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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

3 – MUNDO RURAL DESAGREGADO: TEMA DOS ESCRITORES BRASILEIROS DAS DÉCADAS DE 30 E 40 (SÉCULO XX)

NEUZA MACHADO


É também esse mundo rural desagregado que passou a ser o tema dos escritores das décadas de 30 e 40. A literatura desse período, segundo Antônio Cândido, estava centralizada na “dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos[1]. E é nesse período também (1946) que Guimarães Rosa publicou Sagarana, uma coletânea de contos, na qual, excetuando A hora e vez de Augusto Matraga, se observou o “nacionalismo literário”, ou seja, a recriação do dialeto caipira, e o “inconformismo[2], em outras palavras, a rejeição a padrões preestabelecidos.

A idéia de “localismo e cosmopolitismo” na obra roseana da primeira fase se sobressai, porque o autor, a partir daquele momento, procurou valorizar um determinado espaço geográfico, mas, idealizou também, como diz Antônio Cândido, “um compromisso mais ou menos feliz de expressão com o padrão universal
[3].

Nas fases seguintes, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, espécie de narrativa-embrião de Grande Sertão: Veredas, não mais se observou o sertão roseano como um determinado local, pois o mesmo se transmudou em autêntico espaço universal.

Repensando a ENTREVISTA de Guimarães Rosa ao crítico Günter Lorenz (1965), percebe-se uma ligação fortíssima do escritor com suas origens européias. Na Entrevista ele afirmou que uma parte de sua família, pelo sobrenome, reportava-se a uma “origem portuguesa, mas na realidade [seria] um nome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo da Lusitânia
[4]. Afirmou ainda que, pela sua origem, estava “voltado para o remoto, para o estranho”.

Se as narrativas de Sagarana, excetuando, como já foi dito, a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, procuraram realçar o sertão mineiro (cf: “O burrinho pedrês”, “Sarapalha”, “São Marcos” e outras), as narrativas seguintes se ligaram a este aspecto remoto e estranho de suas origens. O sertão roseano, criado a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, perdeu o aspecto de local para atingir o universal, porque, diferente do sertão de Minas, e ligado às transmutações vivenciais de seu criador, transformou-se em produto de uma mente já citadina e individual, auto-reflexiva e especulativa. Na verdade, este sertão da segunda fase de Guimarães Rosa, não se ligava ao “localismo literário” da década de 40, e muito menos procurava criar uma língua diversa com o intuito de se opor a padrões preestabelecidos. A linguagem sertaneja, ou a língua que se fala [ficcionalmente] no universo roseano, tende para o universal, porque metafisicamente caracteriza um espaço ligado ao plano da eternidade e da solidão, como o próprio Guimarães Rosa admitiu na ENTREVISTA.

"Goëthe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Göethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo".

"Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Göethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade e da solidão, onde Inneres und Äusseres sund nicht mehr zu trennen (“O interior e o exterior já não podem ser separados”)".
[5]

Nestas palavras não se observa o “conformismo” de quem fez/faz parte de uma sociedade subdesenvolvida, “conformismo” que caracterizava uma parte dos escritores do período de 1900 a 1945, porque o escritor, naquele momento, já se transformara em cidadão do mundo.

"Conheço bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus é para mim muito importante. Amo Göethe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil, Franz Kafka, a musicalidade de pensamento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos estes autores me impressionaram e me influenciaram muito intensamente, sem dúvida. Entretanto, não sei o que fazer com autores mais jovens como Brecht. Todos eles perderam o sentido da metafísica da língua, todos eles se tornaram pregoeiros e deixaram de lado a alma, considerando-a fora de moda, em desacordo com a época e acreditando que o homem seria apenas um Wolfsburg-Mensch (“Homem de Wolfgsburg”)".
[6]

O escritor de substâncias mineiras se transformou em cidadão do mundo, e teve consciência de que recebeu influências européias. Como todos os escritores de sua geração, recebeu influências, como ele mesmo afirmou, mas em sua literatura não há a imitação consciente de padrões europeus, comportamento normal no período da noção aguda do subdesenvolvimento, segundo Antônio Cândido. Não seria correto procurar tal atitude em Guimarães Rosa. O que posso destacar, nesse sentido, estaria ligado a valores metafísicos e universais. Se houve influências que, em outros casos, induzem à imitação, tais influências se transmudaram em criatividade própria, a partir do momento em que atingiu o patamar da consciência pura
[7].

Ainda reconsiderando as palavras de Guimarães Rosa ao crítico Lorenz com atenção, vejo que quem fez todas aquelas preleções sobre a literatura alemã não foi o sertanejo, o nativo do sertão mineiro, foi o intelectual que alcançou o repouso reflexivo, de acordo com as teorias bachelardianas (op. cit.), repouso este que precedeu ao despertar de sua consciência individual.

Por minha parte, se penso em seu narrador de A hora e vez de Augusto Matraga e nos narradores das fases seguintes, vejo que, induzidos pelo ficcionista, assumiram o caminho individual que os levaria, logo a seguir, à auto-reflexão, a tal qualidade essencial exigida para se chegar ao objetivo individual, qualidade esta que caracteriza o indivíduo inteligente.


[1] CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1980: 109
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4]ROSA, João Guimarães. In.: ARTE EM REVISTA. “Literatura e Vida” – Ano I – no 2, maio/agosto, 1979. Publicação do Centro de Estudos de Arte Contemporânea, p. 7
[5] Idem, p. 13 (Tradução da frase em alemão: “O interior e o exterior já não podem ser separados”)
[6] Idem: 14 (Tradução da expressão em alemão: “Homem de Wolfgsburg” = símbolo da civilização técnica)
[7] Cf. BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.


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