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domingo, 31 de janeiro de 2010

XII - A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR


XII - A INEVITÁVEL DINÂMICA DO NARRADOR

NEUZA MACHADO



O narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa transmite aos leitores as notícias do sertão arcaico — sertão como distância e fundamento —, demonstrando que o poder meio primitivo dos donos-de-terra, nos sertões brasileiros, foi uma constante e, talvez, ainda o seja, em virtude de o sertanejo ser muito apegado às tradições e aos valores antigos. Graças a esse apego, a arte de narrar sobreviveu até há pouco tempo em algumas regiões rurais do Brasil, e as figuras que ali se sobrepuseram em força e poder político alcançaram níveis lendários, equiparando-se aos notáveis heróis registrados nas Literaturas de todos os tempos.

As experiências de vida, ditas por Benjamin
[1], são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os mais jovens as experiências dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar, incentivar à geração futura o desenvolvimento de atos heróicos. Por esta ótica, o povo sertanejo mantém um vínculo permanente com os povos primitivos.

O narrador roseano, em princípio, capta essa matéria remanescente dos povos antigos ainda subjacente no sertão, e procura desenvolver uma narrativa dentro dos moldes da troca de experiências. Ele se propõe a contar a vida de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.

Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:

O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder.
[2]

Esta assertiva de Weber se evidencia na narrativa de João Guimarães Rosa. É exatamente isto o que acontece (ainda acontece) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades. A realidade se apresenta em seus aspectos mais degradantes: homens dominando homens por meio da violência, homens escorados em instituições aparentemente criadas para servir, mas que se transformam em forças geradoras de dominação.

Neste duplo aspecto se organizam as sequências ficcionais de A Hora e Vez de Augusto Matraga. Por um lado, a narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado e, por outro lado, a narrativa em que estas experiências são negadas por um outro mundo abalado por sucessivas e inesperadas violências.

Graças a esta dualidade, as sequências diegéticas acopladas ao pensamento mimético atingem um plano universal de raras proporções. A narrativa capta a incerteza social que envolve coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e, de repente, percebe-se que aquele espaço grandioso é o próprio mundo, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.

Penso em Guimarães Rosa como refletor da burguesia periférica brasileira. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa, mediatizado pelo narrador, é um ponto de vista burguês. Percebo, nas primeiras sequências da narrativa, o narrador como porta-voz das experiências do Artista, mas, posteriormente, passa a representar uma classe social. Mesmo que este demonstre uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando o narrador se liberta do jugo memorialista, deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de um mundo que representa suas raízes de vida. Se ele possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse mundo, possui também sensibilidade para observar que esse mundo se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.

Neste duplo aspecto, enquanto apreensão da matéria, estrutura-se a narrativa de Guimarães Rosa: se o político luta pelo poder, ou pelo prestígio advindo do poder, o Senhor-de-terra do sertão também luta pelo poder. É uma luta feroz, porque é feita por meio da força física e dominação.


[1] BENJAMIN (1980), op. cit.
[2] WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979: 98-99


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)


sábado, 30 de janeiro de 2010

XI – MITOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL

NEUZA MACHADO



PRELIMINARES


O início da narrativa ─ A hora e vez de Augusto Matraga ─ reenvia-me a um momento de transição superposto e condicionado no espaço do sertão brasileiro do Estado de Minas Gerais: o momento da mudança mítica ocorrida no mundo.

Quando observo conscienciosamente a primeira sequência, reconheço Nhô Augusto como a própria personificação de um deus mitológico. Mais precisamente, o visualizo como personificação sertaneja de Zeus Capitolino dos antigos. Vários referentes remetem-me a esta interpretação. Senão, vejamos: Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga, apelido que me faz pensar em matraca, barulho, trovões, é muito pouco para caracterizar a estirpe genética do herói.

Matraga é Esteves. Augusto Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.
[1]

Matraga é Augusto, filho do Coronel Afonsão Esteves. Augusto: nome que remete à idéia de uma pomposa figura, símbolo dos governantes gregos; marca de respeitabilidade, de veneração; marca dos que vieram ao mundo sob bons presságios. Augusto é o homem. Muito mais do que Augusto, filho do Coronel Afonsão — observe-se o aumentativo como marca de realeza —, Augusto Esteves é Nhô Augusto, o Senhor de um espaço onde a heroicidade de um homem alcança o plano mítico. O personagem é, em princípio, a personificação do herói, e o sertão é o espaço antigo desse descendente de Zeus. Pari passu com seu poder de homem público, há nele o poder dos que se mitificam para impor seus desígnios aos menos favorecidos socialmente.

Observemos o personagem, no início, em sua majestade:

E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pés dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: — Cinqüenta mil réis!...

Ficou de mão na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.

— Nhô Augusto! Nhô Augusto!

E insistiu fala mais forte:

— Cinqüenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! Dou-lhe duas – dou-lhe três!...
[2]

Recupero agora os dados que remetem à aura do herói de antigas contendas: houve um deslocamento de gentes porque a figura imponente do personagem, alteado, peito largo, vestido de luto (a cor negra como símbolo de respeito) se agigantava, diminuindo ainda mais o povo, já por si pequeno na escala social. Nhô Augusto, Zeus sertanejo, pisando pés dos outros, não se incomodando em destruir, varando a frente da massa, se encarando com a Sariema, pondo-lhe o dedo no queixo; assim, a Sariema como uma entre tantas deidades preferidas pelo tonitruante deus com voz de meio-dia; o tonitruante que nunca pede, ao contrário, berra, grita, impõe. Tonitruante deus acostumado a determinar o destino dos mortais; que não oferece o rosto ao povo, mas espera os aplausos, a glorificação.

Mas, no momento, o deus sertanejo já não se encontra em um espaço apenas mítico, como os deuses da Antiguidade. O mítico agora se amálgama ao místico cristão. Há um leilão de santo, e isto indica que alguma coisa está por acontecer. Se o povo está miticamente encapetado com as atitudes de Nhô Augusto, e sedento por prazeres, como nas festas pagãs, há, por outro lado, o Tião leiloeiro, mensageiro do Deus monoteísta, lembrando àquela multidão o aspecto sagrado do evento: — Respeito, gente, que o leilão é de santo!... Maior do que a grandeza de Nhô Augusto é a grandeza do Sagrado. Isto impõe reafirmar que o início da narrativa remete simbolicamente ao momento de transição, que caracterizou uma passagem: o paganismo politeísta cedendo espaço aos austeros preceitos da fé monoteísta. Preceitos esses tão fortes, para os quais o próprio herói, rebaixando a sua aura mítica, se curvou servilmente, abafando a arrelia. — Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar! E o povo, surpreendido com a atitude de Nhô Augusto, acalmou-se. O capiauzinho enamorado chamou a sua amada Tomázia, porque para ele ela não era a Sariema, para saírem dali, aproveitando a confusão que se estabelecera — confusão como significante de espaços dogmáticos que se superpõe —; evidentemente, o capiauzinho não conseguiu seu intento, simplesmente porque ainda não chegara o momento do deus pagão sertanejo desmantelar-se. O Zeus tonitruante sertanejo ainda não se vê ameaçado, e separa-os com uma pranchada de mão. Não sabe o capiauzinho que todas as deidades do sertão pertencem ao Senhor-de-terra? Nhô Augusto, o Todo-Poderoso, rompente, mítico, alargou no tal três pescoções: — Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...

O narrador, por enquanto, diegético e observador, distanciado dos acontecimentos e, por isto mesmo, consciente de todos os detalhes da narrativa, registra a cena, captando todos os ângulos do tumulto que se instaurou, após a iniciativa de briga de Nhô Augusto. O narrador está atento ao detalhe, porque sua função, no momento, é reproduzir uma narrativa memorialista, continuar uma tradição, levar aos pósteros as experiências de vida do povo sertanejo. Por estas razões, ele busca em um passado remoto o modelo de seu herói. O sertão tem suas raízes no mítico. O sertão possui matéria mítica ainda em estado primitivo. Apenas o mundo circundante é outro. Não existe mais a verdade dos antigos, e as experiências de vida comunitária foram suplantadas pela degradação do homem moderno. Assim, penso nesse início como um momento de transição: Nhô Augusto, herói, semideus (mítico-pagão), depois, meio homem e meio santo (místico-cristão); Sariema (Sariema é uma das inúmeras deidades do sertão, requisitadas pelo Senhor-Todo-Poderoso); Dionóra (a traída e sofrida Hera), consorte legítima e desprezada; Quim Recadeiro (Hermes, o Mensageiro), mensageiro do Destino e mensageiro do Mundo; o sertão como espaço mítico/místico, cenário da memória e futuro palco de acontecimentos insólitos, os quais, por ora, jazem inativos nos compartimentos da recordação.

É lícito observar como há um intercâmbio sutil com o mundo mítico, nesta primeira sequência.

