NEUZA MACHADO
Minha proposição teórico-interpretativa sobre o assunto se estrutura a partir deste questionamento: se o sertão roseano possui matéria mítica (matéria épica) em estado bruto, se é um espaço representativo de um mundo ordenado, onde só há respostas e as perguntas inexistem, quem é o representante da moderna sociedade individualista nascida da produção para o mercado (cf: BENJAMIN, Walter. OS PENSADORES, 1980), nesta narrativa moderna?
Em A Hora e Vez de Augusto Matraga sobressai-se a figura do narrador como porta-voz das experiências do Artista, ou seja, o ficcionista como representante do povo sertanejo, no que se refere às suas origens e das elites burguesas. É ele o mediador nos limites das duas classes sociais, ultrapassando as fronteiras míticas, fechadas, e passando a vivenciar o para sempre inacabado mundo moderno. Se o real precisa ser criado e demonstrado logicamente, é necessário que o Artista Ficcional se valha de um narrador em fase de transição, para apresentar uma comunidade pura e o seu herói — comunidade já em vias de extinção —, isolados pelo Caos do Mundo da Modernidade. O narrador aqui é o autêntico personagem moderno (não é o Nhô Augusto), é o narrador o herói problemático, porque apenas ele se movimenta entre os dois espaços da narrativa: o perfeito e o inacabado. O sertão é rico em matéria épica, mas miniatural se observado por um narrador memorialista. A modernidade já vai perdendo contato com a memória e os conselheiros já não ditam normas de vida. O sertão se revela mais enriquecedor e vasto se observado por um narrador reflexivo, conhecedor de um outro mundo, onde os perigos estão à espreita de quem se impor desvendar os segredos do Insólito (do Desconhecido).
Goldmann questiona o fato de o romance, forma literária complexa, materializar-se, durante séculos, por diversas maneiras e por intermédio de escritores diferentes entre si, em países distantes uns dos outros, transmitindo, diacronicamente e sincronicamente, no plano literário, o conteúdo de cada época. Para Goldmann, a forma romanesca transpõe para o plano literário ficcional o cotidiano da sociedade individualista, nascida da produção para o mercado.
O normal, numa sociedade produtora para o mercado, seria a relação natural entre homens e bens, relação em que a produção é conscientemente regida pelo consumo futuro, pelas qualidades concretas dos objetos, por seu valor de uso. A produção para o mercado não admite tal consciência e elimina esta relação entre homens e bens em geral. A relação social da produção, na fase de produção para a troca, passa a ser de homens com outros homens, por meio do valor de troca, mediatizado pela moeda ou dinheiro, conforme a teoria do valor que se encontra em Marx.
Estes valores do capitalismo burguês, no que concerne ao texto roseano, não estão traduzidos claramente, por se tratar, em princípio, de uma narrativa que procura apresentar os valores puros do sertão. Guimarães Rosa revela a sua visão do dinheiro e a sua visão do sertão (e, como Artista ficcional, estas idéias prevalecem e se contradizem) na entrevista a Günter Lorenz:
Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca.[1]
Mesmo defendendo estas idéias no discurso ficcional, Guimarães Rosa permite observar opacamente a realidade burguesa que envolve as representações do sertão. O seu sertão é a representação de um espaço puro, mas há em seus domínios personagens degradados: os bate-paus de Nhô Augusto são formas representativas simbólicas do mundo capitalista. Quando Nhô Augusto, depois da queda, sem poder, necessita dos serviços de seus antigos homens de confiança, esses se recusam a obedecer-lhe, porque são membros do aparelho ideológico do poder, do qual Nhô Augusto não mais dispõe. Augusto Matraga, pela ótica burguesa, já não possuía o poder, a qualidade de mando.
