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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

II - AS SEQUÊNCIAS DO FICCIONAL

NEUZA MACHADO



II - AS SEQUÊNCIAS DO FICCIONAL

NEUZA MACHADO



Para legitimar este meu compromisso inicial com a Semiologia da Literatura (de Segunda Geração), é necessário informar que sequências esquemáticas são modelos analíticos que possibilitam a compreensão de certas unidades estruturais. As instruções semiológicas, esquemáticas, se revelam aqui como alicerce da construção de meu pensamento, que tem por proposta decodificar as várias faces/fases do narrador de A hora e vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa, procurando decodificar também as faces/fases do narrador em geral.

Por tais diretrizes, dividi o texto em cinco sequências (ver no livro os esquemas), objetivando estruturar o desenvolvimento de minhas idéias e o futuro entendimento do leitor.

Submetida aos postulados da semiologia de base histórica, explicando a forma de comunicação do Homem, apreendi, ao longo do desenvolvimento da análise, as duas dimensões do Histórico: as realidades sócio-substancial e mítico-substancial, sintagmáticas. (Não será demais observar, desde já, que o teor ― paradigmático ― de A hora e vez de Augusto Matraga só se torna apreensível quando se desenvolve uma busca fenomenológica, ou seja, uma compreensão das entrelinhas. É de vital importância esclarecer que, nesta primeira etapa, desenvolvo apenas uma análise do plano visível da narrativa).

O termo "substancial" passa a nomear, a partir de agora, o conjunto de idéias, mentalidades e significações, algo próximo daquilo que os marxistas chamam de ideologia.

Prefiro utilizar a palavra substancial ao invés de ideologia, para evitar complexas discussões, tais como ideologia dominante ou outras questões não ligadas ao núcleo de meus argumentos.

Retomando as explicações sobre as sequências ficcionais, assento que, além das cinco supracitadas, se destacam algumas mini-sequências, subdividindo a primeira etapa, nas quais se apreendem as duas dimensões já assinaladas. Estas mini-sequências estruturarão, a seguir, a compreensão e apreensão das etapas evolutivas da narrativa.

Não posso evitar, nestas primeiras páginas, de referir-me a assuntos que só serão explicados muito depois. Neste caso estão as referências religiosas, referências estas que explicitam as transformações do personagem Augusto Matraga como representante do narrador ficcional do século XX. Essas transformações constituem elementos de base dos acontecimentos vindouros, os quais acarretarão o desfecho da narrativa. Assim, além das cinco sequências do plano esquemático, há aquela sequência que se refere à infância do personagem (apreendida por intermédio de trechos esporádicos que estruturam a face do carismático-religioso, face esta problemática e ambígua), que irá gerar posteriormente o conflito do personagem (e do narrador). Utilizei o termo carismático-religioso porque, segundo Max Weber, há o carismático-guerreiro. O personagem Joãozinho Bem-Bem seria a imagem ficcional do carismático-guerreiro.

Permita o leitor uma rápida digressão: as referências religiosas à infância e ao passado do personagem têm como função significar seu caráter desencontrado e instável, o que motivará o desejo de reequilíbrio após a queda.

Certamente, o leilão é o elemento desencadeador dos acontecimentos vindouros, mas não posso deixar de destacar as referências de ordem religiosa, pois são elas que sustentam o espaço mítico-substancial do sertão roseano; ― utilizando outras palavras ― a religiosidade mítico/mística do povo sertanejo, inserida na narrativa ficcional, encaminha os leitores a um leilão de santo. São elas, as referências religiosas, que sustentam também o personagem: aquele que fora criado por avó beata, que queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha.
[1]

O plano sintagmático religioso vem inserido na narrativa por meio de trechos intercalados, os quais provam não ter sido somente a perda dos poderes políticos que levaram o personagem a desenvolver uma outra espécie de poder — o poder carismático-religioso —, para impor-se como personagem e novamente submeter o espaço (sócio-substancial) a seu raciocínio. A religiosidade lhe fora incutida na infância, por intermédio da avó e do próprio espaço (sócio-substancial). A narrativa prova que o espaço contribuiu para que esses conceitos ficassem em incubação. Outros fatores ajudaram e impediram que o personagem não desenvolvesse a religiosidade de seu caráter, e isto o narrador também procura transmitir. Por exemplo, o pai leso, o tio criminoso, a morte da mãe.

Fora assim desde menino, uma meninice à larga; de filho único de pai pancrácio.
[2]

Fala do tio de Dionóra, lamentando a sina da sobrinha:

Mãe de Nhô Augusto morreu, com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era p’ra chefe de família... Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira...
[3]

A avó procurou transmitir-lhe conceitos religiosos:

Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...
[4]

Só depois da surra sofrida essa religiosidade aparece:

E ele teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça, de repassar as misérias de sua vida. Mas mordeu a fala e não desabafou. Também não rezou. Porém a luzinha da candeia era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas, mas todas de bom e bonito final.
[5]

A luzinha da candeia funciona como interseção, ligando o passado do personagem ao seu futuro desejo de reestruturar-se.

[1] ROSA, Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986: 13.
[2] Ibidem: 12
[3] Ibidem: 13
[4] Ibidem
[5] Ibidem: 21

MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

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