Nhô Augusto, ao retornar com Sariema em direção ao Beco do Sem-Ceroula, atravessa um cenário mítico/místico (as Idades do Mundo se superpõem e se mesclam no sertão mineiro), iluminado por inúmeras lanterninhas e muita luz de azeite. Abandona a deidade no meio do caminho — atitude dos que se julgam poderosos — e, sozinho, desce a ladeira.

Lá em baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de D. Dionóra: que Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá — à casa dele, de verdade, na Rua de Cima —, porque havia ainda muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela — a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...
[3]

Mas Nhô Augusto nem deixou o mensageiro acabar de acabar e o obriga a retornar com outro recado, dizendo que não iria, e que era para Siá Dionóra e a menina retornarem para o Morro Azul. Depois, Nhô Augusto saiu em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para entrar no meio ou desapartar.
[4]

Este trecho revela um personagem mítico, ansioso por contendas, e apresenta o um Olimpo sertanejo, representado, no povoado, pela Rua de Cima, e, no campo, pelo Retiro do Morro Azul. Quim Recadeiro poderá ser visto como a encarnação moderna da figura de Hermes, o Mensageiro dos deuses. Dona Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios
[5]: esta frase remete a uma expressão à maneira de Homero, na Ilíada, ao se referir a Hera, esposa de Zeus: a deusa dos olhos bovinos (cf. HOMERO, op. cit.). Dona Dionóra, que conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato.[6] Nhô Augusto: encarnação do homem primitivo, para quem o ato de matar era um ato natural. Matava mesmo, como dera conta do homem da foice, pago por vingança de algum ofendido.[7] É importante lembrar que o herói mítico não poupa a vida de seus inimigos. Dona Dionóra resolve abandonar o Olimpo matrimonial (cenário de grandes sofrimentos) e acompanhar seu Ovídio Moura, símbolo de felicidade. Novamente, o Quim, retornando com a notícia do abandono da Dionóra, com a notícia de que a casa estava caindo.[8]

Eis a queda do Olimpo pagão e a ascensão do monoteísmo hebraico e, posteriormente, cristão.

O início da narrativa até à queda e a segunda sequência (na qual encontra-se o herói adotando uma nova estratégia existencial) simbolizam as experiências de vida da comunidade do sertão, material precioso que fundamenta a vida de um povo. As experiências de vida, assinaladas por Walter Benjamin em “O Narrador”, encontram-se registradas na memória, e é a memória do narrador roseano que insiste em ressuscitar o herói e, consequentemente, em permanecer fiel às tradições do sertão.



[1] Ibidem: 7
[2] Ibidem: 8
[3] Ibidem: 11
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] Ibidem: 12
[7] Ibidem
[8] Ibidem: 14


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

X - SOCIOLOGIA DO SERTÃO

NEUZA MACHADO


Minha proposição teórico-interpretativa sobre o assunto se estrutura a partir deste questionamento: se o sertão roseano possui matéria mítica (matéria épica) em estado bruto, se é um espaço representativo de um mundo ordenado, onde só há respostas e as perguntas inexistem, quem é o representante da moderna sociedade individualista nascida da produção para o mercado (cf: BENJAMIN, Walter. OS PENSADORES, 1980), nesta narrativa moderna?

Em
A Hora e Vez de Augusto Matraga sobressai-se a figura do narrador como porta-voz das experiências do Artista, ou seja, o ficcionista como representante do povo sertanejo, no que se refere às suas origens e das elites burguesas. É ele o mediador nos limites das duas classes sociais, ultrapassando as fronteiras míticas, fechadas, e passando a vivenciar o para sempre inacabado mundo moderno. Se o real precisa ser criado e demonstrado logicamente, é necessário que o Artista Ficcional se valha de um narrador em fase de transição, para apresentar uma comunidade pura e o seu herói — comunidade já em vias de extinção —, isolados pelo Caos do Mundo da Modernidade. O narrador aqui é o autêntico personagem moderno (não é o Nhô Augusto), é o narrador o herói problemático, porque apenas ele se movimenta entre os dois espaços da narrativa: o perfeito e o inacabado. O sertão é rico em matéria épica, mas miniatural se observado por um narrador memorialista. A modernidade já vai perdendo contato com a memória e os conselheiros já não ditam normas de vida. O sertão se revela mais enriquecedor e vasto se observado por um narrador reflexivo, conhecedor de um outro mundo, onde os perigos estão à espreita de quem se impor desvendar os segredos do Insólito (do Desconhecido).

Goldmann questiona o fato de o romance, forma literária complexa, materializar-se, durante séculos, por diversas maneiras e por intermédio de escritores diferentes entre si, em países distantes uns dos outros, transmitindo, diacronicamente e sincronicamente, no plano literário, o conteúdo de cada época. Para Goldmann, a forma romanesca transpõe para o plano literário ficcional o cotidiano da sociedade individualista, nascida da produção para o mercado.

O normal, numa sociedade produtora para o mercado, seria a relação natural entre homens e bens, relação em que a produção é conscientemente regida pelo consumo futuro, pelas qualidades concretas dos objetos, por seu valor de uso. A produção para o mercado não admite tal consciência e elimina esta relação entre homens e bens em geral. A relação social da produção, na fase de produção para a troca, passa a ser de homens com outros homens, por meio do valor de troca, mediatizado pela moeda ou dinheiro, conforme a teoria do valor que se encontra em Marx.

Estes valores do capitalismo burguês, no que concerne ao texto roseano, não estão traduzidos claramente, por se tratar, em princípio, de uma narrativa que procura apresentar os valores puros do sertão. Guimarães Rosa revela a sua visão do dinheiro e a sua visão do sertão (e, como Artista ficcional, estas idéias prevalecem e se contradizem) na entrevista a Günter Lorenz:

Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca.
[1]

Mesmo defendendo estas idéias no discurso ficcional, Guimarães Rosa permite observar opacamente a realidade burguesa que envolve as representações do sertão. O seu sertão é a representação de um espaço puro, mas há em seus domínios personagens degradados: os bate-paus de Nhô Augusto são formas representativas simbólicas do mundo capitalista. Quando Nhô Augusto, depois da queda, sem poder, necessita dos serviços de seus antigos homens de confiança, esses se recusam a obedecer-lhe, porque são membros do aparelho ideológico do poder, do qual Nhô Augusto não mais dispõe. Augusto Matraga, pela ótica burguesa, já não possuía o poder, a qualidade de mando.

Em um pequeno parágrafo, o narrador detecta as representações das normas da sociedade capitalista:

Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.
[2]

Os bate-paus fazem a degradação do poder, isto é, do valor do dinheiro de quem tem, mas não conseguem corromper o espaço de referência do narrador (espaço que, pela ótica de quem narra, se diligencia em se apresentar puro), porque este é mediador do Artista ficcional do século XX, aquele indivíduo contraditório originário de um mundo em que o valor do dinheiro não tem valor. E o portador calado significa que quem fala é o poder, pois só o poder tem poder de fala. Eis a questão central de minha tese: o narrador que fala ou é falado por sua própria narrativa. O narrador guiado pelo poder da própria palavra. O dinheiro não adianta muito no sertão, mas é o poder no mundo capitalista urbano. E o sertão roseano (ou mineiro, ou brasileiro, se os meus leitores quiserem assim), mesmo possuindo matéria épica (matéria mítica) em estado bruto, está inserido, em sentido diacrônico e sincrônico, mesmo como capitalismo periférico, na sociedade brasileira moderna. A sociedade brasileira nasceu com a Era Moderna, e mesmo com o desenvolvimento de processos antigos de vida comunitária, em seu território, como a agricultura, as leis econômicas da Europa (do início da Era Moderna) comandaram as normas econômicas e sociais de seu povo. Assim se entende o fato de o narrador roseano refletir as contradições do Brasil, do capitalismo brasileiro, periférico, do terceiro mundo; entende-se o porquê de o mesmo apresentar sua visão pessoal e social do Mundo Sertanejo, com tais características comunitárias e, instintivamente, deixar-se perceber, também, como representante da sociedade capitalista.

Esta é a contradição do Artista ficcional moderno, brasileiro, ao procurar representar o sertão. Em alguns casos, o humanismo do valor de uso, característica de uma sociedade primitiva, se recusa a desaparecer em uma sociedade degradada como a brasileira, mas este valor de uso passa a ser mediatizado pelo valor de troca. Como no sertão roseano a característica da pureza original de seus personagens é sempre realçada (onde alguns personagens não aceitam valores de mercadoria e querem continuar fiéis ao valor de uso, ao valor em si mesmo dos objetos de uso), qualquer alusão do narrador ao valor de troca capitalista a modificará (a pureza original no âmbito da ficção), pois, alguns, ao adotarem atitudes de vida à moda burguesa, passam a se situar à margem do capitalismo, tornando-se indivíduos problemáticos. Este é o caso dos líderes carismáticos sertanejos, líderes religiosos, como Padre Cícero e Antônio Conselheiro. Estes, geralmente, são criadores de valores em seus domínios. E mesmos estes não conseguem livrar-se da dominação de uma sociedade programada para o comércio, para a troca e consumo de mercadorias, a partir do momento em que a atividade criadora de cada um deles se manifeste exteriormente.