Em um pequeno parágrafo, o narrador detecta as representações das normas da sociedade capitalista:
Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.[2]
Os bate-paus fazem a degradação do poder, isto é, do valor do dinheiro de quem tem, mas não conseguem corromper o espaço de referência do narrador (espaço que, pela ótica de quem narra, se diligencia em se apresentar puro), porque este é mediador do Artista ficcional do século XX, aquele indivíduo contraditório originário de um mundo em que o valor do dinheiro não tem valor. E o portador calado significa que quem fala é o poder, pois só o poder tem poder de fala. Eis a questão central de minha tese: o narrador que fala ou é falado por sua própria narrativa. O narrador guiado pelo poder da própria palavra. O dinheiro não adianta muito no sertão, mas é o poder no mundo capitalista urbano. E o sertão roseano (ou mineiro, ou brasileiro, se os meus leitores quiserem assim), mesmo possuindo matéria épica (matéria mítica) em estado bruto, está inserido, em sentido diacrônico e sincrônico, mesmo como capitalismo periférico, na sociedade brasileira moderna. A sociedade brasileira nasceu com a Era Moderna, e mesmo com o desenvolvimento de processos antigos de vida comunitária, em seu território, como a agricultura, as leis econômicas da Europa (do início da Era Moderna) comandaram as normas econômicas e sociais de seu povo. Assim se entende o fato de o narrador roseano refletir as contradições do Brasil, do capitalismo brasileiro, periférico, do terceiro mundo; entende-se o porquê de o mesmo apresentar sua visão pessoal e social do Mundo Sertanejo, com tais características comunitárias e, instintivamente, deixar-se perceber, também, como representante da sociedade capitalista.
Esta é a contradição do Artista ficcional moderno, brasileiro, ao procurar representar o sertão. Em alguns casos, o humanismo do valor de uso, característica de uma sociedade primitiva, se recusa a desaparecer em uma sociedade degradada como a brasileira, mas este valor de uso passa a ser mediatizado pelo valor de troca. Como no sertão roseano a característica da pureza original de seus personagens é sempre realçada (onde alguns personagens não aceitam valores de mercadoria e querem continuar fiéis ao valor de uso, ao valor em si mesmo dos objetos de uso), qualquer alusão do narrador ao valor de troca capitalista a modificará (a pureza original no âmbito da ficção), pois, alguns, ao adotarem atitudes de vida à moda burguesa, passam a se situar à margem do capitalismo, tornando-se indivíduos problemáticos. Este é o caso dos líderes carismáticos sertanejos, líderes religiosos, como Padre Cícero e Antônio Conselheiro. Estes, geralmente, são criadores de valores em seus domínios. E mesmos estes não conseguem livrar-se da dominação de uma sociedade programada para o comércio, para a troca e consumo de mercadorias, a partir do momento em que a atividade criadora de cada um deles se manifeste exteriormente.
Desde o momento em que o ficcionista produz sua obra, qualquer que seja, e a apresente a um público consumidor, deixa para trás os valores de uso e realiza valores de troca. Vende sua produção. Isto é fácil de entender: na sociedade burguesa, o homem necessita do dinheiro para a sua sobrevivência. Arte também é trabalho remunerado na moderna sociedade. O Artista consome os produtos essenciais — valores de uso qualitativo —, produtos que só podem ser adquiridos com o dinheiro.
Toda a problemática do homem que procura outros valores, daquele que vive em luta contra os valores degradados, é captada pela ótica do escritor de ficção, que, por sua vez, também, poderá deturpar (inconscientemente ou não) a realidade que vê ou imagina. Por esta ótica, o sertão roseano possui características comunitárias — antigas —, mas não deixa de apresentar os valores que regem a sociedade como um todo. Os bate-paus, o major Consilva (representante da contra-ideologia que aspira ao Poder), as contendas políticas vislumbradas na narrativa, são partes de uma engrenagem que movimenta o mundo burguês. O arraial do Murici representa este mundo, mesmo sendo um pequeno burgo incrustado no sertão.
O sertão de Guimarães Rosa reflete os valores puros dos povos antigos, mas contraditoriamente é, também, uma representação da fragmentação burguesa. Augusto Matraga, em sua segunda fase ficcional, representa-a como herói que busca valores autênticos em um mundo inautêntico, feito de ódios, de disputas. Dialeticamente, penso que (além da narrativa apresentada) o verdadeiro herói problemático, representante do mundo moderno burguês, seja o narrador. É ele quem transmite à criatura seus questionamentos e sua fragmentação interior; é ele que prevê, por intermédio do personagem, seu próprio fim. Lukács já informara que o herói romanesco jamais alcançaria este mundo perfeito, em virtude da ruptura insuperável entre os dois. A morte do personagem simboliza as mortes cotidianas do narrador moderno, prisioneiro de um mundo ameaçador que o obriga a criar e recriar a própria existência.
