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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

XIV - A AUTORIDADE DO DOM DA GRAÇA


XIV - A AUTORIDADE DO DOM DA GRAÇA

NEUZA MACHADO


Em A Hora e Vez de Augusto Matraga, o narrador abandona a proposta de narrativa centralizada no mítico (herói) e concentra na substância carismática o seu anseio de reestruturação do personagem. A face carismática de Nhô Augusto começa a se delinear a partir de seus padecimentos físicos e morais.

O narrador, sintagmático, deseja “aconselhar”, passar adiante as experiências comunitárias do sertão. Por enquanto, ainda não tomou a vez dentro da estória narrada.

O carisma de Nhô Augusto começa a delimitar-se por intermédio desse desejo do narrador de reestrutura-lo, e, ao mesmo tempo, reestruturar-se. Ele se encontra ainda no plano diegético e vale-se de forças substanciais, no caso substância religiosa, para dar continuidade à narrativa. Há ainda o fio narrativo linear estruturando o sentido do ato de narrar. Por esta perspectiva, se vê envolvido pelos dogmas religiosos que compõem o espaço comunitário do sertão, e, por sua vez, “toma” seu futuro personagem ficcional, representante, no momento, de uma face de sua vida. Percebo neste narrador, especificamente, aquele que conhece um determinado espaço, onde as experiências de guerra e as parábolas moralistas são passadas de geração a geração. A “queda” e a tentativa de reestruturação simbolizam as alterações substanciais do Mundo.

Esta segunda fase/face do personagem se assimila (se repenso as diretrizes weberianas) à "autoridade do dom da graça".

Por sorte, um preto que morava na boca do brejo viu quando o corpo de Nhô Augusto caiu precipício abaixo, e viu também quando os capangas do major se afastaram. O preto e sua mulher encontraram vida no corpo maltratado e procuraram fazê-lo recuperar-se.

No princípio, nos raros momentos de lucidez, pedia que o matassem; mas, aos poucos, quis viver. Enquanto se recuperava, podia pensar.

Sobretudo, pensar. Não é pelo pensamento que o homem reencontra seus poderes perdidos? O homem que pensa, possui poder. Observem os intelectuais. Pensar é o início do poder. Pensar e saber.

O personagem começa a pensar em uma nova forma de reestruturar-se. A seguir, faz-se necessário defender-se contra o espaço (o mundo com suas fortes ideologias) e os acontecimentos imprevisíveis, mas o espaço social, nesta etapa da narrativa, escamoteia tal pretensão, impondo-lhe a substância religiosa que sobrevive sob diversos matizes no sertão.

Cavada pelo pensamento, veio à tona a perdida religiosidade que se escondia no passado, plantada na infância pela avó que o criara, agora estimulada pela preta velha Quitéria que lhe salvara a vida. Dogmas religiosos, atitudes de vida, apelos morais, imposições normativas: cercas conceituais, limitadoras e frustrantes.

O narrador memorialista recomeça.

No princípio da narrativa, a representação do poder hierárquico em decadência. Ali observo o personagem Nhô Augusto prestes a perder a “aura”. A autoridade do “ontem eterno” em vias de extinção, em um mundo que procurou se conservar comunitário. Entretanto, já houve essa ruptura. O espaço comunitário do sertão resistiu às investidas do progresso moderno durante vários séculos, mas se encontra agora nos últimos estágios de decomposição. Faz-se urgente reerguer-se. A “queda” simboliza os momentos críticos da Vida. É lícito observar que, depois das grandes desgraças, surgem os líderes carismáticos, procurando reordenar a desordem.

Nhô Augusto pensa em uma nova forma de preservar o poder. Não o antigo, mas um poder que o eleve acima do comum dos mortais, pois o narrador agora se submete à religiosidade e ao comando da narrativa de espaço.

Um dia o personagem resolveu confessar-se. O padre veio, trazido pelos pretos, às escondidas. O novo homem, que emergia da carcaça amassada do antigo e sanguinário Senhor-de-terra poderoso, necessitava da absolvição de seus pecados, do perdão daquele Deus do qual estivera tão distanciado. O padre o absolveu e garantiu-lhe que Deus não desampara os que se arrependem. Por intermédio do padre, a voz do pensamento religioso impôs seus preceitos.

Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina de sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... cada um tem a sua hora e vez: você há de ter a sua.
[1]

O carisma significa o “dom da graça”. Somente os privilegiados, os líderes poderosamente dotados de milagres e revelações, feitos heróicos e êxitos no que se propõem a fazer, o possuem. Assim, o personagem, que acabara de sofrer uma “morte” sócio-substancial, percebe, por intermédio das palavras do padre, a sua chance de reestruturar-se.

Para este recomeço, se necessita de um “novo” revestimento para o personagem, e de um “novo” cenário. Assim, o narrador transporta o cenário para um sítio que Nhô Augusto possuía, e nem sequer conhecia, perdido no sertão. Nhô Augusto levou consigo os pretos samaritanos, que a ele se apegaram e não o quiseram largar.

Ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços em cruz, e jurou: — Eu vou para o Céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... Pra o Céu eu vou, nem que seja a porrete!...
[2]

Seria o aparecimento do líder carismático? À imitação de Jesus Cristo, Nhô Augusto sai em peregrinação, levando consigo os primeiros apóstolos.

Segundo Weber, o que é carisma:

1o) Os líderes naturais nas dificuldades foram os portadores de dons específicos do corpo e do espírito, dons esses considerados como sobrenaturais, não acessíveis a todos.

2o) O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna. O seu portador toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência a um séquito em virtude de sua missão.