Desde o momento em que o ficcionista produz sua obra, qualquer que seja, e a apresente a um público consumidor, deixa para trás os valores de uso e realiza valores de troca. Vende sua produção. Isto é fácil de entender: na sociedade burguesa, o homem necessita do dinheiro para a sua sobrevivência. Arte também é trabalho remunerado na moderna sociedade. O Artista consome os produtos essenciais — valores de uso qualitativo —, produtos que só podem ser adquiridos com o dinheiro.

Toda a problemática do homem que procura outros valores, daquele que vive em luta contra os valores degradados, é captada pela ótica do escritor de ficção, que, por sua vez, também, poderá deturpar (inconscientemente ou não) a realidade que vê ou imagina. Por esta ótica, o sertão roseano possui características comunitárias — antigas —, mas não deixa de apresentar os valores que regem a sociedade como um todo. Os bate-paus, o major Consilva (representante da contra-ideologia que aspira ao Poder), as contendas políticas vislumbradas na narrativa, são partes de uma engrenagem que movimenta o mundo burguês. O arraial do Murici representa este mundo, mesmo sendo um pequeno burgo incrustado no sertão.

O sertão de Guimarães Rosa reflete os valores puros dos povos antigos, mas contraditoriamente é, também, uma representação da fragmentação burguesa. Augusto Matraga, em sua segunda fase ficcional, representa-a como herói que busca valores autênticos em um mundo inautêntico, feito de ódios, de disputas. Dialeticamente, penso que (além da narrativa apresentada) o verdadeiro herói problemático, representante do mundo moderno burguês, seja o narrador. É ele quem transmite à criatura seus questionamentos e sua fragmentação interior; é ele que prevê, por intermédio do personagem, seu próprio fim. Lukács já informara que o herói romanesco jamais alcançaria este mundo perfeito, em virtude da ruptura insuperável entre os dois. A morte do personagem simboliza as mortes cotidianas do narrador moderno, prisioneiro de um mundo ameaçador que o obriga a criar e recriar a própria existência.


[1] ROSA (1979): 11
[2] Idem (1986): 15

MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)


quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

IX - DISCURSO FICCIONAL E ESTRUTURA SOCIAL

NEUZA MACHADO


O romance, no início de seu desenvolvimento histórico, foi biografia e crônica, e refletia a sociedade da Era Moderna.

Goldmann postula uma relação entre forma romanesca e a estrutura social em que ela se desenvolveu. As relações econômicas, na sociedade moderna, determinaram as atitudes do homem em relação aos objetos. Se antes o homem medieval se contentava com valores de uso, sistema de primeira onda (utilizando aqui a terminologia de Toffler)
[1], com o advento da sociedade moderna burguesa esses valores foram abandonados, em benefício de um sistema no qual o que importa é o lucro, a parte rentável dos objetos transformados em mercadoria destinada ao consumo (o que permanece na sociedade informatizada do século XXI).

As duas estruturas — a do romance e a da moderna sociedade — são semelhantes, porque a trama do romance reproduz o conflito e a solidão do homem do período, além de reproduzir a sua busca desesperada (sem esperança de realização) de valores inalterados.

Para responder a esses valores humanos (resposta camuflada, degradada), a moderna sociedade capitalista (incluindo também a atual: pós-moderna) estabeleceu a mediação da quantidade do valor do capital. Eis porquê os indivíduos gerados por essa sociedade são inautênticos e os heróis do romance também (romance: espelho dessa sociedade).


[1] TOFLLER, Alvin. A terceira onda. 14. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980

MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

VIII - NARRADOR: HERÓI PROBLEMÁTICO




VIII - NARRADOR: HERÓI PROBLEMÁTICO

NEUZA MACHADO



Não penso na narrativa ficcional como narrativa épica. Estudos atuais não rejeitam o parentesco, mas não incluem o modelo desenvolvido em prosa no gênero épico. Como já afirmei antes, há matéria épica nas narrativas ficcionais modernas (Era Moderna), mas não há a forma que caracteriza o narrar épico. Isto não quer dizer que não existam remanescentes da literatura épica nas estéticas literárias modernas e pós-modernas. Há, ainda, poemas épicos, desenvolvidos por uma determinada ótica, destacando-se a forma que os caracteriza (fenômenos estilísticos). Apenas os modelos modernos e pós-modernos encontram-se submetidos às diferentes manifestações[1] literárias, que se desenvolveram desde o advento da Era Moderna até aos dias atuais. Reafirmando, isto não quer dizer que não aceito as nomenclaturas de Lukács e Goldmann, mesmo reconhecendo que as originais idéias de Anazildo Vasconcelos (semiólogo brasileiro) modificaram o que se estabeleceu como Gênero Épico, a partir de Aristóteles. Não pretendo aprofundar-me no assunto, mas conheço as diferenças. Apenas, continuarei apoiada nas noções sociológicas de Lukács e Goldmann, nesta fase de meus pensamentos, porque entendo que o herói problemático, idealizado por Lukács e reelaborado por Goldmann, reflete o personagem ficcional Augusto Matraga (na última seqüência) e, principalmente, reflete o narrador roseano, revelando-me a face do narrador moderno.

Exemplos a partir da Sociologia da Literatura:

Romance moderno:

Situado entre dois pólos, o romance moderno possui uma natureza dialética, porque participa, por um lado, da comunidade fundamental do herói e do mundo, e, por outra parte, de sua ruptura insuperável. (cf. Lukács, op. cit.)

Esta narrativa ─ A Hora e Vez de Augusto Matraga ─ revela este processo, porque toda a primeira fase do herói Augusto Matraga é centralizada em um sertão autenticamente comunitário, pois personagem e mundo possuem ainda valores autênticos, mesmo que se observe algumas interferências das exigências substanciais da degradação burguesa. Isto é compreensível porque o narrador moderno (e o narrador em questão é moderno, ou melhor ainda, já transitando para o pós-moderno) não continuará memorizando valores comunitários até o final de seu ato de narrar. A assinalada degradação moderna vai corromper os ideais autênticos do narrador, impondo novas formas narrativas, mesmo que este continue ressaltando a pureza de um espaço singular, por meio da recordação. O arraial do Murici, não o sertão roseano, é o espaço que representa a face degradada da sociedade brasileira de meados do século XX.

Comunidade (comum-unidade):

Semelhança suficiente para permitir a existência de matéria épica dentro do romance.
(Como já afirmei, há na narrativa em questão matéria épica em estado bruto: no sertão roseano confundem-se demandas, superstições, misticismos; o sobrenatural é inerente ao homem sertanejo).

Oposição constitutiva:
(Caracteriza o fundamento dessa ruptura insuperável)

A oposição constitutiva que fundamenta essa ruptura insuperável entre o personagem e o mundo origina-se da diferença de natureza entre a degradação do personagem e a degradação do mundo, simbolizada pelo arraial do Murici. (Indutores da degradação: o major Consilva; a ambição dos bate-paus; o narrador reflexivo, pois conhece os males desta degradação que atinge a sua criatura).

A narrativa roseana possui uma dialética questionadora, justamente porque participa das duas degradações: conhece a problemática do mundo que a cerca — a matéria épica resistindo às convenções modernas —, mas, também, tem consciência da ruptura insuperável que existe entre ambos.

O herói problemático do romance é um louco ou um criminoso, em todo caso, como já dissemos, um personagem problemático, cuja busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos num mundo de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamamos “romance”.
[2]

Esta busca caracteriza as narrativas ficcionais modernas, mesmo quando estas não se enquadram na forma romanesca, como é o caso da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga (considerada embrião de romance, por alguns, ou novela, para outros).

Esta busca do narrador de Guimarães Rosa, refletida no personagem Augusto Matraga, é degradada, inautêntica (conferir Luckács), porque o condutor da narrativa é um ser sozinho, um indivíduo ilhado num mundo de conformismo e convenção, onde o valor maior é o capital. Ele procura valores humanos autênticos no mundo burguês e não os encontra e, quixotescamente, procura recuperar, por intermédio do texto literário, um espaço autêntico que fez parte de sua primeira fase de vida — suas raízes, seu berço —; procura reavivar o passado, mas a memória é falha. Assim, detém-se na recordação (de novo ao coração) nas etapas seguintes, mas submetido conscientemente à forma ficcional (em prosa) que o faz transformar o herói em personagem. O narrador conhece as regras da narrativa moderna, reconhece-se um ser problemático enquanto personagem, e, por isto mesmo, prevê seu próprio fim. Criativamente, transfere esse fim para o seu personagem Nhô Augusto.

Seria uma solução (pós-)moderna?

