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sábado, 30 de janeiro de 2010

XI – MITOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL

NEUZA MACHADO



PRELIMINARES


O início da narrativa ─ A hora e vez de Augusto Matraga ─ reenvia-me a um momento de transição superposto e condicionado no espaço do sertão brasileiro do Estado de Minas Gerais: o momento da mudança mítica ocorrida no mundo.

Quando observo conscienciosamente a primeira sequência, reconheço Nhô Augusto como a própria personificação de um deus mitológico. Mais precisamente, o visualizo como personificação sertaneja de Zeus Capitolino dos antigos. Vários referentes remetem-me a esta interpretação. Senão, vejamos: Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga, apelido que me faz pensar em matraca, barulho, trovões, é muito pouco para caracterizar a estirpe genética do herói.

Matraga é Esteves. Augusto Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.
[1]

Matraga é Augusto, filho do Coronel Afonsão Esteves. Augusto: nome que remete à idéia de uma pomposa figura, símbolo dos governantes gregos; marca de respeitabilidade, de veneração; marca dos que vieram ao mundo sob bons presságios. Augusto é o homem. Muito mais do que Augusto, filho do Coronel Afonsão — observe-se o aumentativo como marca de realeza —, Augusto Esteves é Nhô Augusto, o Senhor de um espaço onde a heroicidade de um homem alcança o plano mítico. O personagem é, em princípio, a personificação do herói, e o sertão é o espaço antigo desse descendente de Zeus. Pari passu com seu poder de homem público, há nele o poder dos que se mitificam para impor seus desígnios aos menos favorecidos socialmente.

Observemos o personagem, no início, em sua majestade:

E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pés dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: — Cinqüenta mil réis!...

Ficou de mão na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.

— Nhô Augusto! Nhô Augusto!

E insistiu fala mais forte:

— Cinqüenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! Dou-lhe duas – dou-lhe três!...
[2]

Recupero agora os dados que remetem à aura do herói de antigas contendas: houve um deslocamento de gentes porque a figura imponente do personagem, alteado, peito largo, vestido de luto (a cor negra como símbolo de respeito) se agigantava, diminuindo ainda mais o povo, já por si pequeno na escala social. Nhô Augusto, Zeus sertanejo, pisando pés dos outros, não se incomodando em destruir, varando a frente da massa, se encarando com a Sariema, pondo-lhe o dedo no queixo; assim, a Sariema como uma entre tantas deidades preferidas pelo tonitruante deus com voz de meio-dia; o tonitruante que nunca pede, ao contrário, berra, grita, impõe. Tonitruante deus acostumado a determinar o destino dos mortais; que não oferece o rosto ao povo, mas espera os aplausos, a glorificação.

Mas, no momento, o deus sertanejo já não se encontra em um espaço apenas mítico, como os deuses da Antiguidade. O mítico agora se amálgama ao místico cristão. Há um leilão de santo, e isto indica que alguma coisa está por acontecer. Se o povo está miticamente encapetado com as atitudes de Nhô Augusto, e sedento por prazeres, como nas festas pagãs, há, por outro lado, o Tião leiloeiro, mensageiro do Deus monoteísta, lembrando àquela multidão o aspecto sagrado do evento: — Respeito, gente, que o leilão é de santo!... Maior do que a grandeza de Nhô Augusto é a grandeza do Sagrado. Isto impõe reafirmar que o início da narrativa remete simbolicamente ao momento de transição, que caracterizou uma passagem: o paganismo politeísta cedendo espaço aos austeros preceitos da fé monoteísta. Preceitos esses tão fortes, para os quais o próprio herói, rebaixando a sua aura mítica, se curvou servilmente, abafando a arrelia. — Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar! E o povo, surpreendido com a atitude de Nhô Augusto, acalmou-se. O capiauzinho enamorado chamou a sua amada Tomázia, porque para ele ela não era a Sariema, para saírem dali, aproveitando a confusão que se estabelecera — confusão como significante de espaços dogmáticos que se superpõe —; evidentemente, o capiauzinho não conseguiu seu intento, simplesmente porque ainda não chegara o momento do deus pagão sertanejo desmantelar-se. O Zeus tonitruante sertanejo ainda não se vê ameaçado, e separa-os com uma pranchada de mão. Não sabe o capiauzinho que todas as deidades do sertão pertencem ao Senhor-de-terra? Nhô Augusto, o Todo-Poderoso, rompente, mítico, alargou no tal três pescoções: — Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...