3o) O carisma vive neste mundo, embora não seja deste mundo.

4o) O carisma, e isto é decisivo, sempre rejeita como indigno qualquer lucro pecuniário que seja metódico e racional. Em geral, o carisma rejeita todo comportamento econômico racional.

5o) Para fazer justiça à sua missão, os portadores do carisma, o mestre bem como seus discípulos e seguidores, devem manter-se distantes das ocupações rotineiras, bem como distantes das obrigações rotineiras de família.
[3]

Nhô Augusto, se não possuía todos estes pré-requisitos carismáticos, estava no caminho de os adquirir.

E assim se deu que, lá no povoado do Tombador (...) apareceu, um dia, um homem esquisito, que ninguém podia entender.

Mas todos gostaram dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender deixaram para depois.
[4]

Este trecho remete à primeira afirmativa de Weber, pois se Nhô Augusto era meio doido e meio santo, possuía dons específicos do corpo e do espírito, dons que, na maioria das vezes, são considerados sobrenaturais.

Na segunda afirmativa, o autor diz que o carisma só conhece a determinação e a contenção interna.

Quando o Tião da Thereza, personagem providencial, passou lá pelo Tombador, à procura de trezentas reses, e o encontrou, logo foi dando as notícias que ninguém tinha pedido. Nhô Augusto sentiu a ferida se reabrindo, mas se conteve, e pediu ao Tião que esquecesse o encontro e continuasse vendo-o como um homem que já morrera:
Não é mentira muita, porque é a mesma coisa em como se eu tivesse morrido mesmo... Não tem mais nenhum Augusto Esteves das Pindaíbas, Tião...
[5]

Verdade. Este carismático não é Nhô Augusto das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Este poder carismático representa uma outra face do Brasil incrustado no sertão, representa uma camada do povo sertanejo, repleno de experiências e normas religiosas. Representa as oscilações ideológicas do narrador. Representa o oposto do homem-mau — Augusto Esteves —, ou seja, o homem-bom, o carismático.

Se há desprezo no olhar do Tião — personagem da anterior sequência —, há, por outro lado, a determinação na atitude de Nhô Augusto. Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para alcançar o reino-do-céu.
[6]

O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna (segunda afirmativa). O carisma vive neste mundo, embora não seja deste mundo (terceira afirmativa).

Na quarta assertiva, Weber informa que o carisma rejeita lucros pecuniários. Não restam dúvidas: Nhô Augusto já desenvolvera seu lado carismático.

Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e nem se importava com acrescentes; o que vivia era querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse.
[7]

Quanto à última afirmação, que os carismáticos devem manter-se distantes dos laços deste mundo:

Quem quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria grossa bobagem, porque ele não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado e dava rezas a sua alma.

Também não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom parecer das mulheres, não falava junto em discussão.
[8]

Os dogmas religiosos impuseram, até aqui, atitudes de vida. Encontra-se o narrador preso à exterioridade da narrativa, ao desejo de retratar os fatos retirados da matéria histórica.

Em breve, o contador de estórias despertará e caminhará sob o domínio do narrador moderno (aquele que faz parte do mundo desordenado do final da Era Moderna, já se distanciando historicamente dos valores da medieva ordem do sertão mineiro). Em breve, o Artista ficcional dará uma nova vida aos personagens. Em breve, Nhô Augusto se transformará em personagem ficcional (personagem exemplar) e o narrador passará a centralizar a narrativa.

Devo ressaltar a figura de seu Joãozinho como outro líder carismático. Não um carismático religioso, mas guerreiro. Falarei sobre este personagem mais adiante, e o relacionarei à última afirmativa de Weber.

Por ora, observo que já se delineia uma nova transformação na narrativa, submetida à transformação discursiva do narrador.

Depois do episódio de Tião da Thereza, o personagem Nhô Augusto, já vivenciando sua fase de transição, recomeçou a pensar no antigo poder e a desprestigiar um pouco seu novo modo de vida.

O poder, de acordo com Foucault, instaura-se a partir de um exercício do poder. Onde há poder, o exercício do poder é acionado. Não há como pensar o Poder, simplesmente, observa-se seus sinais e materialização. O poder — o exercício do poder — se realiza sob uma organização, em que todos que dispõem dele são peças-chave, desde o guarda civil ao Presidente. Não há como localizá-lo, pois ele é prerrogativa de uma maioria (ou minoria) que o exerce como conduta arbitrária, em maior ou menor grau.
[9]

O poder carismático não satisfaz ao personagem, porque ele já conhecera o poder arbitrário. O religioso possui poder, mas esse poder se opera em nome de um outro poder maior. Daí, para a apresentação do autêntico desenvolvimento ficcional (paradigmático), surge uma outra nova transformação. Daí, o desejo de retomar o antigo prestígio; o desejo de rebelar-se contra as imposições religiosas. Daí, a transformação do narrador, conhecedor das transformações históricas do Poder.

Mas, daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tristeza. E, com a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas malfeitas, uma vontade sem calor no corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto de outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros sabiam viver.

Mas, e a vergonheira atrasada? E o castigo? O padre bem que tinha falado:

“— Você, em toda a sua vida, não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para um pecador ter idéia do que o fogo do inferno é!... (...)
[10]

Ainda os preceitos religiosos, o mito do castigo divino sempre renovado através dos tempos.


[1] Ibidem: 22
[2] Ibidem: 23
[3] WEBER (1979): 285-286
[4] ROSA (1986): 24
[5] Ibidem
[6] Ibidem: 27
[7] Ibidem: 24
[8] Ibidem: 25
[9] FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979
[10] ROSA (1986): 27


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

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