Como já disse antes, Goldmann elabora suas pesquisas sobre o romance a partir de Lukács e Girard. Há um ponto de convergência entre os dois, pois, para ambos, o romance é a história de uma busca degradada de valores autênticos, por um herói problemático, num mundo degradado.
[3]

A degradação do mundo romanesco é o resultado de um mal ontológico mais ou menos avançado, correspondendo, dentro do mundo romanesco, um incremento do desejo metafísico.
[4]

Os diversos modelos de romance se baseiam na idéia da degradação. A degradação do mundo romanesco, o progresso do mal ontológico (desejo de valores autênticos, nomenclatura de Lukács; desejo de valores de uso, nomenclatura de Lucien Goldmann) e o desenvolvimento do desejo metafísico são mediatizados, e isto aumenta a distância entre o desejo metafísico e a busca autêntica, ou seja, aumenta a distância da busca da transcendência vertical (o que se poderá entender como reencontro da autenticidade).

Na ficção roseana, há a argumentação reflexiva e questionamento, mas seus personagens (Matraga e o narrador), embora degradados, sabem que possuem valores autênticos (pelo menos, o narrador sabe), mas não reencontram a autenticidade que procuram (os falsos valores, que sitiam o sertão e impedem esse reencontro). Por isto, a ruptura entre o personagem e o mundo, representados por Matraga e o arraial do Murici, é insuperável. O narrador reconhece esta impossibilidade de reencontro ao colocar seu Joãozinho Bem-Bem no caminho de Nhô Augusto. Ele sabe que seu personagem jamais retornará ao arraial e inventa uma poderosa figura, seu Joãozinho, para impedir o retorno. Seu Joãozinho é o mediador (personagem autenticamente ficcional) que se coloca entre o herói e sua procura de autenticidade.

— Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
[5]

Nesta fase dos acontecimentos, o personagem já está em vias de abandonar sua face carismática reprodutora do carisma do sertanejo, para assumir a sua condição ficcional — não mais representação da realidade, mas criação literária. A criação literária ficcional possui um mecanismo que reproduz a realidade, mas especialmente esta narrativa de Guimarães Rosa ultrapassa-a, atingindo a camada mimética caracterizadora de autêntica e reconhecida obra de arte.

Em relação ao narrador-personagem — o verdadeiro herói problemático de Guimarães Rosa poderá ser conceituado a partir do herói problemático das narrativas modernas, se penso a nomenclatura de George Lukács —, o agente mediador é o sertão. Assim como Dom Quixote, ele busca valores autênticos em seu passado próximo, e o seu passado é o sertão. Sertão onde há homens valentes, repletos de qualidades louváveis (valores de uso), sertão que já não faz parte de sua existência atual (seu ambiente social).

Como se torna impossível um retorno ao passado, o narrador de Rosa se degrada (atentar para a etimologia da palavra; não há aqui nenhuma terminologia com intenção pejorativa), degradando o personagem. Ele sabe que sua busca é inútil e a transfere para Nhô Augusto como morte, fim caracterizador do desenlace do herói problemático. Matando sua criatura, o escritor (já conceituado alhures como sertanejo) do século XX livra-se ficcionalmente do estigma da degradação, alcançando a transcendência vertical que será explicada a seguir.

Girard postula a idéia de que o romancista, no momento em que escreveu sua obra, abandonou o mundo da degradação, para reencontrar a autenticidade, a transcendência vertical.
[6] O Artista consegue reencontrar a autenticidade que busca por intermédio de sua obra, que possui os valores que estão no mais profundo de seu ser (os valores autênticos da obra são os valores autênticos do Artista).

Para Lukács,

Toda forma literária nasce da necessidade de exprimir um conteúdo essencial. Se a degradação romanesca fosse verdadeiramente ultrapassada pelo escritor, e mesmo pela conversão final de certo número de heróis, a história dessa degradação não seria mais que a de um incidente fortuito, e sua expressão teria, no máximo, o caráter de uma narrativa ou relato mais ou menos divertido.
[7]

Em outras palavras, a forma literária ficcional nasce da necessidade interior do Artista moderno de exprimir todo o seu manancial de criatividade. Ele descreve o que se localiza em sua imaginação criadora. Não há necessidade de condições sociais históricas para retratar a degradação do personagem; no decorrer de sua atividade criadora não será necessário que ele exprima seus próprios valores essenciais.

Contudo, a ironia do escritor, sua autonomia em relação aos seus personagens, a conversão final dos heróis romanescos, são realidades incontestáveis.
[8]

Lukács desenvolve a idéia de que, na proporção em que a trama romanesca é o fundamento de um universo onde impera a degradação, essa autonomia do Artista, em relação aos personagens, não poderia deixar de ser degradada, abstrata, conceptual (no sentido de idealizada) e não vivida como realidade concreta. Por meio de um subentendido humor (o que Lukács chama de ironia), ele comanda o personagem (conhece seu caráter problemático), e comanda a sua própria consciência (pois conhece o caráter abstrato e, por isso, insuficiente e degradado de sua consciência).

Penso que, no caso da ficção roseana, o Artista delega poderes ao narrador, para que atue como intermediário entre os dois espaços: o sertão e o mundo burguês. Por isto, a narrativa abandona o tom memorialista (sintagmático), adquirindo nuanças ficcionais e poéticas (paradigmáticas). A autonomia do ficcionista moderno abandona a reprodução da realidade sertaneja e passa a comandar a própria narrativa, personagem e narrador por meio do questionamento. Porque questionando ideologias e dialetizando-as, questiona a sua própria consciência burguesa. Se o narrador é primitivo e, ao mesmo tempo, burguês (suas faces/fases dentro da narrativa), penso naquele que o idealizou como um cidadão burguês, ressaltando o fato de que suas origens de vida se ligam às comunidades fechadas do passado (Ainda peço a atenção do leitor: aqui não há intenção pejorativa relacionada à palavra “burguês”). Buscando valores de uso, seu narrador exige que a narrativa prossiga, até o fim, representando o espaço puro do sertão, mas é submetido pelo mundo que o adotou (ou foi adotado por ele) e, inconscientemente, talvez, deixa transparecer sua desorientação de Artista moderno na desorientação verbal
[9] do narrador. A degradação passa para o discurso narrativo, marcadamente ficcional, quando o personagem Nhô Augusto começa a mudar sua opinião no que diz respeito aos seus valores carismáticos. Portanto, o diferente da narrativa (o que irá representar o ficcional) é o texto, a única camada visível da obra literária. O texto ─ repleto de questionamentos, exclamações, reticências, adotando um discurso poético com versos, cantigas sertanejas, e tantos outros recursos ─ caracteriza o imaginário-em-aberto do Ficcionista do século XX, ansioso por dar forma ao Vazio (Vazio Bashôniano, Mundo do Silêncio, repouso fervilhante bachelardiano, ou outra terminologia que seja do gosto do leitor) de sua mente privilegiada que se recusa a aceitar as questões ideológicas da sociedade que o cerca.


[1] SILVA (1984): 26 - 51
[2] GOLDMANN (1976): 9
[3] LUKÁCS. In.: GOLDMANN (1976): 8
[4] GIRARD. In.: GOLDMANN (1976): 11
[5] ROSA (1986): 37
[6] GIRARD. In.: GOLDMANN (1976): 13
[7] LUKÁCS. In.: GOLDMANN (1976): 13
[8] Ibidem
[9] BENJAMIN, Walter. In.: OS PENSADORES. Textos escolhidos. São Paulo: Abril cultural, 1980: 60

MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

VII - SOCIOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL


SOCIOLOGIA DO DISCURSO FICCIONAL

NEUZA MACHADO





PRELIMINARES


Por esta perspectiva - Estudos Sociológicos da Literatura -, estimulei-me teoricamente submetida aos conceitos de Lucien Goldmann sobre a sociologia do romance, articulando-os com a minha propedêutica a respeito do narrador em geral e do narrador roseano de A hora e vez de Augusto Matraga. Desenvolverei, de ora em diante, um pensamento decodificador do assunto, porque, como diz o título do prefácio de Goldmann, os estudos ali inseridos são uma “Introdução aos problemas de uma sociologia do romance” não desenvolvida. Sobre sua teoria sociológica do romance, o autor afirma: O conjunto (os três primeiros capítulos) é um resumo dos resultados de dois anos de pesquisa sobre a sociologia do romance (...)[1]. Em virtude desta afirmativa, contemplo-me no difícil encargo de resumir o que já é, em si mesmo, um resumo. Por este lado, cada idéia importa para o reconhecimento do assunto, e não é minha intenção deturpá-lo.

As hipóteses de Goldmann têm como base (ainda hoje confiáveis) as análises teórico-marxistas de George Lukács, inseridas em A teoria do romance
[2], incluindo contribuições teóricas de René Girard, encontradas em Mensonge romantique et verité romanesque.[3] As hipóteses sociológicas de Goldmann partem da idéia de que existe, por um lado, uma homologia entre a estrutura romanesca clássica e a estrutura da troca (permutação) na economia liberal (capitalista) e, por outro lado, existem também certos paralelismos entre suas respectivas evoluções posteriores, ou seja, uma semelhança entre a estrutura do romance clássico e a estrutura da troca na economia liberal, porque existe a relação entre romance como gênero literário e a estrutura do meio social, em que esta forma de narrativa se desenvolveu (a moderna sociedade individualista).

