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sábado, 1 de outubro de 2011

CECÍLIA MEIRELES E SEU "ROMANCEIRO" PÓS-MODERNO: ROMANCE XXI OU DAS IDEIAS


CECÍLIA MEIRELES E SEU “ROMANCEIRO” PÓS-MODERNO: ROMANCE XXI OU DAS IDEIAS

NEUZA MACHADO

Quando a página lida é demasiadamente bela, a modéstia recalca esse desejo. Mas ele renasce. Seja como for, todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito”.

(BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2005:10)

É exatamente isto que desejo expressar aos meus leitores blogueiros: “todo leitor que relê uma obra que ama, sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito”. As páginas do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles muito de perto me “dizem respeito”.

Graças ao fenômeno estilístico denominado autonomia das partes, o poema épo-lírico de Cecília Meireles poderá ser lido sem seguir uma ordem pré-estabelecida. Por tal razão, hoje, neste meu blog, o canto escolhido é o que tem a ver com o contexto atual do Brasil.

Se no momento da Inconfidência Mineira predominavam as ideias libertárias dos colonos lusos, que ainda nem possuíam a noção intrínseca de ligação com um espaço físico distante da Metrópole, agora, após um favorável desenvolvimento sócio-político, iniciado por um autêntico líder do povo brasileiro (oriundo de uma camada social que, infelizmente, até há bem pouco tempo foi terrivelmente desprestigiada), iniciamos a retomada dessas ideias neo-árcades-iluministas necessárias ao fortalecimento de nossa visão do que é ser parte de um povo. Visão essa que já se delineia positivamente, sem ganâncias de poder exclusivista, nos levando a acreditar que “poderemos mais” em termos de conquistas sociais e estéticas. Se mantivermos esse nosso progressista rumo atual ao longo do Terceiro Milênio, o conceito de nação para o povo brasileiro irá se ampliar de tal forma que, no futuro, romperá as próprias fronteiras, pacificamente, possibilitando a união global e a certeza de que não existirão nações que se oponham entre si e sim uma única Nação, Nação de puro bem-estar formada por todos os povos que comungam ideais de liberdade (ideais esses que foram difundidos aqui no Brasil a partir do final do século XVIII pelos inconfidentes portugueses de nossa histórica Colônia).

Como não há possibilidade de transcrever aqui o poema inteiro (mais de duzentas páginas), ofereço hoje aos meus leitores o “incomodante” e reflexivo Vigésimo Primeiro Canto do ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA, denominado “ROMANCE XXI OU DAS IDEIAS”, de nossa poetisa maior Cecília Meireles:


ROMANCE XXI OU DAS IDEIAS

Cecília Meireles

A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocafres e gamelas.
Os rios todos virados.
Toda virada a terra.
Capitães, governadores,
padres, intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos. Procissão. Promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as ideias.

Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos das alcovas,
histerias de donzelas.
lamparinas, oratórios,
Bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias. Salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as ideias.

E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
D. José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes...
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
Pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as ideias.

As esposas preguiçosas
na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre embaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíases; partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas...
Candombeiros. Feiticeiros.
Unguentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos. Angolas. Benguelas.
O imenso tumulto humano!
E as ideias.

Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se D. José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington, Jefferson, Franklin
(Palpita a noite repleta
de fantasmas, de presságios...)
E as ideias.

Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
– entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam.
Anarda. Nise. Marília...
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Plano de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as ideias.

(MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989: 97 - 100)

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