[1] ROSA (1979): 11
[2] Idem (1986): 15
Minha proposição teórico-interpretativa sobre o assunto se estrutura a partir deste questionamento: se o sertão roseano possui matéria mítica (matéria épica) em estado bruto, se é um espaço representativo de um mundo ordenado, onde só há respostas e as perguntas inexistem, quem é o representante da moderna sociedade individualista nascida da produção para o mercado (cf: BENJAMIN, Walter. OS PENSADORES, 1980), nesta narrativa moderna?
Em A Hora e Vez de Augusto Matraga sobressai-se a figura do narrador como porta-voz das experiências do Artista, ou seja, o ficcionista como representante do povo sertanejo, no que se refere às suas origens e das elites burguesas. É ele o mediador nos limites das duas classes sociais, ultrapassando as fronteiras míticas, fechadas, e passando a vivenciar o para sempre inacabado mundo moderno. Se o real precisa ser criado e demonstrado logicamente, é necessário que o Artista Ficcional se valha de um narrador em fase de transição, para apresentar uma comunidade pura e o seu herói — comunidade já em vias de extinção —, isolados pelo Caos do Mundo da Modernidade. O narrador aqui é o autêntico personagem moderno (não é o Nhô Augusto), é o narrador o herói problemático, porque apenas ele se movimenta entre os dois espaços da narrativa: o perfeito e o inacabado. O sertão é rico em matéria épica, mas miniatural se observado por um narrador memorialista. A modernidade já vai perdendo contato com a memória e os conselheiros já não ditam normas de vida. O sertão se revela mais enriquecedor e vasto se observado por um narrador reflexivo, conhecedor de um outro mundo, onde os perigos estão à espreita de quem se impor desvendar os segredos do Insólito (do Desconhecido).
Goldmann questiona o fato de o romance, forma literária complexa, materializar-se, durante séculos, por diversas maneiras e por intermédio de escritores diferentes entre si, em países distantes uns dos outros, transmitindo, diacronicamente e sincronicamente, no plano literário, o conteúdo de cada época. Para Goldmann, a forma romanesca transpõe para o plano literário ficcional o cotidiano da sociedade individualista, nascida da produção para o mercado.
O normal, numa sociedade produtora para o mercado, seria a relação natural entre homens e bens, relação em que a produção é conscientemente regida pelo consumo futuro, pelas qualidades concretas dos objetos, por seu valor de uso. A produção para o mercado não admite tal consciência e elimina esta relação entre homens e bens em geral. A relação social da produção, na fase de produção para a troca, passa a ser de homens com outros homens, por meio do valor de troca, mediatizado pela moeda ou dinheiro, conforme a teoria do valor que se encontra em Marx.
Estes valores do capitalismo burguês, no que concerne ao texto roseano, não estão traduzidos claramente, por se tratar, em princípio, de uma narrativa que procura apresentar os valores puros do sertão. Guimarães Rosa revela a sua visão do dinheiro e a sua visão do sertão (e, como Artista ficcional, estas idéias prevalecem e se contradizem) na entrevista a Günter Lorenz:
Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca.[1]
Mesmo defendendo estas idéias no discurso ficcional, Guimarães Rosa permite observar opacamente a realidade burguesa que envolve as representações do sertão. O seu sertão é a representação de um espaço puro, mas há em seus domínios personagens degradados: os bate-paus de Nhô Augusto são formas representativas simbólicas do mundo capitalista. Quando Nhô Augusto, depois da queda, sem poder, necessita dos serviços de seus antigos homens de confiança, esses se recusam a obedecer-lhe, porque são membros do aparelho ideológico do poder, do qual Nhô Augusto não mais dispõe. Augusto Matraga, pela ótica burguesa, já não possuía o poder, a qualidade de mando.
