A HERANÇA (POLÍTICA) DO ONTEM ETERNO OU A DESTRONIZAÇÃO DO PODER
NEUZA MACHADO
Nesses dias de infindáveis altercações políticas aqui no Brasil, em que a rica minoria elitista oriunda dos herdeiros da Casa Grande não aceita a ideia de que um operário metalúrgico – que para a infelicidade desta minoria se tornou o Grande Presidente Reformador da Nação – possa ser aclamado e reverenciado no exterior, lembrei-me de um capítulo de minha Dissertação de Mestrado, que muito tem a ver com as ocorrências políticas atuais.
Esta minha Dissertação de Mestrado, sobre a narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, foi escrita no final da década de oitenta, e defendida em março de 1990 na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Hoje, relendo-a, percebo com mais acuidade o poder de raciocínio de nosso incomparável ficcionista sertanejo, no sentido de prever acontecimentos políticos que só seriam efetivados muitos anos depois, nos anos iniciais do Terceiro Milênio.
Peço aos meus leitores que leiam este capítulo, e depois me avisem se algumas semelhanças, dos personagens com alguns ricos políticos opositores do atual Governo agora Popular, poderão ser conceituadas como simples coincidências. Leiam também o conto de Guimarães Rosa (leitura de suma importância para uma produtiva comparação extratexto). A narrativa de Guimarães Rosa, A Hora e Vez de Augusto Matraga, faz parte da Coletânea de contos do livro Sagarana). Vale a pena ler e repensar a “queda” sócio-política do imperioso Nhô Augusto do passado, Senhor das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, e de seus ricos descendentes que ainda teimam em se vestir de poderosos, entretanto, no íntimo, bem no íntimo, todos inconformados com a perda do poder do “ontem eterno” e do nome.
A HERANÇA DO "ONTEM ETERNO" OU A DESTRONIZAÇÃO DO PODER
Neuza Machado
Continuando a repensar a questão da “autoridade do ontem eterno”, na narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa ― e apropriando-me de algumas assertivas de Max Weber ―, posso inferir que Nhô Augusto herdou um pequeno Império (representação do “ontem eterno”) e, durante algum tempo, nele reinou. Enquanto existiu a sua autoridade política, foi o personagem a representação do poder. Observo isto pela sua atitude superior ao arrematar, no leilão ("de atrás da Igreja"), a Sariema, aquela que era muito amada pelo capiauzinho “enamorado”, capanga do major Consilva.
O povo (ainda submisso às leis patriarcais) evidentemente aplaudiu e glorificou a atitude do poderoso Nhô Augusto.
O poder e prestígio do personagem, até ali, continuavam inalterados. Mas, havia um outro personagem ambicionando sua posição privilegiada e procurando as brechas para derrubá-lo: o major Consilva, “velho” inimigo político da família Esteves.
Recorde o Leitor a resposta de Nhô Augusto, quando o Quim Recadeiro (o Mensageiro dos poderosos) retornou dizendo que o major havia “comprado” os bate-paus: “Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai” (A Hora e Vez de Augusto Matraga)
O major procurou e encontrou um meio de desmoralizá-lo. Sinal de que o dito poder do “ontem eterno” não estava bem edificado e ameaçava ruir: bebidas, mulheres, pancadarias, jogos, dívidas; tudo isto proporcionava a sua decadência.
O poder social do personagem se encontrava ameaçado por um inimigo mais perigoso que o major Consilva: o contra-poder econômico da decadência do sertão. Ora, se aquele Senhor poderoso e, principalmente, chefe comunitário respeitado estava prestes a perder tudo o que possuía (família, terras), era natural que outro reivindicasse sua glória e prestígio.
O narrador roseano em princípio impõe-se e impõe-nos visualizar a figura imponente de Nhô Augusto, mas logo depois do leilão ("de atrás da Igreja") mostra que ele está a poucos passos da decadência.
As sucessivas transformações narrativas, ao longo da análise esclarecedora, são significantes dos vários estágios de vida estacionados no espaço do sertão mineiro-brasileiro, sobrepondo-se infinitamente, imunes à ação do tempo.
