seu estudo filosófico sobre “a água e os sonhos”, depreendi, em algumas narrativas roseanas, as duas imaginações assinaladas por Bachelard: a imaginação que dá vida à causa formal e a imaginação que dá vida à causa material.

Ligado à imaginação formal (aos aspectos visíveis da natureza), ele encontrou seu impulso inicial de apreensão da matéria na novidade da descoberta de um sertão próximo à sua vida, mas ainda não devidamente explorado literariamente. Desta descoberta, surgiram as narrativas de Sagarana, nas quais seus narradores (ou um único narrador?) se “divertem com o pitoresco, com a variedade, com o acontecimento inesperado” (Bachelard), resgatando um sertão primaveril sob a orientação das lembranças inesquecíveis.

As estórias apreendidas nos serões interioranos de Minas Gerais e os acontecimentos vividos na infância direcionam o seu olhar, submetido ao impulso da novidade, da descoberta, mas também, inicialmente, procurando revolver a poeira da terra sertaneja, o que possibilitará posteriormente a descoberta do âmago do sertão.

É possível, por estas razões, observar nas narrativas roseanas gradativamente as duas formas (formal e material, sendo que esta última em seus aspectos estáveis, em princípio, e dinâmicos nas fases seguintes), que compõem as forças imaginantes do ficionista, somadas à força da imaginação criadora, o que o impele a alcançar os cogitos superiores da consciência pura descrita por Gaston Bachelard.

“É necessário que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz. Mas, além das imagens da forma, tantas vezes lembradas pelos psicólogos da imaginação, há (...) imagens da matéria, imagens diretas da matéria. A vista lhes dá nome, mas a mão as conhece. Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as torna mais leve. Essas imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente, intimamente, afastando as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração” (Bachelard)

A causa sentimental do Artista, nas primeiras narrativas de Sagarana, é o sertão de sua infância e juventude. As narrativas roseanas convivem, em princípio, com as lembranças e, posteriormente, com as recordações (matéria lírica, razão do coração), sob a forma de prosa repleta de teor poético. Esta causa sentimental, nas narrativas de Sagarana, se liga à imaginação formal, já que elas refletem os aspectos exteriores do sertão.

Em A Hora e Vez de Augusto Matraga, o agora Criador Literário alcança a imaginação material, inicialmente estável e posteriormente dinâmica, ou seja, descobre as imagens que surgem diretas da matéria, e o sertão se transmuda, emergindo diretamente de suas mãos demiúrgicas. A partir desta fase, há a introjeção profunda "no germe do ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria", mas é também a partir desta fase que o indivíduo consciente passa a atuar, remodelando seu espaço de origem, recriando-o, afastando "as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir da superfície” (Bachelard).

As duas forças convivem harmoniosamente em toda a obra roseana, mas é inegável que, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, a imaginação que dá vida à causa material, em seu aspecto dinâmico, se sobressai. É possível desta forma detectar nas posteriores narrativas, incluindo Grande Sertão: Veredas, a exclusão do tom oral das narrativas experientes, reconhecidamente ligadas à imaginação formal, reprodutoras de experiências de vida.

Teoricamente, posso dizer que há três dimensões espaciais compondo uma obra. Há por exemplo as dimensões real e mítica, sintagmáticas, ligadas ao plano da História, ponto de apoio indispensável para a realização da proposta de realidade ficcional. No plano paradigmático (vertical), há a dimensão mimética ou do imaginário-em-aberto, no qual se instalam as metáforas e as imagens maiores intimamente ligadas às recordações, privilégio exclusivo de um mundo não-substancial. Neste plano, estariam todas as imaginações da dimensão sintagmática, mas já livres das pulsões inconscientes, já submetidas a uma nova realidade imagética, renovadora dos arquétipos inconscientes. Submetida aos preceitos da filosofia bachelardiana, asseguro que as duas dimensões lineares (ambas sintagmáticas) abrigariam, teoricamente (repito), as imaginações formal, material e falada, todas englobando imagens substanciais, palpáveis ou impalpáveis.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8