Em um pequeno parágrafo, o narrador detecta as representações das normas da sociedade capitalista:
Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.[2]
Os bate-paus fazem a degradação do poder, isto é, do valor do dinheiro de quem tem, mas não conseguem corromper o espaço de referência do narrador (espaço que, pela ótica de quem narra, se diligencia em se apresentar puro), porque este é mediador do Artista ficcional do século XX, aquele indivíduo contraditório originário de um mundo em que o valor do dinheiro não tem valor. E o portador calado significa que quem fala é o poder, pois só o poder tem poder de fala. Eis a questão central de minha tese: o narrador que fala ou é falado por sua própria narrativa. O narrador guiado pelo poder da própria palavra. O dinheiro não adianta muito no sertão, mas é o poder no mundo capitalista urbano. E o sertão roseano (ou mineiro, ou brasileiro, se os meus leitores quiserem assim), mesmo possuindo matéria épica (matéria mítica) em estado bruto, está inserido, em sentido diacrônico e sincrônico, mesmo como capitalismo periférico, na sociedade brasileira moderna. A sociedade brasileira nasceu com a Era Moderna, e mesmo com o desenvolvimento de processos antigos de vida comunitária, em seu território, como a agricultura, as leis econômicas da Europa (do início da Era Moderna) comandaram as normas econômicas e sociais de seu povo. Assim se entende o fato de o narrador roseano refletir as contradições do Brasil, do capitalismo brasileiro, periférico, do terceiro mundo; entende-se o porquê de o mesmo apresentar sua visão pessoal e social do Mundo Sertanejo, com tais características comunitárias e, instintivamente, deixar-se perceber, também, como representante da sociedade capitalista.
Esta é a contradição do Artista ficcional moderno, brasileiro, ao procurar representar o sertão. Em alguns casos, o humanismo do valor de uso, característica de uma sociedade primitiva, se recusa a desaparecer em uma sociedade degradada como a brasileira, mas este valor de uso passa a ser mediatizado pelo valor de troca. Como no sertão roseano a característica da pureza original de seus personagens é sempre realçada (onde alguns personagens não aceitam valores de mercadoria e querem continuar fiéis ao valor de uso, ao valor em si mesmo dos objetos de uso), qualquer alusão do narrador ao valor de troca capitalista a modificará (a pureza original no âmbito da ficção), pois, alguns, ao adotarem atitudes de vida à moda burguesa, passam a se situar à margem do capitalismo, tornando-se indivíduos problemáticos. Este é o caso dos líderes carismáticos sertanejos, líderes religiosos, como Padre Cícero e Antônio Conselheiro. Estes, geralmente, são criadores de valores em seus domínios. E mesmos estes não conseguem livrar-se da dominação de uma sociedade programada para o comércio, para a troca e consumo de mercadorias, a partir do momento em que a atividade criadora de cada um deles se manifeste exteriormente.
Desde o momento em que o ficcionista produz sua obra, qualquer que seja, e a apresente a um público consumidor, deixa para trás os valores de uso e realiza valores de troca. Vende sua produção. Isto é fácil de entender: na sociedade burguesa, o homem necessita do dinheiro para a sua sobrevivência. Arte também é trabalho remunerado na moderna sociedade. O Artista consome os produtos essenciais — valores de uso qualitativo —, produtos que só podem ser adquiridos com o dinheiro.
Toda a problemática do homem que procura outros valores, daquele que vive em luta contra os valores degradados, é captada pela ótica do escritor de ficção, que, por sua vez, também, poderá deturpar (inconscientemente ou não) a realidade que vê ou imagina. Por esta ótica, o sertão roseano possui características comunitárias — antigas —, mas não deixa de apresentar os valores que regem a sociedade como um todo. Os bate-paus, o major Consilva (representante da contra-ideologia que aspira ao Poder), as contendas políticas vislumbradas na narrativa, são partes de uma engrenagem que movimenta o mundo burguês. O arraial do Murici representa este mundo, mesmo sendo um pequeno burgo incrustado no sertão.
O sertão de Guimarães Rosa reflete os valores puros dos povos antigos, mas contraditoriamente é, também, uma representação da fragmentação burguesa. Augusto Matraga, em sua segunda fase ficcional, representa-a como herói que busca valores autênticos em um mundo inautêntico, feito de ódios, de disputas. Dialeticamente, penso que (além da narrativa apresentada) o verdadeiro herói problemático, representante do mundo moderno burguês, seja o narrador. É ele quem transmite à criatura seus questionamentos e sua fragmentação interior; é ele que prevê, por intermédio do personagem, seu próprio fim. Lukács já informara que o herói romanesco jamais alcançaria este mundo perfeito, em virtude da ruptura insuperável entre os dois. A morte do personagem simboliza as mortes cotidianas do narrador moderno, prisioneiro de um mundo ameaçador que o obriga a criar e recriar a própria existência.
[1] ROSA (1979): 11
[2] Idem (1986): 15
MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)
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