O narrador ficcional do século XX conseguiu apreender essas sutilezas, subjacentes em um lugar ainda meio medieval onde as Idades do Mundo se confundem e se completam. O narrador interativo do século XX apreendeu as várias etapas do tempo, entrelaçando-se e rejeitando-se, mas prestes a se anularem, graças à fragmentação do mundo moderno. Etapas de tempo que se sobrepuseram, se eternizaram e se eternizarão, enquanto houver um relator que as conte por intermédio da memória ― ou através da recordação ― e um ouvinte que compactue com seu ato de narrar.
A queda do personagem Nhô Augusto e suas etapas de vida representam as transformações de uma determinada burguesia, ainda meio agrária, que se acomodou nos pequenos vilarejos do sertão de Minas Gerais, desde os anos finais do século XVIII. Sabemos hoje que já não há Senhores-de-terra poderosos, mas as grandes famílias que comandavam politicamente essas localidades ainda permanecem dominando (ou insistem em permanecer dominando), engajadas em partidos políticos conservadores e alardeando suas origens. Os atos de heroísmo ou covardia infelizmente são fatos do passado e quase não há narradores para relembrá-los.
Por este prisma confirmo que, nesta narrativa especialmente, o narrador de Guimarães Rosa apresenta o momento de crise vivido por seu personagem Nhô Augusto, um “herdeiro do ontem eterno” brasileiro, em acordo com a crise sócio-econômica que ocorreu no Brasil do século passado, principalmente na sociedade agrária sertaneja a partir dos anos trinta do século XX. O inevitável impasse, as mudanças existenciais do personagem e a própria transformação discursiva do narrador roseano representaram e representam, inclusive, a mudança de poder político que ocorreu no Brasil, com a ascensão daqueles que antes eram considerados subalternos; ainda: o contra-poder (representado pelo povão desvalido) se transformando em poder de fato.
“Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremoto, é um dia de chegada infalível — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora! E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há, para se receber uma surpresa má” (conferir a citação em A Hora e Vez de Augusto Matraga)
O major Consilva (ainda um personagem representativo do poder patriarcal), personificação do contra-poder que aspira ao poder, em A Hora e Vez de Augusto Matraga, narrativa ficcional escrita por Guimarães Rosa em meados do século XX, “conquista”, por meio de pagamento em dinheiro, os capangas escravizados de Nhô Augusto (aqueles que não conheciam sequer a cor do dinheiro e muito menos o que queria dizer a palavra “salário”). O poder do herói sertanejo pré-capitalista do século XX, enquanto um herdeiro do “ontem eterno”, ruíra.
“Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremoto, é um dia de chegada infalível — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora! E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há, para se receber uma surpresa má” (Guimarães Rosa, A Hora e Vez de Augusto Matraga)
Reavaliando o que foi afirmado anteriormente (sobre a narrativa ficcional A Hora e Vez de Augusto Matraga, de autoria do escritor mineiro Guimarães Rosa):
Teríamos, neste trecho, a imagem de um momento de transição do Brasil? No espaço sócio-substancial do sertão de Minas Gerais várias etapas do Brasil Agrário se sobrepõem alheias à ação do tempo. Este trecho, significante de mudança narrativa, representa os “valores de uso” (a submissão primitiva do povo a um Senhor-de-terra) estando em vias de sofrer uma profunda transformação; ao mesmo tempo, representa os “valores de troca” mediatizados pelo dinheiro, valores estes que comandam o mundo burguês.
É interessante observar os motivos da debandada dos “bate-paus”. Se enquanto possuiu recursos e meios para ser um homem poderoso Nhô Augusto mandava e desmandava em seus subordinados (a arraia-miúda do Brasil do século XX), agora que se encontrava pobre não necessitava mais ser obedecido. Um outro poder — contra-poder (atenção: ainda um contra-poder vinculado a valores patriarcais) — estava a caminho e os “bate-paus” aceitaram mudar de comando.
Aqui entra um problema sério: o das classes sociais.
Na definição de Weber, hoje considerada reacionária (mas que diz a verdade sobre o ficcional), as classes sociais
“(...) não são comunidades; representam simplesmente bases possíveis, e frequentes, de ação comunal. Podemos falar de uma classe quando: 1) certo número de pessoas tem em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que 2) esse componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidades de renda, e 3) é representado sob as condições de mercado de produto ou mercado de trabalho” (Max Weber).
