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domingo, 24 de janeiro de 2010

V - O MÍTICO-SUBSTANCIAL EM A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA DE GUIMARÃES ROSA

NEUZA MACHADO


A objetividade histórica presente na narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, como estrutura da proposição de realidade ficcional foi apreendida por intermédio de dois planos sintagmáticos que se fundem: o Sócio-Substancial e o Mítico-Substancial. O sertão desta narrativa compõe-se de “matéria” épica em estado bruto (não confundir com gênero épico): é um espaço onde se confundem demandas, superstições, misticismos. Ali, o sobrenatural faz parte do cotidiano do sertanejo. O personagem desta ficção poderá ser avaliado como um remanescente do homem arcaico, possuidor — ainda — de todos os valores que estruturavam as Idades que precederam a Era Moderna.

No primeiro segmento, destaca-se a figura do personagem como herói, tanto dentro da perspectiva mítica quanto histórica. O personagem (neste momento, não penso nele como herói ficcional) atuando nos dois planos conceituais da realidade, é o Todo Poderoso que submete o povo a seus desígnios. No entanto, como a ficção não se enquadra na categoria de épica (em versos), apenas possui a matéria mítica que garantirá uma interação entre os dois planos, este personagem ficcional do século XX (já revelando a decadência das normas severas do "ontem eterno"), caminha para uma desestruturação, característica do modelo romanesco moderno. Mesmo assim, apreendem-se nela (nesta narrativa em especial) elementos que fazem parte da substância épica.

O herói (apenas na primeira fase sequencial) se movimenta em seu espaço mítico/místico (novena, leilão de santo, procissão, reza, igreja iluminada), possuindo poderes próprios. Está tão distanciado de Deus, é tão ruim, que na hora do sofrimento físico e moral, invocando-o, Este não o atende, nem para um fôlego (p. 20).

Neste espaço primitivo se sobrepõe quem é forte. Aos fracos cabe obedecer, pois quando um forte perde seus poderes de liderança é castigado com a morte pelo vencedor.

Outro signo mítico que está presente nesta primeira seqüência é o fogo. Este foi considerado, na Antiguidade Romana, divindade primordial da religião doméstica. Era o elemento sagrado que ardia dia e noite nos lares romanos, protegendo-os das influências negativas do cotidiano. Na Idade Média, torna-se um símbolo purificador. Em sua caça às bruxas, o cristianismo utilizou-o como forma de punição. Assim está presente na narrativa. Enquanto símbolo religioso, o fogo (mitificado) acompanha toda a trajetória do herói até o momento de sua queda. As candeias iluminam o cenário mítico/místico (lanterninhas e muita luz de azeite), na hora do sofrimento e prenúncio de morte a preta procurou um coto de vela benta, para ser posta na mão do homem, na hora do Diga Jesus comigo, irmão... (p. 19), ao longo do processo de restabelecimento (do personagem e da narrativa), a preta acendia a candeia e trazia para perto do doente uma estampa de Nossa Senhora do Rosário, e o terço (p. 21). Essa luzinha fazia-o lembrar-se de sua infância, era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas, mas todas de bom e bonito final (p. 21). E não há como esquecer que por intermédio fogo o herói foi punido. A marca do ferro em brasa irá acompanhá-lo até a morte.

Destaquei no primeiro segmento da narrativa as características do mítico, porque é nesse momento inicial que se observam estes dados com mais clareza. O sertão roseano é a própria essência da matéria mítica, e é também o cenário estruturador de toda a narrativa.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)


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