XII - A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR
NEUZA MACHADO
O narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa transmite aos leitores as notícias do sertão arcaico — sertão como distância e fundamento —, demonstrando que o poder meio primitivo dos donos-de-terra, nos sertões brasileiros, foi uma constante e, talvez, ainda o seja, em virtude de o sertanejo ser muito apegado às tradições e aos valores antigos. Graças a esse apego, a arte de narrar sobreviveu até há pouco tempo em algumas regiões rurais do Brasil, e as figuras que ali se sobrepuseram em força e poder político alcançaram níveis lendários, equiparando-se aos notáveis heróis registrados nas Literaturas de todos os tempos.
As experiências de vida, ditas por Benjamin[1], são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os mais jovens as experiências dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar, incentivar à geração futura o desenvolvimento de atos heróicos. Por esta ótica, o povo sertanejo mantém um vínculo permanente com os povos primitivos.
O narrador roseano, em princípio, capta essa matéria remanescente dos povos antigos ainda subjacente no sertão, e procura desenvolver uma narrativa dentro dos moldes da troca de experiências. Ele se propõe a contar a vida de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.
Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:
O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder.[2]
Esta assertiva de Weber se evidencia na narrativa de João Guimarães Rosa. É exatamente isto o que acontece (ainda acontece) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades. A realidade se apresenta em seus aspectos mais degradantes: homens dominando homens por meio da violência, homens escorados em instituições aparentemente criadas para servir, mas que se transformam em forças geradoras de dominação.
Neste duplo aspecto se organizam as sequências ficcionais de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Por um lado, a narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado e, por outro lado, a narrativa em que estas experiências são negadas por um outro mundo abalado por sucessivas e inesperadas violências.
Graças a esta dualidade, as sequências diegéticas acopladas ao pensamento mimético atingem um plano universal de raras proporções. A narrativa capta a incerteza social que envolve coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e, de repente, percebe-se que aquele espaço grandioso é o próprio mundo, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.
Penso em Guimarães Rosa como refletor da burguesia periférica brasileira. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa, mediatizado pelo narrador, é um ponto de vista burguês. Percebo, nas primeiras sequências da narrativa, o narrador como porta-voz das experiências do Artista, mas, posteriormente, passa a representar uma classe social. Mesmo que este demonstre uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando o narrador se liberta do jugo memorialista, deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de um mundo que representa suas raízes de vida. Se ele possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse mundo, possui também sensibilidade para observar que esse mundo se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.
Neste duplo aspecto, enquanto apreensão da matéria, estrutura-se a narrativa de Guimarães Rosa: se o político luta pelo poder, ou pelo prestígio advindo do poder, o Senhor-de-terra do sertão também luta pelo poder. É uma luta feroz, porque é feita por meio da força física e dominação.
[1] BENJAMIN (1980), op. cit.
[2] WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979: 98-99
NEUZA MACHADO
O narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa transmite aos leitores as notícias do sertão arcaico — sertão como distância e fundamento —, demonstrando que o poder meio primitivo dos donos-de-terra, nos sertões brasileiros, foi uma constante e, talvez, ainda o seja, em virtude de o sertanejo ser muito apegado às tradições e aos valores antigos. Graças a esse apego, a arte de narrar sobreviveu até há pouco tempo em algumas regiões rurais do Brasil, e as figuras que ali se sobrepuseram em força e poder político alcançaram níveis lendários, equiparando-se aos notáveis heróis registrados nas Literaturas de todos os tempos.
As experiências de vida, ditas por Benjamin[1], são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os mais jovens as experiências dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar, incentivar à geração futura o desenvolvimento de atos heróicos. Por esta ótica, o povo sertanejo mantém um vínculo permanente com os povos primitivos.
O narrador roseano, em princípio, capta essa matéria remanescente dos povos antigos ainda subjacente no sertão, e procura desenvolver uma narrativa dentro dos moldes da troca de experiências. Ele se propõe a contar a vida de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.
Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:
O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder.[2]
Esta assertiva de Weber se evidencia na narrativa de João Guimarães Rosa. É exatamente isto o que acontece (ainda acontece) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades. A realidade se apresenta em seus aspectos mais degradantes: homens dominando homens por meio da violência, homens escorados em instituições aparentemente criadas para servir, mas que se transformam em forças geradoras de dominação.
Neste duplo aspecto se organizam as sequências ficcionais de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Por um lado, a narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado e, por outro lado, a narrativa em que estas experiências são negadas por um outro mundo abalado por sucessivas e inesperadas violências.
Graças a esta dualidade, as sequências diegéticas acopladas ao pensamento mimético atingem um plano universal de raras proporções. A narrativa capta a incerteza social que envolve coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e, de repente, percebe-se que aquele espaço grandioso é o próprio mundo, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.
Penso em Guimarães Rosa como refletor da burguesia periférica brasileira. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa, mediatizado pelo narrador, é um ponto de vista burguês. Percebo, nas primeiras sequências da narrativa, o narrador como porta-voz das experiências do Artista, mas, posteriormente, passa a representar uma classe social. Mesmo que este demonstre uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando o narrador se liberta do jugo memorialista, deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de um mundo que representa suas raízes de vida. Se ele possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse mundo, possui também sensibilidade para observar que esse mundo se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.
Neste duplo aspecto, enquanto apreensão da matéria, estrutura-se a narrativa de Guimarães Rosa: se o político luta pelo poder, ou pelo prestígio advindo do poder, o Senhor-de-terra do sertão também luta pelo poder. É uma luta feroz, porque é feita por meio da força física e dominação.
[1] BENJAMIN (1980), op. cit.
[2] WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979: 98-99
MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)
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