Fundamentando-me nestas teses sociológicas de Goldmann, permiti-me construir o meu pensamento central a respeito do narrador em geral e do narrador roseano de A hora e vez de Augusto Matraga.

Teoricamente, esta narrativa de Guimarães Rosa não se enquadra no que se concebe por romance ou conto (a narrativa já foi conceituada algures como pequena novela). Minha formação de base semiológica (semiologia literária centrada na comunicação como parte integrante da História) permite-me aproximá-la aos conceitos de Goldmann, porque observo todas as variantes da ficção moderna (a partir da Era Moderna) por uma mesma denominação, ou seja, simplesmente como narrativas ficcionais.

Goldmann teoriza a partir de Lukács e Girard. Reportando-me a Lukács, detenho-me em uma sua assertiva: o romance é a epopéia de um mundo sem deuses
[4]. O romance se liga, de certa forma (e o autor nos prova tal ligação), à matéria épica. Pelo postulado da Teoria Literária, o romance jamais será considerado como literatura épica, uma vez que se formaliza em prosa, mas Lukács tem razão, porque sempre se visualizará nos textos autenticamente ficcionais a inclusão de matéria épica (não me refiro à forma e sim à matéria), incluindo também as matérias lírica e dramática. Em verdade, o romance é um autêntico fenômeno da Era Moderna, um gênero criado a partir da narrativa em prosa transmutativa (ficção paradigmática). Mesmo assim, o raciocínio circular-transmutativo impede que se reneguem as contribuições do passado: não há forma literária nova que não tenha suas raízes nas formas que a precederam, e, segundo minhas próprias deduções, não há crítica literária nova que não se estruture a partir dos pensamentos de críticos precedentes.

Para Georg Lukács:

Entre epopéia e romance — as duas objetivações da grande literatura épica — a diferença não se deve às intenções íntimas do escritor, mas aos dados histórico-filosóficos que se impõe à sua criação.

O romance é a epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da vida não é já dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência do sentido à vida se tornou problema, mas que, apesar de tudo, não cessou de aspirar à totalidade.
[5]

Em Goldmann, o romance

É a história de uma investigação degradada (segundo Lukács: demoníaca), pesquisa de valores autênticos num mundo também degradado, mas em nível diversamente adiantado e de modo diferente.
[6]

Para Goldmann, o romancista, que é de certa forma um cronista de seu tempo, apreende a problemática social que afeta o seu momento histórico. Cabe ao sociólogo separar as várias tonalidades desta realidade que, por sua vez, está degradada pela ótica do Artista literário (cúmplice involuntário, ou voluntário, de um mundo de aparências). O sociólogo se interioriza, investigando, até descobrir o núcleo problemático da obra, na busca de valores autênticos de um mundo onde esses mesmos valores estão também degradados, camuflados, vendo-se na superfície somente valores falsos. Assim, será necessário ─ sempre ─ uma investigação profunda para que se descubra a essência desses valores. O romance é um gênero épico caracterizado (...) pela ruptura insuperável entre o herói e o mundo.
[7] Pela ótica dos semiólogos da literatura, o romance não pertence ao gênero épico, se adéqua ao ficcional, mas esta conceituação surgiu depois de Lukács, portanto, não me vejo impedida de o citar, alertando aos leitores desta minha propedêutica para que façam conscientemente uma revisão do assunto. Entretanto, não desejo desmerecer os estudos de Lukács, pois possuo a convicção de que a crítica literária não fica estagnada em um determinado período da história do homem. Os conceitos estão fadados a modificações; o que hoje se ensina como certo, amanhã poderá ser contestado. Tomo a liberdade de substituir a palavra “gênero”, inserida na citação acima, pela palavra “matéria épica”, de acordo com os preceitos semiológicos, ou mesmo substituindo-a pela palavra “essência épica”, pelo ponto de vista da fenomenologia, se penso desenvolver aqui um estudo interdisciplinar. De qualquer maneira, retomando do ponto de onde parei, depois desta minha digressão, não pretendo discordar de Lukács, pois são os seus pensamentos (pioneiros) que me permitem dar continuidade aos pensamentos críticos atuais dos teóricos da literatura. Enfim, segundo Goldmann, encontra-se em Lukács uma análise da degradação do herói e da degradação do mundo. São estas duas degradações que devem engendrar, simultaneamente, uma oposição constitutiva e uma comunidade suficiente para permitir a existência de uma forma épica.[8]


[1] GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. 2.ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1976: 7
[2] LUKÁCS, George. In.: GOLDMANN (1976)
[3] GIRARD. In.: GOLDMANN (1976)
[4] LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Lisboa: Presença, 1962: 100
[5] Ibidem: 61
[6] GOLDMANN (1976): 9
[7] LUKÁCS. In.: GOLDMANN (1976): 9
[8] Ibidem


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

VI - SEMIOLOGIA DO SERTÃO

VI - SEMIOLOGIA DO SERTÃO

NEUZA MACHADO



O discurso narrativo - ficcional - de A hora e vez de Augusto Matraga estrutura-se, como instância fundadora do processo literário de criação[1], a partir das vastas terras produtivas do sertão mineiro, sobressaindo-se o modo de vida do sertanejo, seu linguajar aparentemente deturpado, os combates entre jagunços, as disputas políticas, enfim, todo um pequeno espaço sócio-substancial, miniatural, mas que reflete, em nível de interpretação, o próprio Mundo. Posso afirmar que a narrativa de Guimarães Rosa só poderia mesmo se estruturar em seu momento histórico, isto é, refletir toda a problemática existencial que envolve o homem do século XX, fragmentado, levado pela aceleração dos acontecimentos, sujeito às imposições de poder e dominação. Evidentemente, afirmo meus pensamentos sob o aval da Semiologia de Segunda Geração, apenas, imponho-me ressaltar o paradoxo da narrativa roseana: o mundo recriado possui todas as características apontadas acima, mas possui, também, matéria mítica ainda em fase embrionária. O sertão apreendido pelo Artista literário é ainda aquele espaço primitivo no qual se mesclam as Idades Antiga e Medieval. Este sertão é uma bolha especialíssima flutuando no Caos, ainda conservando a pureza de um mundo original. O complexo (o insólito) é o narrador refletir a pureza do homem primitivo em conflito com o mundo moderno. O diabo não existe, reflete Riobaldo em Grande Sertão: Veredas. O diabo é este desejo do homem atual de recompor sua identidade fragmentada. O diabo é esta busca incessante de valores de uso em um mundo onde esses valores já não existem. No entanto, no sertão mineiro, esses valores ainda existem como herança de antigas normas de vida comunitária. O narrador ultrapassa seus limites: a criatura romanesca reflete seu criador.

No plano da realidade histórica do anterior século XX, o homem se viu às voltas com um desenvolvimento tecnológico que ultrapassava a sua própria capacidade de sustentação. Esta situação ainda permanece neste início de século XXI: o homem foi tragado pela mola propulsora do progresso, por não estar devidamente preparado para tal evento. Instauram-se, portanto, o conflito e a busca por soluções pacíficas, incluindo o medo de catástrofes nucleares. Apreende-se uma dimensão subjetiva do Homem — seus medos e temores, experiências de vida — e uma dimensão objetiva do Mundo — suas ideologias e códigos.

No plano literário, o Artista, por intermédio de seu narrador, se apropria de um determinado fato da realidade histórica (ou fatos), transporta-o para o texto, por uma focalização pessoal ou grupal ou até mesmo universal, dá-lhe a forma literária adequada e, segundo suas próprias características, eleva a sua criação a um plano em que esta mesma realidade se transforma num outro tipo de realidade, que chamamos de ficcional. Isto se processa por meio do discurso metafórico (representativo de uma realidade transformada) em conflito com o discurso metonímico, refletor do mundo concreto (mundo dos significados). Se o Artista apenas transcrevesse suas impressões da realidade, não estaria desenvolvendo um texto-obra, apenas copiaria a realidade; a mimésis literária conforme a entendemos hoje não seria realizada. Sobressaiu-se, em um determinado momento do percurso ficcional do século XX, a necessidade de o processo literário (criação) converter-se em discurso, em nível de elaboração artística/literária, para que o personagem se relacionasse com seu espaço e, assim, produzisse o ficcional.

Guimarães Rosa desenvolve todo esse processo criador, ao converter em discurso ficcional a vivência do homem do sertão. A mimésis, na narrativa em questão, é realizada dentro do texto, enquanto texto visível — os sinais tipográficos formadores de palavras e expressões idiomáticas, que transgridem as imposições dos códigos usuais. O texto ficcional roseano é característico da linguagem original, é a língua como elemento metafísico, é a dualidade das palavras, de acordo com as próprias palavras de Rosa, ditas em uma entrevista a Günter Lorenz, em 1965.[2]

A proposta inicial da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga é estruturar a realidade do sertão a partir de personagens típicos, refletindo, em seus contornos, a figura do homem sertanejo e o seu comportamento dentro de seu espaço social.