Quando Nhô Augusto mandou o Quim Recadeiro (o Mensageiro) chamar os “bate-paus” (seus subordinados), ainda não sabia que o major Consilva os “comprara” com uma melhor oferta de pagamento. Esquecera-se que andava mal de vida e que há muito tempo já não pagava o ordenado de seus homens de confiança. A obediência perde o sentido quando o homem perde o poder.
Vejamos o trecho:
“Dali a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus não vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O major Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não vinham mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao respeito:
— Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... pra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu major disse que não quer” (A Hora e Vez de Augusto Matraga).
Eis aqui a inevitável “dinâmica do poder” com suas competições e pretensões assinaladas por Max Weber e já mencionadas anteriormente.
Para o narrador roseano de meados do século XX o major Consilva (é importante não confundir o poder do major com o poder provindo do próprio povo; ainda um major Consilva como personagem representante de uma outra face permanente do poder patriarcal) representa a certeza de que o sertão, enquanto espaço exterior aos conflitos do mundo, com suas superposições sociais e temporais ímpares, permanecerá intocável resistindo às investidas degradantes da sociedade moderna. Enquanto esse espaço exterior for captado por um olhar solitário e reconhecido como espaço sócio-substancial onde se ancora a tradição de um povo, este mesmo narrador sertanejo do século XX terá a certeza de que seu mundo de origem não se extinguiu. Apenas, em termos de narrativa ficcional, esse espaço ficará para trás, encubado como certas plantas que “dormem” sob a terra, retornando à vida de tempos em tempos.
As etapas de vida do personagem Nhô Augusto (um ex-poderoso), as etapas de discurso-vida do narrador, as etapas do mundo burguês sertanejo em aceleradas transformações necessitam ser significadas. Todos os envolvidos na narrativa (inclusive o major Consilva e o próprio narrador), não apenas Nhô Augusto, sentem o momento da perda de poder, percebem o momento da perda de valores arraigados, pressentem as mudanças existenciais.
O significante nuclear desse momento no âmbito da ficção é a “surra” aplicada no personagem. Nhô Augusto apanhou e todos apanharam: o narrador, a sociedade burguesa sertaneja, o leitor, que também compactuou e se apoderou da matéria do narrador e do infortúnio do personagem como se fosse sua desgraça que estivesse sendo narrada. Assim, um Nhô Augusto da estória de Guimarães Rosa como um personagem sem dúvida representante da burguesia; um narrador burguês do século XX; um leitor burguês do século XX; todos sentindo a vingança do mais fraco (dos bate-paus que bateram para valer), o mais fraco daquele histórico momento de meados do século XX; uma vingança aquela temporária, pois foi mediatizada por outro poder político (o poder do Major Consilva, um poder secular ainda patriarcal), para desforrarar-se de quem o ofendeu.
Nhô Augusto apanhou de seus próprios “bate-paus” de confiança, assessorados pelo capiauzinho apaixonado de Sariema (estão lembrados dele?, do capiauzinho de testa curta empregado do major Consilva?). Nhô Augusto foi marcado como rês; não teve tempo de se vingar do abandono da Dionóra. Nhô Augusto fora à chácara do major confiando em seu anterior poder de mando e se esquecera que esse poder residia exatamente naqueles quatro “bate-paus” desmerecidos por ele, os quais agora obedeciam ao major Consilva (seu rico inimigo, só para ver quem pode mais, quem tem mais poder). Entretanto (os dois poderosos ainda não sabiam!), era a hora do início, do princípio da vingança do povo mais fraco.
Assim, hoje, se encontra o rico herdeiro sertanejo “sem-terra” política (sem o antigo poder de mando imediato), descendente por via histórica de algum grande senhor do sertão brasileiro. Sabe-se vinculado pelo nome ― que traz como uma marca ― a uma dinastia de desbravadores de terra (com nomes ilustres), mas se pergunta por que estas “terras” políticas (o poder de mando imediato) já não são suas? Estas “terras” (as novidades que transformam) agora pertencem a famílias que outrora foram subordinadas de seus antepassados (e que se fazem conhecer por novos e incomuns apelidos). Algum “Nhô Augusto Matraga”, por certo muito imprudente, perdeu-as (bebendo, jogando, trapaceando, impondo-se deslealmente, ridicularizando os seus próprios bate-paus).
MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez: Sobre A Hora e Vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: NMachado, 2006 – ISBN 85-904306-2-6.
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