O narrador, por enquanto, diegético e observador, distanciado dos acontecimentos e, por isto mesmo, consciente de todos os detalhes da narrativa, registra a cena, captando todos os ângulos do tumulto que se instaurou, após a iniciativa de briga de Nhô Augusto. O narrador está atento ao detalhe, porque sua função, no momento, é reproduzir uma narrativa memorialista, continuar uma tradição, levar aos pósteros as experiências de vida do povo sertanejo. Por estas razões, ele busca em um passado remoto o modelo de seu herói. O sertão tem suas raízes no mítico. O sertão possui matéria mítica ainda em estado primitivo. Apenas o mundo circundante é outro. Não existe mais a verdade dos antigos, e as experiências de vida comunitária foram suplantadas pela degradação do homem moderno. Assim, penso nesse início como um momento de transição: Nhô Augusto, herói, semideus (mítico-pagão), depois, meio homem e meio santo (místico-cristão); Sariema (Sariema é uma das inúmeras deidades do sertão, requisitadas pelo Senhor-Todo-Poderoso); Dionóra (a traída e sofrida Hera), consorte legítima e desprezada; Quim Recadeiro (Hermes, o Mensageiro), mensageiro do Destino e mensageiro do Mundo; o sertão como espaço mítico/místico, cenário da memória e futuro palco de acontecimentos insólitos, os quais, por ora, jazem inativos nos compartimentos da recordação.

É lícito observar como há um intercâmbio sutil com o mundo mítico, nesta primeira sequência.

Nhô Augusto, ao retornar com Sariema em direção ao Beco do Sem-Ceroula, atravessa um cenário mítico/místico (as Idades do Mundo se superpõem e se mesclam no sertão mineiro), iluminado por inúmeras lanterninhas e muita luz de azeite. Abandona a deidade no meio do caminho — atitude dos que se julgam poderosos — e, sozinho, desce a ladeira.

Lá em baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de D. Dionóra: que Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá — à casa dele, de verdade, na Rua de Cima —, porque havia ainda muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela — a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...
[3]

Mas Nhô Augusto nem deixou o mensageiro acabar de acabar e o obriga a retornar com outro recado, dizendo que não iria, e que era para Siá Dionóra e a menina retornarem para o Morro Azul. Depois, Nhô Augusto saiu em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para entrar no meio ou desapartar.
[4]

Este trecho revela um personagem mítico, ansioso por contendas, e apresenta o um Olimpo sertanejo, representado, no povoado, pela Rua de Cima, e, no campo, pelo Retiro do Morro Azul. Quim Recadeiro poderá ser visto como a encarnação moderna da figura de Hermes, o Mensageiro dos deuses. Dona Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios
[5]: esta frase remete a uma expressão à maneira de Homero, na Ilíada, ao se referir a Hera, esposa de Zeus: a deusa dos olhos bovinos (cf. HOMERO, op. cit.). Dona Dionóra, que conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato.[6] Nhô Augusto: encarnação do homem primitivo, para quem o ato de matar era um ato natural. Matava mesmo, como dera conta do homem da foice, pago por vingança de algum ofendido.[7] É importante lembrar que o herói mítico não poupa a vida de seus inimigos. Dona Dionóra resolve abandonar o Olimpo matrimonial (cenário de grandes sofrimentos) e acompanhar seu Ovídio Moura, símbolo de felicidade. Novamente, o Quim, retornando com a notícia do abandono da Dionóra, com a notícia de que a casa estava caindo.[8]

Eis a queda do Olimpo pagão e a ascensão do monoteísmo hebraico e, posteriormente, cristão.

O início da narrativa até à queda e a segunda sequência (na qual encontra-se o herói adotando uma nova estratégia existencial) simbolizam as experiências de vida da comunidade do sertão, material precioso que fundamenta a vida de um povo. As experiências de vida, assinaladas por Walter Benjamin em “O Narrador”, encontram-se registradas na memória, e é a memória do narrador roseano que insiste em ressuscitar o herói e, consequentemente, em permanecer fiel às tradições do sertão.



[1] Ibidem: 7
[2] Ibidem: 8
[3] Ibidem: 11
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] Ibidem: 12
[7] Ibidem
[8] Ibidem: 14


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

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