Analisando a estrutura da narrativa de A hora e vez de Augusto Matraga, repito, observei que esta se apoia em dois planos: um plano objetivo, sócio-substancial, em que se apreende o espaço do sertão como um reduto de conflitos exteriores (disputas, peregrinações); e um plano subjetivo, mítico-substancial, no qual encontramos o narrador às voltas com seu espírito místico, questionador, transferindo para o personagem central (representante de um mundo imaculado) seus próprios conflitos existenciais, representante que é da burguesia brasileira, ainda que sertaneja. Nesse plano, há a retomada do mítico-pagão (primeira seqüência da narrativa), há a preocupação com Deus, a consciência de sua existência, mas, também, há a certeza de que Este se encontra distanciado. E ele chama por Deus, na hora da dor mais forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi[3] (palavras de Mãe Quitéria, a preta que o salvou). E há também a preocupação em confirmar a existência de um outro deus, este sim, muito próximo, um deus solerte, deus que garante tudo, o qual modificará definitivamente a estrutura ficcional, posicionando o narrador como personagem atuante.

Narrativa é uma estrutura plural e objetiva, criada por uma outra instância literária, o narrador, que elabora uma proposição de realidade. A narrativa estrutura uma proposição de realidade pela referencialidade sígnica.[4]

À narrativa (diegésis) pura e simples não interessa o subjetivismo. Para que seja elaborada linearmente, há a necessidade de um narrador, e este não deseja mais nada senão um ouvinte atento, que compartilhe de seu prazer em narrar, ouvindo também com prazer. O narrador (tradicional, experiente) propõe-se a relatar fatos, apenas fatos: não há conotações e sim denotações (quando muito, conotações em nível de linguagem cotidiana).

Se me detenho a observar a narrativa roseana apenas pela perspectiva objetiva (análise pura), verei que o Artista soube apreender todas as questões e situações que envolvem o sertanejo e seu espaço ideológico. É fácil recontar as peripécias de Nhô Augusto; é fácil traçar uma linha horizontal, sintagmática, e recuperar a sua trajetória existencial, desde a sua atuação como refletor do Poder patriarcal, a sua queda (refletindo os desmandos deste mesmo Poder) e a sua recuperação (refletindo os ditames do Poder carismático), até à subjugação aos desígnios do narrador (aliado daquele deus que garante tudo), que o transforma em personagem ficcional.

Mas, está presente, também, o plano subjetivo: há um narrador-personagem que vivencia profundamente todos os acontecimentos. Este ser assinalado não se encontra distanciado de seu narrar. Se no início da narrativa se observa este distanciamento, quase ao estilo épico, apreende-se, posteriormente, a sua transmutação, apoderando-se da matéria mítica, deixando transparecer seus questionamentos, sua fragmentação interior, seu ponto de vista em relação ao sertão. Há características líricas, poéticas, difíceis de serem desapartadas do texto ficcional. Portanto, além da narrativa sintagmática, linear, em prosa, há, em A hora e vez de Augusto Matraga, o ficcional paradigmático e, intermediando, o plano discursivo (o texto propriamente dito), nos quais se detectam características do discurso poético, características líricas: universos fragmentados, subjetivos, singulares, em que o narrador se afasta, por diversas vezes, da diegésis, para enredar-se em seus próprios devaneios e circunlóquios, alheio à matéria enfocada, observando o sertão pelo ponto de vista mágico do Poeta. Todas estas características formalizam um sertão poético, em que as recordações suplantam a objetividade da memória.

Nhô Augusto deixa de ter importância no esquema narrativo, torna-se apenas um pretexto para que o narrador recupere suas lembranças e possa trazer para seu presente uma realidade já modificada pelo crivo dos sentimentos interiorizados, pessoais. A história do personagem, como representante da ideologia dominante, perde seu narrador memorialista, porque o verdadeiro narrador é um cidadão burguês capitalista (e, aqui, é importante ressaltar, não há nenhum desmerecimento para com o escritor), e não há como modificar sua história pessoal e a História do Mundo. Não é possível valer-se agora de um discurso objetivo, linear, para fazer-se entender; há a necessidade de se valer de sua criatividade ficcional especialíssima, e esta não faz parte do universo diegético. Nesse momento, o narrador se transforma, mimetiza o passado, visualiza o sertão através da recordação (característica do lírico), através de um estado anímico que, segundo Staiger, faz parte de um remanescente da existência paradisíaca[5]. A linguagem sertaneja (mineira) possui musicalidade, entoação, criatividade, que escapam às diretrizes lingüísticas usuais. E o Artista explora com maestria estas características. Não se presta atenção ao conteúdo da frase, os volteios melódicos (mentais) do narrador são mais instigantes. Por isto, sua narrativa, em princípio aparentemente tão simples, passa a apresentar um alto grau de complexidade: há a lógica da ficção, isto é certo, mas, dentro de um singular ilogismo poético. O discurso poético associado ao discurso ficcional, é apreendido nas últimas seqüências, e permanece até a seqüência final como um perfume sutil. O Artista, no final apoteótico, é poderosamente o dono de seu narrar. É aquele cantor lírico de que nos fala Staiger, travestido de narrador, perdido na contemplação de seu passado e seu passado é o sertão. Segue o curso ondulatório de seus pensamentos cantando/narrando despreocupadamente — assim como Nhô Augusto segue o instinto de direção do jegue —, perfeitamente integrado no todo de seu cantar/narrar. A atitude do personagem-narrador, como conselheiro preso às imposições ideológicas, perdeu sua razão de ser. Não lhe interessa mais ser entendido, ou não; narra as aventuras de Nhô Augusto para si mesmo; recria o sertão, que está vivo em seu imaginário-em-aberto, traz novamente ao coração as recordações de um passado no qual que se misturam verdades e fantasias.

Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha paralela: com o calor dos dias aumentando, e os dias cada vez maiores, e o joão-de-barro construindo casa nova, e as sementinhas, que hibernavam na poeira, esperando na poeira, em misteriosas incubações. Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve. Não tinha precisão de enxotar as tristezas. Não pensava nada. E as mariposas e os cupins-de-asas vinham voar ao redor da lamparina... Círculo rodeando a lua cheia, sem se encostar... E começaram os cantos. Primeiro, os sapos: — “Sapo na seca coaxando, chuva beirando”, mãe Quitéria!... — Apareceu uma jia na horta, e pererecas dentro de casa, pelas paredes... E os escorpiões e as minhocas pulavam no terreiro, perseguidos pela correição de lava-pés, em préstitos atarefados e compridos... No céu sul, houve nuvens maiores, mais escuras. Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite. A casca de lua, de bico para baixo, “despejando”... Um vento frio, no fim do calor do dia... Na orilha do atoleiro, a saracura fêmea gritou, pedindo três potes, três potes, três potes para apanhar água... Choveu.

Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a idéia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu:

— Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...[6]

Ao lado da diegésis, com todas as suas noções referenciais (os personagens e o posicionamento destes no espaço da narrativa, o enredar-se em acontecimentos esperados ou inesperados), há as imagens do texto: imagens imitativas e imagens conotativas. As imagens imitativas não se ligariam propriamente ao texto-objeto como cópia da natureza, as imagens seriam, antes, uma representação da natureza por meio de uma imaginação rica e particular. Essas imagens imitativas, apreendidas no decorrer da investigação, possuem um poder todo especial: é a representação — função exclusiva do texto como cópia da natureza —, trazendo em si o poder de invenção. As imagens conotativas formam a realidade estética propriamente dita, espaço opaco, no qual se vislumbram todos os questionamentos burgueses, o espanto existencial do narrador, sua atitude paradoxal, transferindo para o personagem Nhô Augusto sua face problemática, porque, narrando as transformações de vida do personagem, revela suas próprias transformações existenciais. O alter ego do Artista Ficcional ─ o narrador ─, retoma o passado e recria o personagem, revelando assim suas próprias transformações na vida e na arte. Por intermédio do personagem recompõe a sua face sertaneja, o que ele possivelmente teria sido se permanecesse no sertão. O personagem representa as suas raízes sertanejas, é um fragmento de seu íntimo existencial, ou melhor, o painel de vários fragmentos de seu ser. O personagem representa um trecho de uma história pessoal que não foi significado racionalmente, mas que está devidamente registrado no universo das probabilidades.

Evidentemente, no início da narrativa, há imposições ideológicas — sociais e religiosas — direcionando o ato de narrar, mas, graças aos questionamentos burgueses, o narrador modifica sua forma de criar o ficcional. Revigorado por um novíssimo juízo, poetiza as recordações do sertão, inventa uma nova face para Nhô Augusto, quando este procura acertar o caminho do retorno ao arraial do Murici, caminho do que houve e do que não houve, como o Artista diria mais tarde em Grande Sertão: Veredas por intermédio de Riobaldo. Narrar necessita objetividade, e a realidade estética se estrutura a partir da ambigüidade e do subjetivismo. O narrador, descrevendo o retorno de Nhô Augusto, deixa-se enredar pelo fluxo da memória. Não há muita coerência na descrição do sertão nas seqüências finais, porque o narrador vivenciou o sertão. E, por ser nato do sertão, suas lembranças estão replenas de sentimentos desencontrados. Tudo miúdo, recruzado, como diria mais tarde o já citado Riobaldo, outro duplo do Artista. As lembranças vêm chegando aos arrancos, fazendo-o caminhar em ziguezague, como caminha Nhô Augusto, levado pelo instinto de direção do burrico. Este caminhar desencontrado distingue-se pelo registro das impressões do sertão, impressões marcantes, descrições miúdas da natureza; sertão metafísico captado no entrecruzar das recordações. O sertão roseano é um mundo repleto de experiências, mas também se localiza nos amplos domínios da realidade poético-ficcional.

A narrativa estrutura uma proposição de realidade mas não cria a realidade objetiva. A criação da proposição de realidade da existencialidade humana é privilégio da dinâmica do real (natureza, Deus), por isso, a narrativa se contenta em estruturar, por um processo mimético, uma proposição de realidade ficcional.[7]

A narrativa estrutura uma proposição de realidade, mas não cria a realidade objetiva. Toda narrativa quer-se verdadeira, almeja refletir o mundo em todas as gradações possíveis, e, no entanto, o mundo representado é ficcional. Nesse paradoxo instaura-se a grandeza do literário. A narrativa, ao passar pelo processo de criação, passa também por um processo seletivo, ou seja, o narrador transmite somente as diretrizes narrativas do Artista Ficcional, demiurgo de um mundo feito à sua imagem e semelhança; mundo que ultrapassa as barreiras da História, alcançando as dimensões do Absoluto.

Em uma notável ENTREVISTA, diz Guimarães Rosa ao crítico alemão Günter Lorenz:

Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.[8]

Sou escritor e penso em eternidades.[9]

Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito.[10]

Para revelar o mundo ficcional, o Artista utiliza-se de seu próprio imaginário; apropria-se de um discurso metafórico, de referências sígnicas, conduzindo um discurso tenso e comovido, fazendo o leitor acompanhar (e compartilhar) as peripécias da narrativa com emoção e prazer. Este se sente transportado para uma outra realidade, que só naquele momento se descortina e lhe traz verdades nunca antes imaginadas. Eis o processo mimético atuando. Nesse momento, a realidade ficcional é tão ou mais verdadeira do que a realidade histórica. O mundo ─ com suas aparências ─ é desmascarado por meio do processo literário. Nesse momento, o leitor descobre o verdadeiro real da realidade.[11] Agora não é mais a emoção atuando, é a razão; é o intelecto que apreende a(s) mensagem(s) do Artista. Adorno diz que a Arte, além de reproduzir a realidade, dá forma a um outro tipo de realidade. Por intermédio desse processo mimético, compreende-se a proposta de realidade ficcional.

Em A hora e vez de Augusto Matraga, observa-se esse processo. As narrativas de Guimarães Rosa mimeticamente atingem um plano universal de raras proporções, porque reproduzem os problemas do Mundo. O sertão roseano repete as leis do Mundo e as questiona. A realidade histórica da Era Moderna é um somatório de fatos degradantes, e, o cotidiano busca camuflá-los. O homem, submetido à lei da sobrevivência, recusa-se a olhar uma realidade difícil de se aceitar. Há, por conseguinte, a necessidade do literário, para que se possa abrir os olhos e desmascarar a realidade objetiva.

Tudo o que se observa na narrativa roseana faz parte do plano histórico; tudo isto acontece (e se detecta) nos sertões brasileiros e mesmo nas grandes cidades: o poder da classe dominante (e sua violência), a subjugação aos menos favorecidos (a opulência em oposição à miséria).

Em A hora e vez de Augusto Matraga há matéria mítica ainda em estado bruto: o sertão como um pequeno espaço primitivo e original; há exploração de algumas frases rítmicas e a utilização de recursos sonoros; o plano sócio-substancial e o mítico-substancial encontram-se amalgamados ao histórico, portanto, há uma fusão das dimensões do real e do mito, ou seja, há a matéria épica realizada sob a égide da narrativa ficcional.


[1] SILVA (1984): 56
[2] Rosa, João Guimarães. In.: ARTE EM REVISTA. “Literatura e vida”. Ano I – no 2, maio / agosto, 1979: 7
[3] Idem (1986): 20
[4] SILVA (1984): 13
[5] STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975: 7
[6] ROSA (1986): 29-30
[7] SILVA (1984): 13
[8] ROSA (1979): 9
[9] Ibidem: 11
[10] Ibidem: 12
[11] SAMUEL, Rogel. O que é Teolit? Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986: 14


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

domingo, 24 de janeiro de 2010

V - O MÍTICO-SUBSTANCIAL EM A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA DE GUIMARÃES ROSA

NEUZA MACHADO


A objetividade histórica presente na narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, como estrutura da proposição de realidade ficcional foi apreendida por intermédio de dois planos sintagmáticos que se fundem: o Sócio-Substancial e o Mítico-Substancial. O sertão desta narrativa compõe-se de “matéria” épica em estado bruto (não confundir com gênero épico): é um espaço onde se confundem demandas, superstições, misticismos. Ali, o sobrenatural faz parte do cotidiano do sertanejo. O personagem desta ficção poderá ser avaliado como um remanescente do homem arcaico, possuidor — ainda — de todos os valores que estruturavam as Idades que precederam a Era Moderna.

No primeiro segmento, destaca-se a figura do personagem como herói, tanto dentro da perspectiva mítica quanto histórica. O personagem (neste momento, não penso nele como herói ficcional) atuando nos dois planos conceituais da realidade, é o Todo Poderoso que submete o povo a seus desígnios. No entanto, como a ficção não se enquadra na categoria de épica (em versos), apenas possui a matéria mítica que garantirá uma interação entre os dois planos, este personagem ficcional do século XX (já revelando a decadência das normas severas do "ontem eterno"), caminha para uma desestruturação, característica do modelo romanesco moderno. Mesmo assim, apreendem-se nela (nesta narrativa em especial) elementos que fazem parte da substância épica.

O herói (apenas na primeira fase sequencial) se movimenta em seu espaço mítico/místico (novena, leilão de santo, procissão, reza, igreja iluminada), possuindo poderes próprios. Está tão distanciado de Deus, é tão ruim, que na hora do sofrimento físico e moral, invocando-o, Este não o atende, nem para um fôlego (p. 20).

Neste espaço primitivo se sobrepõe quem é forte. Aos fracos cabe obedecer, pois quando um forte perde seus poderes de liderança é castigado com a morte pelo vencedor.

Outro signo mítico que está presente nesta primeira seqüência é o fogo. Este foi considerado, na Antiguidade Romana, divindade primordial da religião doméstica. Era o elemento sagrado que ardia dia e noite nos lares romanos, protegendo-os das influências negativas do cotidiano. Na Idade Média, torna-se um símbolo purificador. Em sua caça às bruxas, o cristianismo utilizou-o como forma de punição. Assim está presente na narrativa. Enquanto símbolo religioso, o fogo (mitificado) acompanha toda a trajetória do herói até o momento de sua queda. As candeias iluminam o cenário mítico/místico (lanterninhas e muita luz de azeite), na hora do sofrimento e prenúncio de morte a preta procurou um coto de vela benta, para ser posta na mão do homem, na hora do Diga Jesus comigo, irmão... (p. 19), ao longo do processo de restabelecimento (do personagem e da narrativa), a preta acendia a candeia e trazia para perto do doente uma estampa de Nossa Senhora do Rosário, e o terço (p. 21). Essa luzinha fazia-o lembrar-se de sua infância, era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas, mas todas de bom e bonito final (p. 21). E não há como esquecer que por intermédio fogo o herói foi punido. A marca do ferro em brasa irá acompanhá-lo até a morte.

Destaquei no primeiro segmento da narrativa as características do mítico, porque é nesse momento inicial que se observam estes dados com mais clareza. O sertão roseano é a própria essência da matéria mítica, e é também o cenário estruturador de toda a narrativa.


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)


sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

IV - O SÓCIO-SUBSTANCIAL EM A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA DE GUIMARÃES ROSA

NEUZA MACHADO

No intuito de construir um ponto de vista teórico-crítico centralizado no próprio texto, penso a narrativa ficcional A hora e vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa partindo do processo literário de criação: a técnica do Artista, seu método de execução de trabalho, a forma de apreender o Histórico e de transformá-lo em realidade ficcional.

Segundo Anazildo Vasconcelos:

Na narrativa de semiotização do acontecimento, a identidade do personagem com o espaço é rompida por um acontecimento, cuja lógica significativa, aliada ao fio narrativo, submete espaço e personagem à logicidade estrutural da proposição de realidade ficcional. Desarticulados, personagem e espaço tornam-se impotentes diante do acontecimento. Incapazes de reduzirem-no às suas lógicas significantes respectivas, não conseguem recuperar a imagem do mundo estruturada, anterior ao acontecimento, e restabelecer a identidade perdida.[1]

Ao desenvolver um modelo de trabalho, constatei que a narrativa se encaixava, em termos de padrões narrativos, na narrativa de semiotização do acontecimento, de acordo com as observações teórico/semiológicas de Anazildo Vasconcelos, porque todo o sentido desta narrativa roseana se estrutura a partir de um acontecimento que vem abalar o aparentemente sólido posicionamento sócio-substancial do personagem principal. Nhô Augusto comanda seu espaço vivencial e este, por sua vez, submete-se às suas exigências. Senhor absoluto de um pequeno lugarejo do sertão, o personagem se encontra, nas primeiras linhas, em toda a sua plenitude. Destaca-se como figura respeitada, temida, amada (observar, por exemplo, as atitudes servis do personagem Quim Recadeiro) e odiada, dando a impressão, em princípio, de colocar-se como representante de narrativa de personagem (característica de narrativa romântica). Esta impressão é desfeita nas sequências seguintes em virtude do Inesperado que se avizinha, e que sujeitará o personagem à lógica do acontecimento.

A mola propulsora que desencadeia o desmoronamento sócio-substancial e vivencial do personagem se situa a partir de um leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.[2] Este leilão é o acontecimento, cuja lógica significante, aliada ao fio narrativo, submete espaço e personagem à logicidade estrutural da proposição de realidade ficcional.[3] Esta assertiva de Anazildo Vasconcelos esclarece e embasa-me, quando passo a observar gradativamente o jogo discursivo do narrador, no qual se observa, após a queda do personagem Nhô Augusto, a imposição provisória do espaço (o personagem é punido e se submete temporariamente aos limites impostos), a tentativa de emancipação, o conflito (personagem versus espaço) que se instaura a partir da chegada do Tião, trazendo notícias que ninguém não tinha pedido (op. cit.: 26) - ou seja, a lógica do acontecimento sujeitando espaço e personagem -, a chegada do bando de seu Joãozinho Bem-Bem significando o imprevisto dentro da narrativa, o convite de seu Joãozinho a Nhô Augusto, para que se amadrinhasse com o seu bando, o desejo de aceitar e o medo de ser castigado (p. 38), e, por último, a reemancipação, que não se efetua em termos de narrativa de personagem, porque, mesmo atingindo a plenitude, por meio de uma morte gloriosa, santificada, termina sob a imposição da lógica do acontecimento.

O personagem, ao retornar, visava a sua reestruturação social. Se antes, enquanto carismático, repetia sua jaculatória, tendo por finalidade unicamente a sua entrada no céu depois da morte, agora, que a submissão havia sido superada, destaca-se em toda a sua plenitude como ser social. Percebe-se, nas páginas 38 e 40, que o personagem passa a comandar suas ações, porque o narrador será, de agora em diante, senhor absoluto do seu ato de narrar, mesmo desconhecendo os rumos de sua narrativa.

E somente por hábito, quase, era que ia repetindo: — Cada um tem a sua hora, e há de chegar a minha vez!

Tanto assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, às três horas fortes do dia, em que os anjos escutam e dizem amém...[4]

Ele que já não olhava para o bom parecer das mulheres retornava ao antigo hábito: Do outro lado da cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu devia ser mulher.[5] Esta citação prova que o personagem pretende recuperar seus poderes sócio-substanciais: a fé sofre modificações. O narrador, alter ego de quem escreve, a observa através de seu próprio ponto de vista. Mas o imprevisto, submetido às lembranças, está presente, pronto para agir, e isto só se faz visível extratexto, por intermédio dos estranhamentos lingüísticos, não em nível narrativo.

A propósito, destaco uma observação de Anazildo, a respeito do Realismo Mágico, resguardando a diferença de que a narrativa em questão não se situa dentro desta modalidade, mas, como base de apreensão teórica, o processo é idêntico.

A imagem de mundo só é percebida como absurda, ou anormal, de fora, interpretativamente, por quem guarda uma outra experiência existencial.[6]

No início da página 41 até o final há estranhamentos ao nível do discurso, e isto comprova o desejo do narrador de interferir em sua narrativa, para que esta não se situe como reprodução da realidade.

Por uma perspectiva simplista, poderia afirmar que esta narrativa de Guimarães Rosa é realista, por procurar marcar o tradicional, o regional, por intermédio do método de contar estórias, mas não poderei fazer tal afirmativa, em virtude de a mesma romper com seus limites, por meio de um manejo lingüístico complexo, ao nível da estrutura narrativa. Por este prisma, o próprio narrador agencia o insólito, utilizando-se de um estranhamento lingüístico que foge aos padrões normais de uma narrativa de informação.

Por meio desses estranhamentos — o envolvimento do narrador com a matéria narrada, seus questionamentos, assombros, sua própria surpresa diante dos imprevistos, sua atitude de cúmplice com o leitor, o que normalmente seria o inverso — a lógica do acontecimento atua e o que aparentemente é uma vitória do personagem, nada mais é do que a vitória do acontecimento.

O narrador se surpreende e questiona o próprio discurso (p. 41), procurando compreender e decifrar a desordem mental (característica do narrador do século XX) em que se acha envolvido; assim passa a agir como experimentalista, buscando novas formas de apresentar o seu discurso ficcional, e estes sinais demonstram que, a partir daí, a sua própria lógica passará a atuar, e não a do personagem. O acontecimento, de ora em diante, será a força energética que estruturará o ato de narrar. Se a lógica do personagem atuasse deveras, até o final da narrativa, como em princípio se supõe, ele direcionaria seus impulsos existenciais, e não é isto o que se observa.

Quando ele encostou a enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda não possuía idéia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada adiantavam, para retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai preto Serapião.[7]

Seu retorno é pautado por um discurso intrincado, centrado no significante. Já não se observa mais a linguagem comum da ficção linear. O personagem fez sua viagem de volta ao sabor do acaso, e este acaso se estrutura a partir das divagações poéticas do narrador (matéria lírica interagindo com a matéria da narrativa em prosa). É um discurso revelador de ambigüidades e conotações — os quais caracterizam o discurso poético —, descrições de cenas pictóricas, cantigas, exclamações, interrogações, provérbios.

Entre marchas e contramarchas (de Nhô Augusto e do narrador),

(...) somada as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas – mais ranchos, mais casas, povoados, fazendas; depois, arraiais, brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.[8]

No desenrolar dos acontecimentos, o personagem esperara sua hora e vez por meio da lógica do espaço (sua fé religiosa), e posteriormente por intermédio da lógica do personagem (o desejo de reestruturar-se). O arraial do Murici, povoado onde se inicia o desequilíbrio existencial de Nhô Augusto, teria de ser o cenário no qual se daria a sua recuperação, porque o dito arraial, no plano narrativo, representa e concentra os problemas da modernidade. O retorno não se efetua, porque a lógica do acontecimento oferece novos imprevistos ficcionais. Esses imprevistos são sempre estruturados a partir do personagem (nitidamente ficcional) Joãozinho Bem-Bem.

Quase chegando ao seu arraial de origem, Nhô Augusto é levado, por sua montaria, ao arraial do Rala-Coco, onde havia, no momento, uma agitação assustada de povo (p. 44). Há o reencontro com seu Joãozinho e a jagunçada; há a reafirmação do convite; há o desejo de aceitar; mas há também a recusa, por saber que, por ter vivenciado e se ligado a valores espirituais, continuava preso à sua promessa. Posso dizer, pelo ponto de vista da interpretação extratexto, que sua hora e vez teria de chegar, mas sem que abdicasse de todas as formas de poder que conhecera em sua vida.

Os outros imprevistos são a notícia da morte do Juruminho, a chegada do velho desvalido e a defesa instintiva de Nhô Augusto — fatos que colaboram para que o desfecho se situe dentro dos desígnios do acontecimento. O personagem e o espaço se submetem à logicidade estrutural da proposição de realidade ficcional reivindicada pelo momento histórico (cf. Anazildo Vasconcelos, op. cit.). Por último, como elemento desencadeador do conflito final, visualiza-se a figura do jagunço Teófilo Sussuarana agindo impensadamente e destruindo a possibilidade de reestruturação.

Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era bem assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco, excessivamente bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz: — Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!...[9]

Sua hora e vez — e esta frase é o ponto básico da narrativa — chega inesperadamente. O personagem só se dá conta de que sua vez chegara na hora da luta. Teófilo Sussuarana se destaca como elemento de interseção, agenciador do acontecimento. Há a luta entre Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem. Os dois personagens morrem em condições idênticas. Não há vencedores. Ambos serão enterrados em chão sagrado, ou seja, ficcional.


[1] SILVA (1984): 72.
[2] ROSA (1986): 7
[3] SILVA (1984): 72
[4] ROSA (1986): 39
[5] Ibidem: 40
[6] SILVA (1984): 80
[7] ROSA (1986): 41
[8] Ibidem: 44
[9] Ibidem: 49


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)